domingo, 24 de julho de 2011

O Jesus Ariano



A teologia e sua atração pelo racismo. Nisso me refiro especialmente a neotestamentólogos do início do século 20 e sobretudo do tempo dos nazistas. O surpreendentemente grande número de professores proeminentes, de cientistas e estudantes jovens que eram envolvidos em esforços de associar nazismo com cristianismo, pretende aqui não simplesmente ser entendido como reação ao desenvolvimento político ou como resultado duma discussão dentro da teologia. Antes, queria mostrar que perceberam e levaram à luz do dia afinidades fundamentais entre racismo e teologia. O meu ensaio esboçará os desenvolvimentos, que queria descrever somente em parte, e a seguir analisar essa afinidade imprevista. A base da minha apresentação é material de arquivo que faz poucos anos descobri na Alemanha. Evidencia a existência dum pseudo-instituto de pesquisa para teólogos, o qual se assemelha a outros institutos pseudocientíficos para a "pesquisa dos judeus", os quais foram instalados em quase todos os âmbitos acadêmicos da Alemanha durante o "Terceiro Império". Descreverei brevemente a história, a atividade, os membros, a ideologia etc. do instituto. Por razões de espaço omitirei lamentavelmente exposições sobre as carreiras com sucesso de membros do instituto depois da guerra. Igualmente, tratarei de somente dois aspetos do trabalho "científico" dos membros do instituto, a saber o entusiasmo pelos métodos da escola de história de religião e da participação de muitos desses cientistas na pesquisa dos rolos do Mar Morto depois da guerra.

Descrição do instituto

No meio dia do sábado de 6 de maio de 1939, um grupo de teólogos, pastores e freqüentadores de igreja protestantes e reuniu na Wartburg histórica para, repleto de orgulho luterano e nacional-socialista, celebrar a abertura oficial do "Institut zur Erforschung und Beseitigung des jüdischen Einflusses auf das deutsche kirchliche Leben" [Instituto para a pesquisa e eliminação da influência judaica na vida eclesial alemã]. Os fins do instituto eram tanto políticos como também teológicos. Para conseguir uma Igreja "desjudizada" para uma Alemanha que estava a "limpar" a Europa de todos os judeus, o instituto desenvolveu novas interpretações da Bíblia e material novo para a liturgia. Nos seis anos da sua existência, durante os quais o regime nazista cometeu o genocídio nos judeus, o instituto definiu de novo o Cristianismo como uma religião germânica. O fundador desta, o ariano Jesus, teria lutado corajosamente para destruir o Judaísmo e teria caído vítima na luta, assim que os alemães agora estariam exortados a chegar a serem vencedores na própria luta de Jesus contra os judeus. No nível teológico, o instituto conseguiu sucesso notável, porque ganhou um grupo de representantes de Igreja e professores para a sua agenda radical, os quais saudavam a eliminação de elementos judaicos da Bíblia e liturgia cristãs, bem como a neodefinição do Cristianismo como religião ariana. Membros do instituto e muitos outros no Império trabalhavam dedicadamente "para o Führer [Líder, Dirigente = Adolf Hitler]", como Ian Kershaw o formulou, para ganhar a luta contra os judeus. A sua dedicação os fez cada vez mais extremos, assim que trespassaram a doutrina cristã tradicional e, em vez desta, contraíram uma coalizão com líderes neo-pagãos. Começaram com uma propaganda de difamar, a qual correspondia às medidas do Terceiro Império contra os judeus. "Ariano" estava, correspondentemente a isso, não simplesmente só para características físicas ou biológicas, mas ainda mais para uma índole interior, a qual era ao mesmo tempo poderosa e também profundamente vulnerável, precisando da proteção duma ameaça de degeneração por não arianos, principalmente por judeus. Na Alemanha nazista, a "higiene de raça" chegou a ser uma disciplina, na qual era ensinado como o corpo, em que o espírito ariano habita, possa ser protegido; a teologia desse instituto se dedicava à assistência a esse espírito.

A maioria dos membros e especialmente o diretor acadêmico do instituto, Walter Grundmann, professor para Novo Testamento em Jena, se via como vanguarda teológica, a qual se dedicava a resolver dum problema que já faz muito tempo atormentava: Como se pode tirar uma fronteira clara e explícita entre o Cristianismo primitivo e o Judaísmo, eliminando todos os vestígios de influência judaica da teologia e prática cristãs? Como cientistas pertencentes preponderantemente à geração mais jovem, que foram formados pelos pesquisadores do Cristianismo primitivo alemães — muitos eram discípulos do professor importante de Tübingen, Gerhard Kittel — os membros do instituto se viam em condição para recuperar o Jesus historicamente genuíno, não judaico, fazendo a mensagem cristã compatível com identidade alemã contemporânea. Quiseram limpeza, autencidade e uma revolução teológica — tudo em nome do método histórico-crítico e da sua dedicação ao "Deutschtum". Alcançar isso eles quiseram pela extinção do judaico do cristão. Nem uma mensagem cristã que estivesse com judaico poderia ser útil a alemães, nem uma mensagem judaica poderia ser uma doutrina exata de Jesus.
Os fins do instituto foram explicados sem rodeios por Grundmann na inauguração do mesmo numa alocução programática sobre "A remoção do judaico da vida religiosa como tarefa da teologia alemã e da Igreja". Esta era, assim declarou, comparável como aquela da reformação: Os protestantes precisam hoje superar o Judaísmo como Lutero superou o catolicismo. A eliminação da influência judaica à vida alemã seria uma interpelação à situação religiosa alemã daquele tempo. Como as pessoas no tempo de Lutero não podiam imaginar um Cristianismo sem o papa, assim não poderiam hoje em dia — assim Grundmann — os cristãos imaginar uma salvação sem o Antigo Testamento. Mas esse fim estaria alcançável. A ciência neotestamentária moderna teria mostrado que "somente por força duma transformação, idéias neotestamentárias e cumprimento neotestamentário podiam ser encontrados como pré-formados no Antigo Testamento. Assim se acresce com pleno ímpeto a percepção do judaico no Antigo Testamento e também em determinados partidos do Novo Testamento como elemento que obstrui para inúmeras pessoas humanas alemãs o acesso à Bíblia."
A Bíblia, assim Grundmann continuou, deveria ser limpada, a sua qualidade não-falsificada restituída, para anunciar ao mundo a verdade sobre Jesus, a saber que era um ariano, o qual aspirava a destruição do Judaísmo. Grundmann deu um esboço das tarefas científicas as quais se punham ao instituto. Essas incluíram, segundo ele, esclarecer o papel do Judaísmo no Cristianismo mais primitivo e a sua influência à filosofia moderna. Cada oposição contra o nacional-socialismo a partir da Igreja teria partido duma influência nociva do Judaísmo, como por exemplo a afirmação de cientistas judaicos de que Jesus teria sido um judeu. Os judeus teriam destruído o pensar nacional dos alemães, querendo agora, com a ajuda do bolchevismo, forçar o "domínio mundial do Judaísmo". A ameaça judaica da Alemanha seria séria: Daí teria passado, assim Grundmann em aceitação da propaganda nazista, a luta contra os judeus irrevogavelmente ao povo alemão. A guerra contra os judeus é para ele não somente uma batalha espiritual: "A influência judaica a todas as áreas da vida alemã, inclusive da vida religiosa-eclesial, deve ser desmascarada e quebrada." Essa frase é que Grundmann a repete várias vezes, para descrever a tarefa do instituto.
De 1939 a 1945, o instituto funcionou como uma grande cobertura, sob a qual se podia articular um grande número de posições teológicas antijudaicas de cientistas e pastores. Alguns, como o próprio Grundmann, empenhavam-se para o afastamento do Antigo Testamento da Bíblia cristã., porque é um livro judaico.
Outros, como Johannes Hempel, professor do Antigo Testamento na universidade de Berlim, tentavam a manter o Antigo Testamento para os cristãos, já que era no fundo uma mensagem sobre o povo de Israel (e não sobre os judeus), a qual seria importante para o povo alemão ouvir.
Entre os membros ativos do instituto encontravam-se cientistas de reputação internacional dos escritos judaicos, como Hugo Odeberg, mas também estudantes de teologia e demagogos, como Hans-Joachim Thilo e Wolf Meyer-Erbach.
Em 1942, no ano então em que a maioria dos judeus europeus foi assassinada, o número dos membros como o dos assuntos foi ampliado, convidando escritores populares para preleções sobre a herança teutônica da Alemanha e a sua compatibilidade com o Cristianismo.
O que unia os membros do instituto era a confissão para a exterminação do judaico como meio para a limpeza do Cristianismo e da Alemanha. No público conhecido como "instituto de desjudiação" o instituto era o instrumento da Igreja Protestante para a propaganda anti-semita. Resultados teológicos sobre ensinamentos de Jesus e a sua relação aos judeus do seu tempo foram formados para apoio retórico da ideologia nazista, assim que o nazismo apareceu como a realização política daquilo que os cristãos ensinavam religiosamente. Conferências e publicações do instituto chegaram a ser conhecidas, não pela sua originalidade científica, mas porque fizeram exegese da Bíblia e história de religião com métodos da doutrina de raça. Com membros que pertenciam aos teólogos, professores e docentes líderes do Terceiro Império inteiro, o instituto encobria cientifica e religiosamente um anti-semitismo politizado, o qual refletia a retórica do ministério de propaganda na sua descrição da guerra como pretensa defesa contra uma guerra judaica contra a Alemanha. Grundmann escreveu em 1941: "Então, porém, o nosso povo que está na luta, contra os poderes satânicos do judaísmo mundial, por ordem e vida deste mundo em geral, com direito lhe dá a despedida, pois não pode lutar contra o judeu e abrir o seu coração ao rei dos judeus."4 Com a prova de que Jesus era, não judeu, mas sim adversário dos judeus, Grundmann ligou o trabalho do instituto com os esforços de guerra dos nazistas.
A extensão da força de atração do instituto era notável: professores universitários, docentes e estudantes evangélicos de teologia em todo o Império chegaram a ser membros do instituto. Representavam um corte transversal de disciplinas, lugares geográficos, anos e níveis de obras científicas dentro do Império. Queria nomear alguns "representantes":
Walter Grundmann era professor para Novo Testamento na universidade de Jena. Aí lecionaram mais outros membros do instituto, Heinz Eisenhuth, professor para teologia sistemática, e Wolf Meyer-Erlach, professor para teologia prática. Johannes Hempel era desde o começo um membro ativo e estava muito perto de Grundmann, este que pediu a sua ajuda na propaganda para o instituto nos representantes eclesiais de Berlim. Hempel era professor para Antigo Testamento na universidade de Berlim e até 1959 editor da ZAW [Zeitschrift für Alttestamentliche Wissenschaft = Revista para a Ciência do Antigo Testamento].
Georg Beer, antigotestamentólogo na universidade de Heidelberg, era um dos membros mais velhos do instituto e perito para o Judaísmo rabínico.
A teologia sistemática foi representada por Martin Redeker, pesquisador de Schleiermacher na universidade de Kiel e por Theodor Odenwald da universidade de Heidelberg.
A ciência neotestamentária foi representada por Johannes Leipoldt da universidade de Leipzig, Herbert Preisker da universidade de Breslau e por Hugo Odeberg da universidade de Lund.
Membros mais jovens eram Georg Bertram, Gerhard Delling e Karl Euler. Alguns eram membros do partido (nazista), enquanto outros nunca entraram no partido [nazista].
Exatamente aquilo que acadêmicos procuravam foi oferecido pelo instituto: apoio em publicações e conferências para apresentar idéias, reuniões para encontrar colegas e a sensção da própria importância. Para membros que eram pastores, professores de religião ou estudantes de teologia havia a possibilidade de se poder encontrar com professores conhecidos do Império inteiro e da Escandinávia — uma grande atração, já que o instituto pagou todos os gastos. Valiosa apareceu também a oportunidade de poder publicar nos livros financiados pelo instituto, já que papel e e promoção durante a guerra eram escassos.
Os membros eram subdivididos em grupos de trabalho, produzindo dentro de um ano uma versão "desjudizada" do Novo Testamento, um cancioneiro "desjudizado", um catecismo nazificado e um grande número de livros e panfletos para leigos e cientistas, nos quais expuseram os seus argumentos teológicos. O instituto organizava muitas conferências e fundou uma filial na România, para ajudar a "alemães étnicos". Embora o instituto fosse fechado em 1945 pela Igreja do país de Turingia por falta de financiamento, os seus membros nunca foram repreendidos pelas suas Landeskirchen [Igrejas regionais] depois da guerra por causa do seu trabalho anti-semita. Hempel, por exemplo, que transformou o conhecido Institutum Judaicum de Berlim, que dirigiu de 1937-1945, para um centro de ciência racista, manteve a editoria da ZAW.
Teoria racista e Teologia
A minha pergunta abrangente é porque a teoria de raça era atrativa para teólogos protestantes da Alemanha durante a primeira metade do século 20, e porque era tão fácil interpretar o Cristianismo em categorias racistas. O racismo que se espalhou na segunda metade do século 19 na Europa, atraia protestantes alemães, primeiro, como componente nacionalismo. Com o século 20, porém, o racismo, especialmente o anti-semitismo, chegou a ser um meio da modernização do Cristianismo e da legitimização das suas doutrinas. Jesus foi apresentado, primeiro como adversário do Judaísmo, a seguir como inimigo deste e, finalmente, como ariano.
A questão pelo trabalho do instituto na "desjudização" do Cristianismo precisa ser contemplada, não somente em conexo com a política do "Terceiro Império", mas também como fenômeno teológico do Cristianismo que agradava um grande número de pastores, bispos e teólogos universitários. Já fazia muito tempo que percebera a contribuição de religião para o nacional-socialismo; outra questão porém é, como teologia tirava proveito de racismo e nacionalismo. Porque um número tão grande de teólogos e pastores protestantes alemães foi atraído pela teoria de raças e que criou uma autêntica teologia de raças? Quais ganhos teológicos alcançaram pelo racismo?
O relacionamento entre anti-semitismo cristão-teológico e anti-semitismo racista secular já estava sendo discutido multifariamente por historiadores e teólogos. Geralmente concordava-se em que o anti-judaísmo cristão seria um fenômeno que se distinguisse do anti-semitismo moderno. As raízes deste jazem em pensar que se baseia em categorias econômicas e racistas, razão por que doutrinas cristãs não estão sendo consideradas como responsáveis para o anti-semitismo.6 Esse argumento reflete em parte a opinião amplamente difundida de que o Cristianismo seja uma religião universal, a qual está aberta para todas as pessoas humanas, e isso em contradição ao Judaísmo, que junta religião com etnicidade.
Faz pouco que Denise Buell pôs essa suposição em questão. Mostrou que a universalidade do Cristianismo é uma construção moderna, enquanto o Cristianismo antigo mesmo, no entanto, se definia por etnicidade.7 A descrição do Cristianismo em categorias racistas, a qual entrou no primeiro plano com o nacionalismo alemão pode, portanto, também ser vista como revivência de correntes no Cristianismo primitivo, tanto mais quanto é certo que aqueles que eram engajados no movimento nacional ambicionavam um cristianismo alemão. A eliminação do judaico do Cristianismo motivava uma religião cristã concebida em categorias racistas e a auto-certificação desta como religião étnica. Ao mesmo tempo, foi desfocalizada a influência judaica ao Cristianismo em nascimento, negando ao Judaísmo o status duma religião definindo, no lugar, os judeus como raça e simultaneamente uma luta de raça entre judeus e arianos.
A afinidade entre protestantismo alemão e retórica racista está, porém, ancorada, ainda mais profundamente do que somente em comundades, em opiniões de doutrina determinadas sobre os judeus. Teóricos de raça se ocupam com a definição da natureza espiritual daqueles que estudavam. Walter Wust, professor para ciência de línguas na universidade de Munique e reitor desta de 1941-45, esclareceu, como diretor do centro de pesquisa "Das Ahnenerbe" [A herança dos antepassados] - que fora fundada pelo líder da SS [Schutzstaffel = Escalão de Proteção, uma organização paramilitar nazista] Heinrich Himmler para pesquisar as origens indo-germânicas — a ligação entre raça e religião: "Hoje sabemos que religião é propriamente uma atividade espiritual-corporal e que ela é portanto racista." A religião podia, no contexto da SS, de fato sobreviver somente como fenômeno racista novamente definido.
Pensar racista brota organicamente das dicotomias corpo-espírito, aproveitando-se facilmente da teologia cristã de encarnação. Originalmente, a teoria racista moderna acentuava, não tanto a inferioridade do corpo de determinadas pessoas como degeneração da sua moralidade e mentalidade e a pretensa ameaça que degeneração ("Entartung") tal representa para as raças superiores. Fisionomia nunca está ficando sozinha. Antes, os teóricos de raça modernos viam o corpo como portador da alma, logo de capacidades morais e espirituais. É a ameaça moral e espiritual por raças degeneradas — como por exemplo os judeus — sobre a qual os racistas estavam preocupados. Os corpos degenerados dessas raças, porém, eram portadores das suas mentalidades estragadas, mas não a base do ser degenerado. A carne é, para o pensar racista extremamente importante, porque não é simplesmente só um símbolo para o espírito degenerado. Antes, degeneração moral se encarna dentro do corpo, assim que ambos não podem ser separados um do outro. A relação decisiva entre corpo e alma, que determina o discurso racista moderno, reflete o dilema corpo-alma, a parte coração da metafísica cristã. Exatamente isso é o carimbo que o Cristianismo imprimiu à filosofia ocidental.9 A categoria "raça" revivia outra vez a distinção cristã clássica entre carnalidade do Judaísmo e a espiritualidade do Cristianismo.
A teologia racista levanta, para além do repúdio do Judaísmo no Cristianismo, também a questão pelas semelhanças entre o discurso teológico e o de raça. Esse pode ser lido como discurso religioso de moralidade e espiritualidade. Este pode, pela sua acentuação de moralidade e espiritualidade, também ser lido como discurso religioso. Raça está finalmente ocupada, não com biologia, mas antes com o espírito humano. Teóricos de raça se ocupam com graus da degeneração moral e espiritual e com os perigos que partem daí para a sociedade. Esses perigos se exprimem na anatomia e fisiologia.
O nariz judaico, por exemplo, não é perigoso como tal, mas corporiza - encarna — a decadência moral.
O sangue é, tanto para a raça quanto também para a teologia — de importância central, pois liga espírito e corpo, o humano e o divino, a metáfora e a realidade física. A teologia se move dentro do âmbito do sangue, falando de gradações da transubstanciação como a presença atual ou simbólica do divino na matéria. O racismo postula, igualmente como a teologia, a presença de qualidades morais e e espirituais no sangue, no nariz, na cor da pele, no cabelo e assim em diante, criando assim raça por discurso teológico. É portanto também não para admirar que o nacionalsocialismo, nos primeiros anos, manifestou o seu apoio para a Igreja, p.ex. quando Hitler se apresentava a si mesmo como homem religioso que defendesse a fé cristã contra os inimigos da Igreja, os bolcheviques e os judeus. Hitler usava o Cristianismo manipulativa e bem-pensadamente, sendo encorajado para isso pela nascente teologia de raça.10 Nesse sentido, a teologia do instituto pode ser vista como algo que o Cristianismo tratava com corpo e o nazismo tratava com espírito, isso é como tentativa de encarnar o nazismo no Cristianismo.
Está sendo assumido usual mas falsamente que o racismo moderno defendia a noção duma essência imutável. Imutabilidade biológica, argumenta-se, distingue o racismo moderno de formas de preconceito anteriores. Enquanto a Igreja se desempenhava na sua história pela conversão dos judeus ao Cristianismo, racistas modernos, depois dessa argumentação, recusam a possibilidade da conversão de judeus ao Cristianismo, porque o ser judeu é qualidade biológica que não pode ser aniquilada. Essa suposição, porém, passa por cima da complexidade do pensar racista. Onde quiser que pensamentos racistas se impusessem, sempre se supôs que o status rassico, por exemplo por um matrimônio, se pudesse mudar, razão por que a mistura de raças era assunto central do racismo europeu. No "Terceiro Império", judeus foram rassicamente revalorizados quando casaram com ariano, enquanto arianos pioravam a sua raça por um matrimônio com um judeu. A violação da descendência ariana pura era considerada como algo que, pela contaminação do corpo, podia acontecer facilmente demais. Teoria de raça referia-se portanto, não só à superioridade dos arianos, mas sim também à vulnerabilidade desses por contaminação por raças inferiores e à degeneração que seguiu àquela.
A obra do conde Joseph-Arthur de Gobineau (1816-82), que influenciou Houston Steward Chamberlain, Alfred Rosenberg e Hitler, é um bom exemplo pelo argumento de que mistura de raças efetuou a degeneração dos arianos europeus.
O medo ariano de pureza rassica comprometida que se expressou em leis severas que proibiam relação sexual com não-arianos, mostra que se cria que relações sexuais fossem responsáveis por mudanças, que pudessem suceder até sem concepção ou reprodução. Isso chega a ser claro no livro bestseller "O pecado contra o Sangue" de Artur Dinter, no que crianças de um par ariano foram deterioradas porque a sua mãe muitos anos antes tinha uma relação sexual a um judeu, pela qual o seu sangue foi contaminado a longo prazo.
Dinter era ativo em política nacional nazista na Turíngia durante a década dos 1920. Era membro da NSDAP [Nazionalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei = Partido Nacional-Socialista de Trabalhadores, o partido nazista na Alemanha] com o número 5 servindo como Gauleiter [gerente de distrito] do partido na Turíngia, mas foi, em 1928, excluído do partido.
Nos teóricos modernos de raça e dos seus popularizadores literários, formiga para assim dizer de tais fantasias sobre a perda da pureza rassica-espiritual via o corpo. Nos sistemas religiosos, a vulnerabilidade do sangue ariano para o ser deteriorado com semente judaica reflete a vulnerabilidade da santidade pelo profano. Isso ilustra que a instabilidade da raça, mas não a sua imutabilidade, está no centro da sua invenção. Ann Stoler chega, no seu trabalho sobre raça e colonialismo à conclusão seguinte: "A força do discurso racico jaz exatamente na vista dupla, que o permite, a saber no fato de que combina imaginações de consistência e capacidade de fluir num modo fundamental para a sua dinâmica." Nenhum ariano era imune contra judaização ("Verjudung"), nem o nazista apaixonado. De fato a acusação de pensar judaico (por vezes chamado de "farisaico") foi freqüentemente levantada, quando simpatizantes nazistas presunçosos trocavam acusações entre si.
Por exemplo, Hans von Soden, professor para Novo Testamento na universidade de Marburg e adversário dos Deutsche Christen [Cristãos Alemães], num panfleto privadamente impresso, chamou o livro de Grundmann "Jesus o Galileu" uma peça de erudição "farisaica", porque tentou construir Jesus como um ariano. Grundmann, por sua vez, culpou ideólogos anti-cristãos nazistas pela afirmação deles de que Jesus era judeu, de terem sido judaizados ("verjudet") pelo filósofo judaico do século 18, Moses Mendelssohn.
O que aumentou o relacionamento entre teologia e raça, é a questão do sangue, que ligava teologia cristã e discursos racistas. Pelo sangue a raça está sendo, segundo a maioria dos discursos de raça do tempo nazista, transportada e transferida. E também é o sangue que pretensamente conduz consigo o sexo e o transfere. No centro simbólico está o sangue de Jesus, o qual está tanto salvador quando sacramental, e isso porque ele o derrama e o fiel o engole na eucaristia. A centralidade do sangue, tanto para a narrativa cristã quanto a nazista, permitia um parentesco entre os dois sistemas de pensar, mas deu também ao mesmo tempo motivo para briga e conflitos. No nacionalsocialismo, era-se fixado e determinado pelo sangue, assim que não havia nenhuma possibilidade para mudança ou conversão. O entendimento luterano da transubstanciação era, porém, menos estrito: O vinho não era o sangue real, embora se tratasse da presença real de Cristo no vinho e na hóstia. Poder-se-ia achar que a eucaristia foi, com o surgimento do nazismo, novamente determinada, para lhe dar um significado mais firme e menos simbólica, isso é: fazer a definição de sangue mais rígida, pondo-a em consonância com a teoria de raça. Mas definições novas da eucaristia não tiveram lugar. A atitude anti-doutrinária dos Deutsche Christen não se referia ao melhoramento de dogmas tradicionais. A eucaristia foi celebrada nas igrejas protestantes durante o "Terceiro Império" de modo plenamente convencional, também nas igrejas que foram gerenciadas por Deutsche Christen.
Como religião de encarnação, o Cristianismo se encontra na crista estreita entre humano e divino, entre carnal e espiritual e entre judaico e cristão. Essa instabilidade foi trazida à luz pelo historismo teológico e por perguntas de teólogos judaicos do século 19: Onde começa o Cristianismo propriamente termina o Judaísmo? A pessoa de Jesus está nisso o centro de rotação e de pólo: Ele é ao mesmo tempo judeu e fundador do Cristianismo. Jesus começa a sua vida como judeu, mas o termina com cristão. O Cristianismo é somente alcançado, assim o implica o narrativo da vida de Jesus, por um processo de surgimento, por uma limpeza religiosa, a qual tenta livrar o judaico do cristão. Esse judaico, o que está plenamente carnal nem plenamente espiritual, apresenta uma ameaça indeterminada, vaga. Pois o judaico não pode depois eliminar nem o corpo nem o espírito, penetrando pelo um no outro, assim que suje o corpo ou o espírito pela decomposição do espírito. A pureza do eu pode ser alcançada pela cristianização do eu, o que significa abolição do judaico, e isso exatamente como uma limpeza do judaico caracteriza a criação do cristão. Daí, o surgimento da teologia racista protestante nos primeiros decênios do século 20 deveria ser visto, não somente como resposta ao desenvolvimento político na Alemanha, mas sim como confirmação da aporia de Jesus, o judeu, que era o primeiro cristão.
O historismo teológico era fascinado pela possibilidade de poder fixar a data das origens cristãs. Mas "como não é possível traçar uma fronteira claramente definida entre realidade e imaginação", como James Donald disse, também as reconstruções do Cristianismo primitivo são sempre imaginativas e sempre, para falar com Michel de Carteau, um rumor: "Lugares em que andam fantasmas são os únicos nos quais pessoas humanas possam viver." As raízes do projetos de desjudaização do instituto são altamente imaginativos, podendo ser seguidas para trás até às questões pela identidade de Jesus, as quais já foram levantadas já nos primeiríssimos momentos da auto-informação cristã-teológica.
Mas a questão pela identidade de Jesus chegou a ser ainda mais fundamental e palpitante quando se começava examinar historicamente as origens do Cristianismo no século 19, e isso no quadro da recusa da doutrina de fé e do sobrenatural. A teologia era para ser fundada no Jesus histórico, no seu comportamento e nas suas doutrinas. Enquanto então muitos fatores políticos, sociais e econômicos contribuíam para a subida do anti-semitismo na Alemanha moderna, surgiu também, como resultado do processo teológico interno no Cristianismo o Jesus ariano. Simultaneamente, trouxe à luz uma conseqüência do método histórico-crítico da teologia protestante liberal.
Não era, porém, tarefa simples afastar o judaico do cristão. Junto com outros nazistas, Alfred Rosenberg percebera a dificuldade dessa tarefa e levou os esforços dos teólogos cristãos ao ridículo. Afirmou que sobrasse nada, quando se afasta o judaico do cristão. Até os membros do instituto não estavam de acordo sobre a resposta à questão de que então seria exatamente o judaico que precisasse ser eliminado. O Antigo Testamento para fora da Bíblia? O judaico para fora de Jesus? Paulo para fora do Novo Testamento? O hebraico do livro dos cantos? A tarefa era imensa. Com cada esforço surgia uma tarefa nova.
Em novembro de 1933, a exortação do diretor dos Cristãos Alemães Berlinenses, Reinhold Krause, de que o Antigo Testamento seria para ser repudiado, chocou; menos perturbadora era em 1039 a declaração de Jesus para ser ariano; e ao redor de 1942, quando o assassínio nos judeus corria, a eliminação do Judaísmo não era mais de interesse central, sendo substituída por tentativas de produzir uma síntese do teutônico com aquilo que sobrava do "cristão" "desjudaizado".
Enquanto as origens racicas do sangue de Jesus não eram bastante certas para poderem ser declaradas arianas, a identidade de Paulo não deixou uma indeterminação tal. Como Paulo, nos seus próprios escritos, se designava como judeu e fariseu, uma conversão de Paulo ao Cristianismo era inaceitável segundo o esquema racista dos nazistas, o qual declarou impossível que um judeu se pudesse dispensar do seu ser judeu. Mas uma recusa de Paulo teria minado a teologia cristã e especialmente a obra de Martinho Lutero, cuja afinidade a Paulo representava um dos fundamentos da Reforma. A observação rigorosa do método histórico-crítico, o qual era central para o trabalho do movimento dos Cristãos Alemães, era uma ajuda no demascar o judeu Jesus fazendo visível o ariano autêntico. Mas os mesmos métodos forçavam para o reconhecimento do fato de que Paulo era invariavelmente um judeu. Além disso, os Cristãos Alemães aceitaram os métodos da escola de história de religião, mas o interesse teológico desviado da doutrina paulina e virado a Paulo como a um indivíduo religioso. Assim, atenção ulterior à formação espiritual de Paulo nos fariseus, ao ambiente histórico, bem como ao seu fundo de formação e o ambiente cultural daquele tempo.
As "tentativas de desjudização" no nível teológico eram finalmente um empreendimento inútil. Mas o próprio empreendimento tinha conseqüências que foram longe além do movimento dos Cristãos Alemães. Em consideração entra aqui o efeito que propaganda anti-semita desenvolvia. Em disfarce religioso, dentro da sociedade nazista, a qual pretendia a produzir uma Europa "limpa de judeus". Outra conseqüência é o efeito ao discurso teológico depois da guerra o qual, embora se abstivesse das exortações para a eliminação do judaico, nem por isso continuava alguns das mesmas pressuposições referentes à natureza religiosamente deteriorada do Judaísmo e da adversidade de Jesus contra aquela. Ambos os aspetos apontam inexoravelmente ao significado mais profundo de que a teologia cristã se batia com vergonha sobre as suas origens no Judaísmo.
O Jesus ariano era polissêmico. Segurava a identidade alemã, rejeitando os judeus. Com isso participava numa tradição longa de teologia cristã, a qual definia o Cristianismo em condição ao Judaísmo. O instituto assumia essa tradição teológica, enriquecia-a com o anti-semitismo da década dos 1930, empacotando-a novamente como teologia cristã tanto para o regime nazista quanto para a Igreja.
Como teologia anti-semita podia sobreviver o Terceiro Império e (sem a palavra "ariano", pois essa era deixada cair depois de 1945) e entrar na Alemanha depois-guerra, como se seria um pensar cristão legítimo. A ficção de que a Igreja estava em oposição ao nacionalsocialismo e de que os nazistas eram anticristãos permitiam aos teólogos esquivar-se do exame exato, ao qual outras tradições e instituições culturais alemãs depois da guerra se precisam submeter.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Primeiro Retrato de Jesus Achado em Uma Caverna

A imagem é estranhamente familiar: um homem barbado jovem com cabelos encaracolados. Após ficar por quase 2000 anos escondidos em uma caverna na Terra Santa, os pequenos detalhes são difíceis de determinar. Mas dependendo da luz, não é difícil de interpretar as marcas ao redor da testa da figura como uma coroa de espinhos.

A figura extraordinária de um tesouro recém-descoberto de até 70 livretos de chumbo - brochuras - encontrado em uma caverna nas colinas sobranceiras ao mar da Galiléia é um dos motivos pelos quais historiadores bíblicos estão clamando para poderem avaliar os antigos artefatos.

Se verdadeiro, este poderia ser o mais antigo retrato de Jesus Cristo, possivelmente até mesmo feito durante a vida de quem o conhecia.

A pequena brochura, um pouco menor que um cartão de crédito moderno, é selada em todos os lados e tem uma representação tridimensional de uma cabeça humana, tanto na frente quanto nas costas. Uma parece ter uma barba e a outra não. Até mesmo a impressão digital do fabricante pode ser vista na impressão de chumbo. Abaixo das figuras há uma linha de texto em hebraico antigo, ainda não decifrada.

Surpreendentemente, um dos folhetos parece ostentar a menção "Salvador de Israel" - uma das poucas frases até agora traduzidas.

O dono do achado é o caminhoneiro beduíno Hassan Saida, que vive na aldeia árabe de Umm Al-Ghanim, Shibli. Ele se recusou a vender os artefatos, mas duas amostras foram enviadas para a Inglaterra e Suíça para exames.

Uma investigação do Mail on Sunday revelou que os artefatos foram originalmente encontrados em uma caverna na aldeia de Saham na Jordânia, perto de onde Israel, a Jordânia e os Morros Sirios de Golã convergem - e a aproximadamente 5 quilometros do balneário israelense e fontes termais de Hamat Gader, um santuario religioso por milhares de anos.

De acordo com fontes em Saham, eles foram descobertos cinco anos atrás, depois de uma enchente lavar a região e afastar o solo empoeirado da montanha para revelar o que parecia uma pedra de grandes dimensões. Quando a pedra foi movida, uma gruta foi descoberta com um grande número de pequenos nichos nas paredes do conjunto. Cada um desses nichos continha um livreto. Havia também outros objetos, incluindo algumas placas de metal e chumbo enrolados.

A zona é conhecida como antigo refúgio dos judeus fugindo das sangrentas revoltas contra o Império Romano no primeiro e início do segundo séculos dC.

A gruta esta a menos de 100 quilômetros de Qumran, onde os Manuscritos do Mar Morto foram descobertos, e cerca de 60 quilômetros de Masada, cena da última parada e suicídio em massa de uma seita Zealote extremista frente ao cerco do exército romano em 72AD - dois anos após a destruição do Segundo Templo em Jerusalém.

É também perto de cavernas que foram usadas como refúgios de refugiados da revolta de Bar Kokhba, a terceira e última revolta judaica contra o Império Romano em 132AD.

A época é de crucial importância para os estudiosos da Bíblia, pois abrange as perturbações políticas, sociais e religiosos que levaram à separação entre judaísmo e cristianismo.

Ela terminou com o triunfo do cristianismo sobre os seus rivais como a nova religião dominante primeiro para os judeus dissidentes e depois para os gentios.

Neste contexto, é importante que, enquanto os Manuscritos do Mar Morto são pedaços de pergaminho ou papiro enrolados contendo as primeiras versões conhecidas dos livros da Bíblia hebraica e outros textos - o formato tradicional judaico para trabalho escrito - estas descobertas em chumbo estão em formato de livro, ou códice, que há muito tem sido associado com a ascensão do cristianismo.

Os códices visto pelo Mail on Sunday variam em tamanho. De itens menores que 7,5cm x 6cm até cerca de 25cm x 20cm. Cada um deles contêm uma média de oito ou nove páginas e parecem ser de molde, ao invés de inscritos, com imagens de ambos os lados e presos com aneis de chumbo. Muitos deles estavam severamente corroídos quando foram descobertos, embora tenha sido possível abri-los com cuidado.

O códice mostrando o que pode ser o rosto de Cristo parece não ter sido aberto ainda. Alguns códices mostram sinais de terem sido enterrados - embora isso possa ser simplesmente resultado de terem ficado em uma caverna por centenas de anos.

Ao contrário dos Manuscritos do Mar Morto, os códices de chumbo parecem consistir de imagens estilizadas, em vez de texto, com uma quantidade relativamente pequena de escrita, que parece estar em um idioma fenício, embora o dialeto exato ainda não tenha sido identificado. Na época em estes códices foram criados, a Terra Santa era povoada por diferentes seitas, incluindo essênios, samaritanos, fariseus, saduceus, dositeanos e nazarenos.

Não havia escrita comum e mistura considerável de linguagem e sistemas de escrita entre os grupos. O que significa que poderá levar anos de de estudos detalhados para interpretar corretamente os códices.

Muitos dos livros são selados em todos os lados com anéis de metal, sugerindo que eles não se destinavam a serem abertos. Isto poderia ser porque eles continham palavras sagradas que nunca deveriam ser lidas. Por exemplo, os primeiros judeus ferozmente protegiam o nome sagrado de Deus, que só era proferido pelo sumo sacerdote no templo em Jerusalém no Yom Kippur.

A pronúncia original se perdeu, mas tem sido transcritas em letras romanas como YHWH - conhecido como o Tetragrama - e é geralmente traduzida como Javé ou Jeová. Um livro selado contendo informações sagrado foi mencionado no livro bíblico de Revelações.

Uma placa foi interpretada como um mapa esquemático da Jerusalém Cristã apresentando cruzes romanas fora dos muros da cidade. Na parte superior pode ser visto de uma forma de escada. Isto é tido como sendo uma balaustrada mencionada em uma descrição bíblica do Templo em Jerusalém. Abaixo dele estão três grupos de alvenaria, para representar os muros da cidade.

Uma palmeira em frutificação sugere a casa de Davi, e há três ou quatro formas que parecem ser linhas horizontais intersectadas por linhas verticais curtas por baixo. Essas são as cruzes em forma de T que se acredita tenham sido usadas em tempos bíblicos (a forma de crucifixo familiar hoje é dita datar do século 4). A estrela de formas em uma longa linha representam a casa de Jessé - e então o padrão se repete.

Esta interpretação dos livros como artefatos proto-cristãos é apoiada por Margaret Barker, ex-presidente da Sociedade de Estudos do Antigo Testamento e uma das maiores especialistas da Grã-Bretanha no início do Cristianismo. O fato de uma figura ser retratada parece descartar o fato destes livretos estarem ligados ao judaísmo da época, onde o retrato de figuras reais era estritamente proibido, porque era considerada idolatria.

Se genuinos, parece claro que estes livretos foram, na verdade, criados por uma seita messiânica judaica primitiva, talvez intimamente ligada à igreja cristã primitiva e que estas imagens representem o próprio Cristo. Contudo uma outra teoria, defendida por Robert Feather - uma autoridade nos Manuscritos do Mar Morto e autor de O Mistério do Pergaminho de Cobre de Qumran - é que estes livros estão ligados a Revolta Bar Kochba Revolta dos anos 132-136 AD, a terceira maior rebelião dos judeus da Provincia de Judéia e a última das Guerras judaico-romanas.

A revolta estabeleceu um estado independente de Israel em partes da Judéia durante dois anos, antes do exército romano, finalmente, esmaga-la, com o resultado que todos os judeus, incluindo os primeiros cristãos, foram impedidos entrar em Jerusalém.

Os seguidores de Simon Bar Kochba, o comandante da revolta, o aclamaram como Messias, uma figura heróica que poderia restaurar Israel. Embora os judeus cristãos saudassem Jesus como o Messias e não apoiassem Bar Kochba, eles foram também impedidos de entrar em Jerusalém, juntamente com o restante dos judeus. A guerra e suas conseqüências ajudaram a diferenciar o cristianismo como uma religião distinta do judaísmo.

O líder espiritual da revolta foi o Rabino Shimon Bar Yochai, que lançou as bases para uma forma mística de judaísmo hoje conhecida como a Cabala, que é seguido por Madonna, Britney Spears e outros. Yochai se escondeu em uma caverna por 13 anos e escreveu um comentário secreto sobre a Bíblia, o Zohar, que evoluiu para os ensinamentos da Cabala. Feather está convencido de que parte dos texto nos livretos levam o nome do Rabino Bar Yochai.

Feaher diz que todos os códices conhecidos antes de cerca de 400 AD eram feitos de pergaminho e que o uso de chumbo impresso é desconhecido. Eles estavam claramente destinadas a existir para sempre e para nunca serem abertos. O uso do metal como material de escrita naquela época está bem documentado- no entanto, o texto sempre foi inscrito, não impresso.

Os livros estão atualmente na posse de Hassan Saida, em Umm al-Ghanim, Shibli, que fica no sopé do Monte Tabor, 18 milhas ao oeste do Mar da Galiléia.

Saida possui e opera uma empresa de transportes que consiste de pelo menos nove grandes caminhões de carroceria aberta. Ele é considerado na sua aldeia como um homem rico. Seu avô chegou lá a mais de 50 anos e sua mãe e quatro irmãos ainda moram lá.

Saida, que tem por volta de 30 anos, casado e com cinco ou seis filhos, afirma que herdou os livretos de seu avô.

No entanto, The Mail on Sunday tem conhecimento de reclamações que primeiro vieram à luz cinco anos atrás, quando seu parceiro de negócios beduíno encontrou um morador na Jordânia, que disse que tinha alguns artefactos antigos para vender.

O parceiro de negócios foi, aparentemente, apresentado a dois livros de metal muito pequenos. Ele os teria trazido pela fronteira com Israel e Saida ficara encantado por eles, chegando a acreditar que tinham propriedades mágicas e que era seu destino coletar tantos quanto pudesse.

A zona árida e montanhosa onde eles foram encontrados é tanto militarmente sensível quanto agronomicamente pobres. A população local tem por gerações complementado o seu rendimento pelo entesouramento e venda de artefactos arqueológicos encontrados em cavernas.

Mais cartilhas foram clandestinamente contrabandeadas através da fronteira por motoristas que trabalham para Saida - os menores normalmente usadas abertamente como amuletos pendurados em correntes no pescoço dos motoristas, os maiores ocultos por trás de painéis de carros e caminhões.

Para financiar a compra dos livretos dos jordanianos, que inicialmente os tinham descoberto, Saida alegadamente fez uma parceria com uma série de outras pessoas - incluindo o seu advogado de Haifa, Israel.

Os motivos de Saida são complexos. Ele constantemente estuda os folhetos, mas não toma cuidados especiais com eles, abrindo alguns e os revestindo no azeite de oliva, a fim de os "preservar".

Os artefatos foram vistos por colecionadores de antiguidades multi-milionário em Israel e na Europa - e Saida teve ofertas de dezenas de milhões de libras por apenas alguns deles, mas se recusou a vender.

Quando ele obteve os livretos, não tinha idéia do que fossem, ou mesmo se eles eram genuínos.

Entrou em contato com a Sotheby's em Londres, em 2007, em uma tentativa de contratar uma peritagem, mas a famosa casa de leilões se negou a lidar com eles, porque sua origem não era conhecido.

Logo depois, o autor e jornalista britânico Nick Fielding foi abordado por uma mulher palestina que estava preocupada que os livretos fossem vendidos no mercado negro. Fielding foi convidado a abordar o British Museum, o Museu Fitzwilliam, em Cambridge e outros lugares.

Fielding viajou para Israel e obteve uma carta da Autoridade de Antiguidades de Israel (IAA) dizendo que não tinha nenhuma objeção a que os objetos fossem levados ao exterior para análise. Parece que o IAA acreditava que os livretos eram falsos, baseando-se em que nada como aquilo havia sido descoberto antes.

Nenhum dos museus queria envolver-se, novamente por causa de preocupações com a proveniência. Fielding foi então convidado a abordar especialistas para descobrir o que eram e se eram verdadeiros. David Feather, que é também um metalúrgico bem como um especialista em Manuscritos do Mar Morto, recomendou a apresentação das amostras para análise de metais na Universidade de Oxford.

O trabalho foi realizado pelo Dr. Peter Northover, chefe da ciência de materiais-base do Grupo de Arqueologia e um perito mundial na análise de materiais metálicos antigos.

As amostras foram então enviados para o Laboratório Nacional de Materiais de Dubendorf, na Suíça. Os resultados mostraram que eles eram consistentes com a antiga produção de chumbo do período romano e que o metal era fundido a partir de minérios que se originaram no Mediterrâneo. Dr Northover disse também que a corrosão nos livros era improvável de ser moderna.

Enquanto isso, a política em torno da origem dos livros está se intensificando. A maioria dos estudiosos profissionais são cautelosos na pendência de mais investigações e apontam para o julgamento de falsificação em curso em Israel sobre o ossuário de pedra calcária antiga que supostamente teria abrigado os ossos de Tiago, irmão de Jesus.

A Autoridade arqueológica Israelense tentou acalmar problemas de proveniência, lançando dúvidas sobre a autenticidade dos códices, mas Jordan diz que vai 'exercer todos os esforços em todos os níveis' para que as relíquias sejam repatriadas.

O debate sobre se esses livretos são verdadeiras e, nesse caso, se representam os primeiros artefatos conhecidos da igreja cristã primitiva e os primeiros indícios da Cabala mística, sem dúvida ira seguir e crescer pelos próximos anos.

O diretor do Departamento de Antiguidades da Jordânia, Ziad al-Saad, tem poucas dúvidas. Ele acredita que eles podem de fato ter sido feitos pelos seguidores de Jesus, poucas décadas imediatamente após a sua crucificação.

"Eles realmente se igualam, e talvez sejam ainda mais significativos do que os Manuscritos do Mar Morto", diz ele. "A informação inicial é muito encorajadora, e parece que estamos olhando para uma descoberta muito importante e significativa. - Talvez a descoberta mais importante na história da arqueologia

"Se ele estiver certo, então nós realmente podemos estar olhando para o rosto de Jesus Cristo.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Da Humilhação ao Triunfo da Cruz

Seus primeiros líderes forma perseguidos e executados.Quatrocentos anos depois, transformou-se na religião oficial do mais poderoso império do mundo.Mais 200 anos e converteu os bárbaros e a Europa toda e tornou-se a mais poderosa empresa sobre a terra.

O cristianismo absolveu tiranos e motivou revolucionários. Justificou genocídios e inspirou heróis da justiça e da paz. E sempre sempre esteve do lado vencedor.

Uma das histórias mais conhecidas no mundo é a dos últimos dias de Jesus, um carpinteiro nascido na Galiléia, que se autoproclamava o messias, ou seja, o escolhido – ou ainda, em grego, o cristo. Como Confúcio, Sócrates ou Buda, Jesus não deixou documentos escritos. Sua passagem pelo planeta tampouco deixou vestígios para a arqueologia. Ele nada construiu. Não assinou seu nome em lugar algum. Seu corpo não foi mumificado. Cronistas da época não registraram sua história, nem nas atas oficiais do Estado romano, nem nas obras de história judaica. Flávio Josefo, cuja extensa obra Antiguidades Judaicas apareceu por volta do ano 90, mencionou-o apenas numa nota ocasional, a propósito do processo e do apedrejamento de “Tiago, irmão de Jesus, o assim chamado Cristo”. O Talmude babilônico fala de Jesus como um mago, um agitador que zombou das palavras dos sábios, teve cinco discípulos e foi enforcado na véspera da Páscoa. A maior parte do que sabemos sobre ele nos foi contada pela Bíblia, um livro de tradições religiosas, escrito a partir das narrativas de gente que o conheceu, ou conheceu quem o conheceu, ou que apenas ouviu falar dele.

Mas, se a vida de Jesus foi curta, misteriosa e triste, a história daqueles que o escolheram como líder e que acreditaram naquilo que ele dizia é longa e, apesar das intempéries, vitoriosa. Senão, vejamos: o grupo que andava com Jesus foi perseguido. Eram tão poucos, pobres, incultos e malvistos entre a população de Jerusalém que viviam escondidos. Apenas 380 anos depois, o imperador romano (antes ele mesmo um semideus) se tornaria cristão e, passados mais meros 500 anos, nenhum soberano europeu seria digno de sua coroa se ela não fosse abençoada pela cruz. Em mil anos, o cristianismo seria a instituição mais poderosa do planeta e, na virada do ano 2000, cerca de 2 bilhões de pessoas, um terço da população mundial, professavam a religião. Se descontarmos a fé e alguma interferência sobre-humana (e, se não o fizermos, teremos que continuar esta reportagem em alguma publicação cristã), como explicar tamanho sucesso? Mas vamos por partes. No começo desta história, é preciso responder como o cristianismo sobreviveu.

Ressureição

Jesus nasceu em Nazaré, mas o cristianismo nasceu mesmo em Jerusalém. Na época, uma cidade com cerca de 100 mil habitantes, na periferia do vasto Império Romano, que ia da atual Inglaterra ao Iraque. A região, ocupada desde 63 a.C., pouco contribuía para o império e a vida era plantar, pastorear umas cabrinhas e pagar impostos para o templo, que os dividia com os representantes de Roma. Havia um rei que não mandava nada e uma pobreza endêmica. Em Jerusalém ficava o templo, cujos muros sagrados, segundo a tradição judaica, teriam sido erigidos sobre os escombros do original construído pelo próprio Salomão para abrigar as tábuas dadas a Moisés por Deus. Ou seja, era coisa importante. A vida dos judeus se organizava em torno do templo: ali se fazia comércio, encontravam-se os amigos, fazia-se política e, é claro, conspirava-se contra Roma.

Foi nesse cenário que um grupo formado por pescadores, trabalhadores braçais e pequenos comerciantes apareceu falando de um homem que morrera crucificado e que, por incrível que pudesse parecer, ressuscitara. A notícia de que o messias estivera por ali já circulava entre o povo da cidade. Alguns haviam ouvido falar de Jesus, que fazia curas e andava pelo deserto. Uns talvez até conhecessem João Batista – outro pregador que fizera algum sucesso tempo antes –, mas ninguém nunca ouvira dizer que ele revivera dos mortos. “O mito do Cristo que morre e ressuscita exerceu um fascínio incomum entre as pessoas e acabou desencadeando um vertiginoso crescimento da seita cristã”, afirma Paulo Augusto de Souza Nogueira, professor de ciências da religião da Universidade Metodista de São Paulo. “Na época, havia um grande sincretismo religioso no Império Romano e, ao contrário do que se acredita, um intercâmbio do judaísmo com diferentes religiões mediterrâneas. Isso abriu espaço para doutrinas divergentes da tradição judaica, fato que preparou o caminho para a disseminação do cristianismo.”

Por volta do ano 40, o grupo já pregava nas sinagogas e dizia ser Jesus o cristo que todo mundo esperava. A mensagem sobreviveu em Jerusalém entre os judeus e não há indícios sobre atos de perseguição aos cristãos por parte dos romanos ou das autoridades judaicas. Quem não sobreviveu foi a própria Jerusalém, que entre 66 e 70 foi destruída pelos romanos – com templo sagrado e tudo – após uma revolta contra o pagamento de impostos. No entanto, para sorte do cristianismo, quando isso aconteceu a maioria dos cristãos não estava mais lá. A religião se propagara e chegara à Europa. Nesse processo, um homem teve especial importância. Nascido em Tarso, na Ásia Menor (na atual Turquia), um centro de cultura helenística, e cidadão romano, Saulo era judeu e aos15 anos mudou-se para Jerusalém para estudar numa conceituada escola da cidade. Sobre ele, o que se sabe está na Bíblia. Saulo, que passaria para a história como Paulo, não chegou a conhecer Jesus, mas em Jerusalém ouviu falar de seus seguidores. No início, não gostou nadinha deles, mas depois acabou se convertendo. A partir daí, passou a ser o principal propagador da nova fé. Entre 46 e 60, viajou por todo o mundo mediterrâneo falando de Jesus. “A influência de Paulo é indiscutível”, diz o historiador André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Se não fosse ele, o cristianismo provavelmente não teria passado de mais uma seita judaica.” Mas como ele fez isso? “Paulo era um teólogo prático, que cortou o cordão umbilical entre a nova fé cristã e o judaísmo, tornando-a mais aceitável para romanos, gregos e outros povos mediterrâneos”, afirma o pastor Martin Dreher, professor de história da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, em seu livro A Igreja no Império Romano. As viagens de Paulo e sua mensagem, expressa em cartas enviadas às comunidades que fundou, foram essenciais para a doutrina cristã adquirir o caráter universal que tem hoje. Nelas, defendeu a obediência dos cristãos ao império, o pagamento de impostos, fez apologia da escravidão, legitimou a submissão feminina. Além disso, pregou contra a obrigatoriedade da circuncisão. O que foi um alívio para os homens.

Ao final do primeiro século, o cristianismo tinha adquirido alma própria. Cidades como Antioquia, capital da província romana da Síria (onde pela primeira vez, por volta do ano 45, o termo “cristão” foi usado para identificar os seguidores de Jesus), Éfeso, na Ásia Menor, Corinto, na Grécia, e Alexandria, no norte da África, já tinham comunidades bem estruturadas, que congregavam cerca de 8 mil seguidores. Não parece muito, não é verdade? Mas os cristãos haviam sobrevivido e, o mais importante para a nossa história, chegado ao centro do mundo: Roma.

Até o início do século 4, os cristãos tiveram que sobreviver nas sombras. No início, passaram quase despercebidos: reuniam-se sem alarde e conquistavam cada vez mais adeptos. “A maioria das religiões daquela época era ligada à etnia, à nacionalidade. O cristianismo, ao contrário, não tinha pátria e estava desatrelado de um rei, ou de um país. O reino de Jesus, diziam, estava em qualquer lugar e isso o ajudou a ser aceito em Roma, onde viviam muitos estrangeiros”, diz o teólogo e professor Ralph Norman, da Universidade de Canterbury, no Reino Unido. Mas o que ajudava a crescer também atraía a desconfiança. Historiadores romanos do século 2, como Tácito e Suetônio, registraram a perseguição aos cristãos, em Roma, tanto no período de Cláudio, imperador entre 41 e 54, quanto no de seu sucessor, Nero, que governou até 68. A perseguição gerou mártires entre os cristãos e seus túmulos passaram a servir de local de reuniões religiosas. “A adoração aos mártires, ou ‘homens santos’, é um sinal de como o cristianismo assimilou aspectos do culto greco-romano aos antepassados. Um sincretismo impensável na tradição judaica”, afirma Norman. Em 303, o imperador Dioclesiano decretou que todo cristão deveria ser preso e obrigado a cultuar o imperador.

Mas quem estava com os dias contados não era o cristianismo. Era o império. Crise, inflação, revoltas populares e derrotas militares: o mundo romano não era mais aquele. “O cristianismo não foi uma das causas da queda do império, mas se beneficiou de seu declínio”, diz André. Os cristãos formavam comunidades organizadas, que se reuniam em torno das igrejas e respeitavam uma estrutura hierárquica formal, composta por supervisores (em grego, episcopos, ou bispos), diáconos e presbíteros. Além disso, o cristianismo já havia se adaptado melhor às tradições romanas e vice-versa.

Em 313, o novo governante, Constantino I, percebeu que, ao invés de combater a cristandade, poderia trazê-la para seu lado e usá-la como base de sustentação de seu império. “Constantino foi um visionário. Fez uma opção política pelo cristianismo, numa época em que apenas 10% da população que governava pertencia a essa fé”, diz Martin Dreher. Com o seu gesto, o imperador pôs fim às perseguições e deu à Igreja um poder inédito. Ao mesmo tempo, preparou o caminho para que a fé cristã se tornasse a religião oficial do Império Romano – o que viria a ocorrer em 380, com o batismo do imperador Teodósio – e chegasse aos limites do império, como as ilhas britânicas e o Egito, por exemplo.

Europa de joelhos

No início do século 5, o cristianismo encontrava-se fortalecido em Constantinopa (atual Istambul, na Turquia), a nova capital do Império Romano, mas no Ocidente a coisa andava feia. O império pouco podia fazer contra a invasão dos bárbaros, povos belicosos de origem germânica, e em 452, quando Átila, chefe dos hunos, chegou às portas de Roma, não havia outra autoridade no local senão o papa Leão Magno. Só lhe restou pedir clemência. E quando, em 476, a cidade foi finalmente conquistada por Odoacro, rei dos hérulos, a Igreja já era tão influente que perdeu a riqueza, mas manteve intacta sua estrutura eclesiástica. Mais uma vez, o cristianismo soube se adaptar aos novos tempos. Os bárbaros acreditavam em forças da natureza, seus deuses vinham das florestas e seus ritos eram repletos de magia. Havia ainda deidades femininas e objetos sagrados, como o cálice, por exemplo, que tinha o poder de dar a vida e era usado em cerimônias festivas. “Nessa época surgem diversas novidades na liturgia cristã, algumas sob clara influência dos cultos pagãos”, diz Norman. “As imagens e relíquias de santos, por exemplo, passam a ser aceitas e a elas são atribuídos poderes mágicos. A própria Maria, mãe de Jesus, quase esquecida no mundo cristão-romano, ganha um novo papel. Muito mais místico: o de ‘mãe de Deus’.”

A queda de Roma desencadeou lutas ferozes entre os vários povos pelo domínio do espólio imperial: visigodos, vândalos, francos, hérulos, anglos e saxões, entre outros, queriam sua parte e a única instituição unificada e com algum nível de organização era a Igreja cristã. E os reis bárbaros sacaram isso. Alguns, por isso mesmo, perseguiram e mataram padres, papas e bispos. Outros preferiram se unir à Igreja. Em 508, Clóvis, rei dos francos, foi batizado. “Foi um momento importante, que fez com que a Igreja passasse a contar com a proteção do Estado e a Gália (atual França) tornou-se um centro de irradiação do cristianismo”, afirma o padre José Oscar Beozzo, diretor do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular, em São Paulo. Em 587, foi a vez do rei visigodo Recaredo, que dominava a região da atual Espanha. Dois anos depois, Etelberto e Berta, o casal real da Grã-Bretanha, levaram os anglo-saxões para o rebanho cristão.

O contrato entre os reis e a Igreja duraria por séculos e estaria na raiz da legitimação divina do poder monárquico. O cristianismo estaria comprometido, a partir de então, com a formação dos países e dos sentimentos nacionais na Europa. Ora, quem são os franceses senão os bárbaros francos que se tornaram cristãos? O feudalismo separaria os povos em glebas e castelos, mas a religião os uniria numa nacionalidade única. Além disso, uma vez cristãos, os reis passaram a impor sua fé adiante. O maior expoente nesse quesito foi o rei franco Carlos Magno. Com a espada em uma mão e a cruz na outra, ele derrotou saxões, ávaros e lombardos e expandiu os domínios da cristandade. No Natal do ano 800, Carlos foi coroado pelo papa Leão III como o imperador do Sacro Império Romano-Germânico. “Os cristãos do Oriente nunca aceitaram a consagração de Carlos Magno. Se, por um lado, esse episódio fortaleceu o cristianismo no Ocidente, por outro lançou a semente política do cisma que se concretizaria dois séculos depois”, afirma o teólogo José Oscar.

Segundo milênio

No alvorecer do ano 1000, o cristianismo passou por profundas transformações. A primeira ocorreu em 1054 com a ruptura entre Oriente e Ocidente. A Igreja de Constantinopla andava descontente com o papado de Roma e divergia quanto a costumes eclesiásticos e condutas litúrgicas ocidentais, como a obrigatoriedade de rezar missas em latim – os orientais defendiam que a liturgia fosse proferida na língua local –, a adoração de imagens e a obrigatoriedade de celibato – no Oriente, clérigos abaixo da posição de bispo podiam casar. A divergência chegou a tal ponto que o patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, foi excomungado pelo papa Leão IX. Como resultado, rompeu com Roma e criou a Igreja Ortodoxa. “Foi a primeira grande divisão no cristianismo e acabou com a unidade da Igreja”, afirma o pesquisador americano Earle Cairns, no livro O Cristianismo Através dos Séculos. Segundo ele, o período que se seguiu ao cisma até o início do século 14 pode ser considerado como o de maior influência do papado sobre o poder temporal.

Uma das conseqüências diretas desse extremo poder exercido pela Igreja nessa época, foram as Cruzadas. A primeira teve início em 1096 e durou três anos. Atendendo ao apelo do papa Urbano II, cerca de 25 mil peregrinos cruzaram a Europa com o objetivo de conquistar Jerusalém, que se tornara uma cidade muçulmana no século 7 e que, na época, estava sob o controle dos turcos selêucidas. Depois de uma dura batalha, os cruzados tomaram a cidade e protagonizaram uma carnificina, massacrando milhares de judeus e muçulmanos. “Se você estivesse ali, seus pés ficariam mergulhados até os tornozelos no sangue dos mortos”, declarou o cronista Fulcher de Chartres, que participou da expedição. Até o século 13, outras sete cruzadas seriam realizadas, sendo que, ao final delas, o objetivo das expedições, a libertação do Santo Sepulcro, local onde o corpo de Jesus supostamente havia sido guardado, não havia sido atingido. As Cruzadas, no entanto, assentaram o poder do papado sobre a cristandade e tiveram forte influência política, social e econômica no mundo ocidental.

Outro desdobramento do poder totalitário da Igreja foi a criação da Santa Inquisição, um tribunal de padres nomeados diretamente pelo papa, que tinha o poder de acusar, julgar e executar quem bem quisesse. Em países como a Espanha e a França, os inimigos da Igreja (e nessa designação cabiam de príncipes acusados de sodomia a cientistas julgados por bruxaria) passaram por maus bocados. Em 1252, o papa Inocêncio IV autorizou o uso da tortura e da fogueira para arrancar confissões. “Era um negócio sujo, mas quase todos após [Santo] Agostinho concordavam que salvar o corpo pela amputação de um membro era uma atitude sábia. Obviamente, a Igreja romana era o corpo e os hereges, o membro doente”, escreveu o historiador canadense Bruce Shelley em História do Cristianismo. No auge da perseguição, entre 1570 e 1630, estima-se que mais de 50 mil pessoas foram condenadas à morte em todo continente.

Reforma contra reforma

Na metade do segundo milênio, a sociedade européia encontrava-se em ebulição. Na Europa, o sistema feudal dava mostras de estar superado e os estados nacionais tinham surgido como unidades políticas autônomas. “A religião que fora a base da sociedade até então não dava mais conta da revolução que acontecia com o crescimento das cidades e a ascensão de uma classe média, que não se contentava com sua condição social”, diz Martin Dreher.

O momento era de contradições também no campo teológico. A Igreja, riquíssima detentora de terras, vivia em meio à pobreza crescente e às ondas de fome e doenças. O celibato clerical não era respeitado e os papas apoiavam monarquias sanguinárias. Um deles, Alexandre VI, teve quatro filhos e costumava promover orgias no Vaticano. Foi nesse cenário de degradação que a Igreja viveu seu segundo grande racha. Revoltado contra o comércio de indulgências – uma espécie de documento vendido pela Igreja que perdoava a pessoa de todos os seus pecados –, o monge alemão Martinho Lutero rompeu com Roma, dando início ao movimento reformista, chamado protestante.

À parte a polêmica levantada por suas posições teológicas – criticava a riqueza e a corrupção na Igreja e o papel privilegiado dos padres na sociedade, entre outras coisas –, Lutero dava força a uma classe de pessoas que cada vez tinha mais poder econômico, mas nenhum político: os comerciantes. Os protestantes não faziam muita onda com as “obras” e diziam que a fé bastava para ir ao céu. Ou seja, podem guardar seu dinheirinho, podem ter lucro sem remorso. Lutero foi excomungado pelo papa Leão X, em 1521. “A Reforma Protestante foi uma adequação da religião cristã ao mundo moderno”, afirma Lauri Emilio Wirth, coordenador da pós-graduação em ciências da religião da Universidade Metodista de São Paulo.

Mas a resposta do clero romano ao movimento reformista não demorou. O Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1563, oficializou a separação entre católicos e protestantes e deu novo fôlego à Igreja Católica, que não deixou de ser a principal influência sobre os reis europeus.

Mas, no Novo Mundo que nascia, haveria espaço para católicos e protestantes. Os europeus haviam chegado à América e, com isso, mais um contingente enorme de almas pagãs estava pronto para ser conquistado. A cristianização foi um dos instrumentos para a colonização do novo continente e, desde cedo – tanto o protestantismo, no Norte, como o catolicismo, na parte espanhola e portuguesa – surgiram como fontes de influência moral e política nas novas terras. Também aqui se repetiria o sincretismo entre o cristianismo e as crenças indígenas (principalmente no caso da América espanhola) e as religiões dos negros trazidos como escravos, basicamente no Caribe e no Brasil.

No final do século 18, no entanto, a própria estrutura do Estado nacional estava em xeque. O Iluminismo, movimento que enfatizava o uso da razão e da ciência para explicar o mundo, questionava o papel da religião na sociedade e queria uma nova ordem social em que os interesses humanos estivessem no centro das decisões. Contra as designações divinas, os homens teriam nascido todos livres e iguais. O filósofo francês Voltaire, uma das mais destacadas figuras do movimento, era um crítico incansável da religião e costumava referir-se ao cristianismo como “coisa infame”. Para os iluministas, a preocupação básica do homem não era a vida futura, como pregava a religião, mas a satisfação neste mundo. Em 1789, inspirados nessas idéias, os franceses – olha os descendentes de Carlos Magno aí – derrubaram a monarquia e instituíram a separação entre Igreja e Estado. Uma revolução e tanto.

Cristo vive

Depois de caminhar durante séculos de braços dados com o Estado, a Igreja passou os dois últimos séculos acostumando-se a sua nova posição. Não que sua influência tenha desaparecido ou seus fiéis tenham diminuído. Pelo contrário. No início do século 19, os seguidores do cristianismo somavam 230 milhões. Hoje são 2 bilhões.

Uma das experiências mais marcantes para esse crescimento foi o surgimento da Igreja Pentecostal, nascida de um ramo protestante nos Estados Unidos. Hoje ela tem o segundo maior rebanho cristão do planeta, com 500 milhões de fiéis. Mas entre os grandes ramos do cristianismo tradicional, como o catolicismo, a coisa também não ficou parada. A realização do Concílio Vaticano II, no início dos anos 1960, promoveu a modernização da religião e enfatizou o movimento ecumênico. Foi a partir desse encontro que as missas deixaram de ser celebradas exclusivamente em latim e passaram a ser rezadas na língua local.

O ecumenismo, por sinal, tem sido uma das marcas do papa atual João Paulo II. Durante os 26 anos de seu mandato, ele realizou viagens ao redor do mundo e esboçou movimentos de reaproximação com os cleros ortodoxo e anglicano (ramo protestante na Inglaterra). Hoje o cristianismo convive melhor com outras religiões. O papa teve, ainda, um importante papel na derrocada do regime comunista da União Soviética. No alvorecer do terceiro milênio, desculpou-se pelos erros cometidos pela Igreja no passado, notadamente pelo aval dado às atrocidades cometidas pelos conquistadores portugueses e espanhóis contra os povos nativos das Américas.

Suas campanhas, no entanto, não impediram que o catolicismo – e o cristianismo como um todo – ingressasse no século 21 fragilizado. Crenças doutrinárias inflexíveis relacionadas a temas sexuais – como aborto, homossexualismo e castidade pré-marital – e uma estrutura hierárquica fortemente masculina mostram-se pouco atraentes numa sociedade secularizada como a ocidental. Com isso, é cada vez menor o número de jovens que se dedicam ao sacerdócio e a Igreja Católica tem dificuldade de conquistar novas ovelhas. Atualmente, o islamismo é a fé que mais cresce no mundo e já é a segunda maior religião em vários países europeus, como França e Alemanha. Apesar disso, é inegável que o cristianismo ainda continue sendo uma das mais fortes instituições do planeta. E, a julgar pelas grandes dificuldades vencidas nos últimos 2 mil anos, não é de surpreender que, diante desse novo desafio, ele venha a superá-lo e fique ainda mais fortalecido. E, só para lembrar: nunca – nunca – houve um presidente americano não-cristão.

Via-Crúcis

45
Pela primeira vez o termo "cristão" é usado, em Antioquia, na Ásia Menor, para designar os seguidores de Jesus
46
Paulo de Tarso inicia suas jornadas missionárias. Nos anos seguintes, ele realizaria mais três viagens apostólicas
64
Os cristãos são acusados e martirizados pelo incêndio de Roma
7O
Jerusalém é destruída pelos romanos. Judeus e cristãos se dispersam pelo mundo
100
A população mundial é estimada em 310 milhões de pessoas. Os cristãos somam 8 mil
301
A Armênia torna-se a primeira nação a adotar o cristianismo como religião oficial
313
Os imperadores romanos do Ocidente, Constantino I, e do Oriente, Licínio, divulgam o edito de Milão, documento que confere liberdade de culto aos cristãos
380
O imperador Teodósio I é batizado e declara o cristianismo a religião oficial do Império Romano
384
O bispo de Roma, Damásio, encomenda a Jerônimo a primeira compilação em latim dos textos conhecidos como “evangelhos”. Reunidos aos textos judaicos, a coleção chamada de Vulgata tornaria-se a primeira versão da Bíblia
385
O bispo de Roma passa a ser chamado de papa
476
Roma cai diante dos povos bárbaros. É o início da Idade Média, período que se estenderia até 1453 com a tomada de Constantinopla pelos turcos
500
Batismo de Clóvis, rei dos francos, primeiro chefe bárbaro a acolher a fé cristã
800
Carlos Magno é coroado imperador do Sacro Império Romano-Germânico pelo papa Leão III
1054
Primeiro grande cisma da Igreja cristã. O patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, rompe com o papa e cria a Igreja Ortodoxa
1077
O papa Gregório VII destitui o imperador Henrique IV, governante do Sacro Império Romano-Germânico, que se opôs à supremacia de Roma. Para perdoar Henrique IV, o papa obrigou-o a ficar descalço na neve fora dos portões do seu palácio
1095
O papa Urbano II convoca a primeira Cruzada. Outras sete ocorreriam até 1270
1231
Sob o papado de Gregório IX, é oficializada a Inquisição, o tribunal eclesiástico criado para combater os hereges
1305
Início do papado de Avignon, período em que a residência do papa foi alterada de Roma para Avignon, no sul da França
1517
Segundo grande racha da Igreja cristã. O teólogo Martinho Lutero rebela-se contra a venda de indulgência e dá início à Reforma Protestante
1545
Início do Concílio de Trento, que se estenderia por 18 anos. O encontro oficializou a separação entre católicos e protestantes
1789
A Revolução Francesa provoca a separação entre a Igreja e o Estado
1800
Os cristãos são 23% da população do planeta, estimada em 1 bilhão de pessoas
1870
O Concílio Vaticano I proclama a infalibilidade papal
1907
Surge a primeira igreja pentecostal, atualmente o segundo maior ramo do cristianismo, que congrega 500 milhões de fiéis
1962
Convocado pelo papa João XXIII, o Concílio Vaticano II é uma tentativa de modernizar o catolicismo
1978
O cardeal polonês Karol Wojtyla é eleito o primeiro papa não-italiano em 450 anos. Seu pontificado é marcado por forte conservadorismo e viagens de peregrinação
2004Dos 6,4 bilhões de habitantes do planeta, 2,1 bilhões professam a fé cristã. Metade são católicos. Os protestantes somam 300 milhões e os ortodoxos 200 milhões. Os demais são pentecostais

PAULO

Uma das principais figuras do cristianismo primitivo foi o judeu helenista Saulo (ou Paulo) de Tarso. Nascido por volta do ano 5, ele se converteu ao cristianismo durante uma viagem para Damasco, na Síria, e foi, juntamente com outros missionários como Barnabé e João Marcos, um dos maiores responsáveis pela propagação da religião na Antiguidade. Fez quatro viagens pelo Mediterrâneo e fundou várias igrejas. Cartas enviadas a essas comunidades podem ser lidas no Novo Testamento. Segundo a tradição, foi morto em Roma, por volta do ano 67

CARLOS MAGNO

Também chamado de Carlos I, Carlos Magno, rei dos francos (768 e 814) e imperador dos romanos (800 a 814), foi um dos grandes responsáveis pela consolidação do cristianismo na Idade Média, época em que a Europa era dominada por povos bárbaros, não cristianizados. Filho de Berta e Pepino, o Breve, era um homem forte (tinha quase 2 metros) e inteligente, mas ao mesmo tempo autoritário e, por vezes, sanguinário. Para defender a Igreja Católica, instituiu a pena de morte para quem não jejuasse nos feriados religiosos ou comesse carne às sextas-feíras.

CONSTANTINO I

O imperador romano Flavius Valerius Constantinus, ou simplesmente Constantino I, teve papel central na história do cristianismo, pois foi ele quem concedeu, em 313, liberdade religiosa para os cristãos. Até então, os seguidores de Cristo eram brutalmente perseguidos. Constantino, no entanto, não era nenhum santo. Ele costumava eliminar adversários políticos e quem o desagradasse, inclusive familiares, como a esposa Fausta e o filho Crispo. Sua opção pelo cristianismo, mais que um ato de fé, foi uma tentativa oportunista de salvar Roma da decadência em que se encontrava. Prova disso é que seu batismo só aconteceu no leito de morte.


LUTERO

Filho de uma família humilde da aldeia de Eisleben, na Saxônia, o monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546) liderou o levante religioso conhecido como Reforma Protestante. Considerado um homem sábio e letrado, ele era doutor em teologia e ensinava na Universidade de Wittenberg. Sua oposição à venda de indulgências e a publicação das 95 teses que deram início mudaram para sempre a história do cristianismo. Lutero foi autor da primeira tradução da Bíblia para o alemão.


JOÃO PAULO II

Primeiro papa não-italiano desde 1523, o polonês Karol Wojtyla nasceu em 18 de maio de 1920 em Wadowice, perto de Cracóvia, e foi escolhido como Sumo Pontífice da Igreja Católica em 22 de outubro de 1978. Seu longo pontificado – o segundo mais extenso da história – tem sido marcado por inúmeras peregrinações, que ajudaram a espalhar a influência papal pelos mundos católico e não-católico. No pIano político, João Paulo II teve papel fundamental na derrocada dos regimes comunistas do Leste Europeu. Extremamente conservador, ele condena com veemência o aborto, o homossexualismo e o controle da natalidade por métodos artificiais.





Quetzalcóatl, um dos deuses mais importantes para os Astecas

A cultura asteca, sua história, sua sociedade, sua produção artística estão intimamente ligadas às suas crenças religiosas. Essa religião é, principalmente, animista e dualista, na qual magia e cosmogonia fundem-se em um único elemento. Segundo Soustelle, os Astecas são os indígenas mais religiosos do México. Sua religião simples e dualista, quase que totalmente astral – ao menos em sua origem – foi enriquecendo-se ao longo do tempo através dos contatos com os povos sedentários do Centro. Conforme seu império foi se expandindo foi se incorporando novos elementos religiosos. Tanto que por volta do século XVI, sua religião era um denso conjunto de crenças e cultos de origens distintas.

A característica marcante da escatologia asteca é o seu caráter fatalista, onde não há vestígios de esperança. O caráter dualista domina o mundo espiritual asteca, estando presente nas forças da natureza e no panteão. Os deuses foram criados pela união dos princípios masculino e feminino: “os membros do casal supremo, Senhor e Senhora da Dualidade”.

Segundo Lehmann, a religião exercia um domínio total na vida dos astecas e absorvia grande parte de sua força. Os deuses comandavam tanto o Estado como o indivíduo. Todos os acontecimentos da vida, o dia do nascimento e o da morte, o bom ou mau destino, tudo fazia parte dos desígnios divinos. O princípio duplo inexoravelmente se manifesta também na formação dos deuses, e na formação da humanidade.

A maior dificuldade em se estudar a religião asteca e seu panteão (sua mitologia) está no caráter mágico dela, que se deve à visão dualista do mundo. Os astecas, ao assimilar outros povos, assimilavam também suas divindades e seus cultos. Todavia essa incorporação de novas divindades era organizada pela classe sacerdotal que buscava reduzir a quantidade de divindades considerando cada deus como multifacetado.

Essa multiplicidade de deuses de diversas origens e diferentes atributos é visível quando se tenta ordena-los. Cada divindade asteca podia sofrer diversas manifestações e apresentar-se com diferentes atribuições. É o exemplo de Quetzalcóatl, um dos deuses mais importantes. Sua origem é tolteca, porém há manifestações suas por toda a América Latina. Para os astecas ele é o deus do vento, da vida, da manhã, do planeta Vênus, dos gêmeos, dos monstros, patrono das artes e da sabedoria, criador e pai dos homens. Seus nomes são: Quetzalcóatl, Ehécatl, Tlahuizcalpantecuhtli, Ce Ácatl, Xólotl, entre outros.

O nome Quetzalcóatl significa literalmente “serpente de plumas”, porém quetzal é também o símbolo de “coisa preciosa”, e cóatl significa gêmeo. Portanto o nome Quetzal-cóatl pode ser traduzido como “gêmeo precioso”, indicando sua atribuição de estrela matutina e vespertina. Esta identificação com o planeta Vênus deu origem a diversos mitos e explica quase todas as lendas de Quetzalcóatl.

Dentre os mitos envolvendo esse deus o mais importante é o da criação do homem. O mundo para os astecas, foi criado varias vezes. Isso porque a criação era seguida pela destruição por cataclismos. A última vez que o homem foi criado o deus Quetzalcóatl foi ao mundo dos mortos recolher os ossos dos homens, verteu sobre eles seu próprio sangue e deu vida novamente aos homens. Essa lenda explica a importância dos rituais de sacrifício humano e o papel fundamental que o sangue exerce nessa religião. Os homens, para manter-se vivos precisam manter vivos os deuses, alimentando-os com sangue humano. Apesar dessa lenda que justifica o sacrifício humano estar ligada diretamente à Quetzalcóatl consta que ele, durante seu governo sobre o mundo, proibiu essa prática.

Quetzalcóatl foi, sem dúvida, o mito mais difundido por toda a Meso-América. Com caráter multiforme, porém sempre benigno. Esse aspecto valente, bom, de herói integrador seria muito bem aproveitado pelos evangelistas espanhóis no momento de “garimpar” almas para a religião cristã. Do mito de Quetzalcóatl há varias versões, entretanto nenhuma delas sobreviveu à conquista espanhola de 1519 sob a forma escrita. Os pontos em comum na grande maioria das versões é o fato de que Quetzalcóatl, após criar os homens, desceu das efemérides divinas e encarnou como homem, veio para ensinar à humanidade todas as artes, a sabedoria e a bondade.

O homem Quetzalcóatl foi um rei tolteca muito justo, sacerdote, astrônomo, foi quem adaptou o calendário maia em algumas partes e estruturou o calendário tolteca, assimilado mais tarde pelos astecas. Seu reinado marca a assimilação do povo maia pelos toltecas. Teria morrido em 5 de abril de 1208, exilado em algumas versões, traído e morto em outras. Independente da versão de sua morte e das condições que esta ocorreu o certo é que ao deixar o trono tolteca Quetzalcóatl afirmou que retornaria. Assim ele se converteu no centro de uma cosmologia religiosa. Esta história mitológica chega, na forma de tradição oral, aos ouvidos dos conquistadores espanhóis que rapidamente vão interpretá-la e aproveitar-se dela.

Um dos escritores que percebeu o caráter “messiânico” da lenda de Quetzalcóatl foi Bernardino de Sahagún. No primeiro livro de sua Historia general de las cosas de Nueva España ele tenta recuperar a figura de Quetzalcóatl assimilando-a a Jesus Cristo. A intenção de Sahagún foi explicar a outros missionários a concepção de mundo dos mexicas, para com isso poder afirmar o cristianismo e melhor evangelizar.

Notória é a visão tendenciosa que Sahagún passa em sua obra, nesta assimilação da figura do deus tolteca existe um interesse ideológico deformador. Por outro lado, a aristocracia mexica pós-conquista também possuía o peremptório desejo de reabilitar Quetzalcóatl, como uma figura quase cristã, pois isso legitimava seu poder e a conseqüente manutenção deste.

Sahagún não define o retorno de Quetzalcóatl como sendo uma profecia da chegada dos espanhóis, embora perpasse a idéia de que os espanhóis são companheiros do deus. Outros escritores vão além, é o exemplo de Las Casas que sugere que os cristãos são filhos e irmãos de Quetzalcóatl. Desta maneira tentou-se converter Quetzalcóatl em um apóstolo de Cristo para poder cristianizar mais facilmente. Como Paz salienta: a mentalidade européia viu-se confrontada pelas impenetráveis civilizações da América.

A partir de meados do século XVI foram feitas diversas tentativas para suprimir as diferenças entre mexicas e espanhóis. Alguns alegavam serem os antigos mexicanos descendentes de uma tribo perdida de Israel; outros os consideravam como sendo de origem fenícia ou cartaginesa; outros ainda estabeleciam relações entre certos ritos dos astecas semelhantes a cerimônias cristãs, imaginando que aqueles fossem um eco distorcido da pregação do evangelista São Tomé. Essa corrente defendia que o evangelista teria vindo para as Américas e adotado o nome de Quetzalcóatl.

A crença em uma evangelização realizada muito antes da chagada dos espanhóis no Novo Mundo, realizada por São Tomé, resulta da leitura de São Paulo que afirma que a palavra de Cristo foi levada até os confins da terra, pelos apóstolos.

Atualmente sabemos da existência de correntes marítimas ligando a costa oeste da África às laterais leste da América, todavia o pensamento quinhentista desconhecia esse fato. Lafaye informa que a descoberta de textos bíblicos e de fatos novos permeados de crenças antigas seriam argumento suficiente para corroborar a idéia de que Quetzalcóatl foi o apóstolo São Tomé.

Mesmo entre os índios houve confusão a respeito da similitude dos espanhóis com o mito do regresso de Quetzalcóatl. A lenda rezava que Quetzalcóatl regressaria de seu exílio e novamente instauraria a idade de ouro. Esta profecia possuía um caráter cronológico. O deus deveria retornar em um ano 1 acatl, coincidentemente os espanhóis aportaram no México em um ano 1 acatl, o ano de 1519. O próprio Hernán Cortéz foi confundido com o deus. Porém essa crença não logrou. O rei Montezuma mandou levar até Cortés os ornamentos sagrados de Quetzalcóatl com a finalidade de verificar a identidade do deus, o que não ocorreu.

Mesmo que ainda restassem dúvidas a respeito da identificação de Cortés com o deus, o massacre efetivado pelas tropas espanholas em Cholula, cidade sagrada de Quetzalcóatl, bastaria para dissipar quaisquer equívocos. Lafaye demonstra que a profecia de Quetzalcóatl “aparece como um caso particular, para México, de uma crença comum na maioria das populações indígenas. É certo que os espanhóis foram posteriormente considerados filhos do Sol, companheiros de Quetzalcóatl, este foi um estratagema político para facilitar a penetração do continente, mas serviu também como fonte de inspiração para os missionários criarem uma brecha para a evangelização.

Se São Tomé esteve na Meso-América pregando a “boa-nova”, ou se algum outro europeu esteve em terras mexicas em alguma era pré-colombiana, são conjecturas que até o momento não se podem provar. O fato é que os povos do México possuíam uma religião bastante complexa e dentre seu panteão destaca-se a importante figura de Quetzalcóatl. Esse deus foi criador da humanidade, professor dos homens, foi deus e rei encarnado. Sua morte causou tristeza em seu povo, a ponto de se construir uma profecia de seu retorno.

Como todo herói “messiânico”, indícios de sua volta não faltaram. Como se não bastasse a superstição do povo, os invasores chegam sob a auspiciosa data profética.

Os evangelizadores espanhóis tinham consciência de seu papel de divulgadores da “verdade” cristã e lançaram mão dos meios que lhes foram apresentados. Legitimar sua presença em solo mexicano através de um mito cosmogônico foi um meio para alcançar a mentalidade desse povo a ser conquistado e catequizado.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Rabi Akiva: o maior dos rabinos da história judaica

RABI AKIVA, UMA HISTÓRIA DE CORAGEM E AMOR

É o que se pode chamar de uma verdadeira história de amor. Uma história de coragem, heroísmo e sacrifício que, ao mesmo tempo, aquece o coração e o arrebata; inspira-nos, provocando júbilo e lágrimas. É a história do pastor humilde que se torna o maior dos rabinos da história judaica.

Akiva, filho de José, trabalhava para Kalba Savua, um dos homens mais ricos de Jerusalém, conhecido por sua generosidade. Rachel, sua bela filha, tomou-se de amores por Akiva, prometendo tornar-se mulher dele se ele concordasse em dedicar sua vida ao estudo da Torá. Mas, além de pobre, ele, aos 40 anos, era analfabeto. Certo dia, Akiva percebeu que as gotas d'água que caíam sobre uma pedra conseguiam perfurá-la. E lhe ocorreu um pensamento: "Se a água, que é tão mole, pode furar uma pedra dura, as palavras da Torá - que são tão concretas - certamente poderão deixar sua marca em meu coração sensível". Concorda, então, com a exigência de Rachel e os dois se casam. Kalba Savua, horrorizado com a escolha da filha, a rejeita e faz votos de deserdá-la. E, assim, acompanhado de sua dedicada esposa, que deixara para trás uma vida de luxo para estar a seu lado, Akiva começa a estudar a Torá cercado da mais cruel pobreza. O casal se mantinha juntando toras de madeira que Akiva, em parte, vendia, e ficava com o remanescente para fazer gravetos. Acesos, serviam para iluminar a casa durante suas prolongadas horas de estudo. Apesar de trabalharem, ainda lhes faltava alimento, em casa, e Raquel cortou suas lindas tranças e as vendeu. Com isso, seu marido podia devotar mais tempo a estudar a Lei.

Rabi Akiva deixou sua casa para estudar na Academia de Yavne, que, após a destruição de Jerusalém, tornara-se a sede do Sanhedrin e da erudição judaica. Lá, estudou sob a orientação de dois luminares talmúdicos - Rabi Eliezer e Rabi Yoshua. Após uma ausência de doze anos, voltou à sua cidade natal, acompanhado de 12 mil alunos. Ao se aproximar de casa, ouviu sua mulher que conversava com uma vizinha. Esta lhe perguntava: "Quanto tempo ainda você viverá como viúva?" Ao que ela respondeu que agüentaria outros doze anos de solidão para que seu marido se dedicasse por completo ao estudo da Torá. Ao ouvir aquilo, Rabi Akiva retrocede, voltando à yeshivá. Decorridos mais doze anos, ele finalmente volta a casa, acompanhado, desta vez, de 24 mil doutos estudiosos da Lei de Moisés. Rachel corre até ele, prostrando-se a seus pés. Seus discípulos, desconhecendo de quem se tratava, tentaram afastá-la, mas seu mestre os deteve com as palavras que ficaram imortalizadas: "O que hoje possuo e do qual todos vocês desfrutam, somente pude conquistar graças a ela".

Nesse ínterim, Kalba Savua tendo sabido da chegada à cidade de um notável erudito judeu, decide procurá-lo para conseguir a anulação dos votos que fizera contra a filha. Arrependia-se de ter permitido que Rachel passasse fome durante 24 anos e queria o seu perdão. E o grande erudito não era outro senão seu próprio genro, a quem rejeitara. Os dois se reconciliam e Kalba Savua dá a metade de sua fortuna a Rabi Akiva.

"Quem estuda a Torá na pobreza um dia o fará na riqueza", ensinam nossos Sábios. E foi o que ocorreu a Akiva. O Talmud revela que a partir de então, ele se tornou um homem abastado. Em sua casa havia mesas de ouro e prata. Para sua esposa, que tanto sofrera, que vendera o lindo cabelo para que ele estudasse, Rabi Akiva comprava os mais belos adornos. Um destes era uma reprodução de Jerusalém gravada em ouro.

A Torá de Rabi Akiva

O mestre ensinava que a Torá, por ter sido escrita pelo Criador, é completa, nada lhe faltando e, por outro lado, não contendo sequer uma letra supérflua. Em sua inteireza, é toda conteúdo, sem filigranas retóricas nem palavras vãs. Cada uma de suas letras e de suas pontuações abriga um significado profundo e, com freqüência, misterioso.

Até a época de Rabi Akiva, a Torá Oral, cuja transcrição era proibida, não era classificada nem organizada segundo seu conteúdo. Conseqüentemente, um erudito tinha que possuir tremenda capacidade de memorização para conseguir lembrar-se de todos os seus preceitos e ensinamentos. Para evitar que o povo judeu pudesse, algum dia, esquecer-se da Torá Oral, Rabi Akiva iniciou um trabalho de classificação de cada uma de suas leis de acordo com o teor. Assim, estabelecia as fundações para as compilações da Mishná - núcleo do Talmud - que acabou sendo transcrito e editado, anos mais tarde, pelo Rabi Yehudá HaNassi. Ao assim proceder, o sábio Akiva preservou a Torá Oral, assegurando, destarte, a sobrevivência do judaísmo.

Rabi Akiva dirigia uma academia de Torá em Bnei Brak. Com freqüência, assistia as sessões do Sanhedrin - a Suprema Corte Judaica - na cidade de Yavne. Esta corte jamais adotou uma lei importante de cuja redação ele não tivesse participado. Certa vez, chegando atrasado para uma sessão, permaneceu aguardando do lado de fora. Ouviu-se, então, alguém dizer, no recinto, que "a Torá se encontrava fora"; e enquanto o mestre não entrou, não se tomou interpretação judicial ou decisão qualquer.

Rabi Akiva também era versado em diferentes ciências, como medicina e astronomia. Falava vários idiomas e, a miúde, acompanhava um de seus mestres, Raban Gamliel, a Roma, levados pela causa do povo judeu.


Durante suas palestras, o estudioso mestre moralizava os ouvintes de forma inspiradora. Suas lições eram relatadas em todas as casas judias e todo judeu empenhava-se em regular sua vida segundo os preceitos morais de Rabi Akiva.

Seus professores, seus colegas e seus ensinamentos atestavam ser ele a personificação do amor e da generosidade. O mestre gostava de repetir que tudo o que D'us fizesse, era para o bem, "Gamzu le-tová". Dizia que o mundo deveria ser julgado segundo suas virtudes e o bem que aqui se recebia era apenas uma pequena parcela da recompensa que nos aguardava no Mundo Vindouro. Acreditava que até o mais simplório dos judeus se deveria considerar um aristocrata, por ser filho de Abrahão, Isaac e Jacob. Rabi Akiva também costumava dizer que o povo judeu atestava a grandeza de D'us: o Criador libertara os filhos de Israel do cativeiro para Se redimir juntamente com eles. E Akiva oferecia um ensinamento profético e assustador que acabou sendo aplicável a ele próprio: era em benefício do próprio D'us que Ele escolhera os judeus, entre todas as nações, pois que os outros povos louvavam seus deuses na prosperidade e os amaldiçoavam quando sua sorte lhes dava as costas. Mas os judeus, ensinava o Rabi, sempre louvam a D'us, quer na prosperidade quer na penúria. Não surpreende, pois, que de todos os livros da Torá, Rabi Akiva mais apreciasse o Cântico dos Cânticos. Foi dos primeiros a nele perceber a descrição do amor entre D'us e o povo judeu. E era, de fato, o amor o tema central de sua vida e de seus ensinamentos. Em seu entender, a essência de todo o judaísmo, o todo abrangente mandamento da Torá, pode ser encontrado em um de seus versos: "E amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Levítico, 19:18).

O Talmud nos descortina inúmeras revelações sobre o homem Akiva - que ele pedia ajuda para os pobres, que reverenciava os Sábios e rejubilava no cumprimento dos mandamentos da Torá; que visitava pessoalmente um discípulo enfermo e varria seu quarto quando outros não o faziam. Ao orar, perdia-se por completo; o conceito de tempo e espaço deixava de existir para ele, quando se deixava enlevar pelo Divino. E, a despeito de sua grandiosidade, continuava humilde. Sabemos de sua generosidade e do quanto valorizava a vida, tendo declarado, em certa ocasião, que se porventura fosse um magistrado, homem algum jamais seria condenado à pena capital. Rabi Akiva era um homem do mundo - verdadeiro legislador da Torá, preocupavam-no as filigranas da lei - mas, ainda assim, um místico. Foi um dos quatro Sábios que, ainda em vida, adentrou o Pardêss - o Jardim Místico - vivenciando o Mundo Vindouro, ha-Olam Habá. Foi o único a voltar com vida e em paz consigo mesmo, pois fora o único a aprender a harmonizar sua existência física com a espiritual.

É famosa a seguinte história sobre sua pessoa. Seu mestre, Rabi Eliezer ben Hircano, levantou-se de um dia de jejum para entoar a prece pela chuva. Recitou 24 bênçãos, mas nenhum pingo se viu. Rabi Akiva acercou-se, então, do púlpito e exclamou: ""Avinu Malkenu, nosso Pai, nosso Rei: não temos outro rei além de Ti. Nosso Pai, nosso Rei, age por Tua causa e tem misericórdia de nós". De imediato, os pingos de chuva caem sobre eles. Mas a história não termina aí. O povo judeu adotou sua prece e, até os dias de hoje, recitamos o mesmo rogo nos jejuns coletivos, em Rosh Hashaná e durante os Dez Dias de Penitência, que culminam em Yom Kipur.

Rabi Akiva também leva a reputação de ter composto o Kadish - a oração recitada pelas almas dos que partiram deste mundo. Mas, curiosamente, o Kadish não fala em morte - nem uma vez sequer. Pelo contrário, é comprovadamente o texto mais lindo, mais emocionante em toda a liturgia judaica de louvor a D'us. Somente uma alma nobre como Akiva para encontrar significado e conforto mesmo na morte.

Seu sacrifício e morte

Sua vida foi sempre pontilhada pela tragédia, mas ele a superava, vez após vez, com seu amor infinito. Durante a epidemia que terminou em Lag Ba'Omer, 24 mil de seus discípulos pereceram. [O fim dessa peste é uma das razões que fazem do 33º dia de Omer uma data festiva]. Como teria qualquer outro ser humano, professor ou rabino, reagido a uma tal catástrofe? Abandonariam o ofício, afogar-se-iam em depressão, buscariam o exílio; quiçá almejassem a morte. Mas não Rabi Akiva. Armou-se de novas forças e, começou de novo, conquistou novos alunos a quem guiou pelos meandros do judaísmo. Seu amor pelo povo judeu, pela Torá e por D'us não se deixavam vergar pela tragédia. Nunca se desesperava e jamais, durante toda a sua vida - nem mesmo nos momentos mais sombrios - desistiu. Sequer titubeou. Como mérito por sua coragem e perseverança, ele legou ao povo judeu dois de seus maiores Sábios: Rabi Meir Baal HaNess - o Mestre dos Milagres - e Rabi Shimon Bar Yochai, autor do Zohar, o Livro do Esplendor, que sistematizou e começou a divulgar a sabedoria da Cabalá.

Rabi Akiva estava vivo quando o Segundo Templo foi destruído. Testemunhou, também, um dos holocaustos do povo judeu: em Betar, uma cidade em Eretz Israel, um general judeu de nome Shimon Bar Kochba iniciou uma revolta contra Roma. Bar Kochba, a princípio, teve êxito em sua campanha, levando Rabi Akiva a crer - e proclamar - que o grande guerreiro era o Messias. Mas a revolta judaica terminou vencida e os romanos capturaram e deram cabo à vida de Bar Kochba. Após a destruição de Betar, o Imperador romano, Adriano, anti-semita e assassino, decidiu aniquilar todo o povo judeu. Se os romanos capturassem algum judeu importante, este era torturado antes de ser exterminado. A brutalidade imposta a cada judeu de renome era proporcional à sua grandeza e importância.

Após a queda de Betar, Rabi Akiva foi preso e condenado à morte pelos romanos. Foi sentenciado à pena capital por ter violado o decreto romano que proibia o ensino da Torá. Em total desprezo a Roma, Akiva desafiadoramente ensinava a Lei de Moisés em público, agrupando os alunos onde os encontrasse. E por assim agir - e salvar o judaísmo - Roma exigia mais que a sua morte. Teria que ser barbaramente torturado - não na cruz, como o tinham sido outros 250 mil judeus. Para ele, Roma escolhera uma forma mais horripilante ainda de morte: Rabi Akiva seria esfolado vivo com rastelos de ferro. O algoz romano o rasgaria, pedaço por pedaço, até seu último suspiro.

E agora, voltemos ao Talmud e ao Midrash para conhecer seus momentos finais na Terra.

Uma história do Talmud. Nos Céus, Moisés viu um homem e o ouviu interpretar a Torá para seus discípulos. Dirigindo-se ao Eterno, perguntou Moisés: "Senhor de todo o mundo! Tendo tão grande homem na Terra, a mim caberia receber Tua Torá?" Ao que D'us respondeu: "Foi este o Meu desejo". Moisés retrucou, então: "Mostraste-me o homem; agora revela-me o seu fim". E D'us disse a Moisés que se virasse para testemunhar a tortura e morte de Akiva. "Senhor do Universo!", protestou Moisés, "tanto conhecimento da Torá e esta é a recompensa que lhe toca?" E D'us lhe ordena: "Cala-te! Pois é este o Meu desejo".

Há outra história semelhante, também do Talmud. D'us revelou a Adão todo o registro das gerações que o sucederiam - os futuros eruditos e líderes judeus que comporiam a sua descendência. O Criador também fez ver ao primeiro homem a geração de Rabi Akiva. Adão apreciou deveras tais informações, mas ficou profundamente entristecido com a visão da morte que aguardava Rabi Akiva. Tentou, por todas as maneiras, obter uma morte mais suave para o grande rabi, mas viu seu pedido negado.

Os anjos nos Céus também tentaram anular tal decreto. Uma lenda mística do Midrash nos conta que enquanto Akiva estava sendo destroçado pelos romanos, os anjos choravam amargamente e suas lágrimas caíram no grande mar e o fizeram ferver, enquanto o mundo todo era sacudido pela voz angelical que questionava D'us: "É esta a Tua recompensa a um homem que cumpriu tão fielmente a Tua Torá?"

Mas, na Terra, abaixo, um homem - um dos maiores a tocar seu solo, caminhava, com bravura, em direção à morte, sem que um som saísse de sua garganta, em protesto, nem uma lágrima de seus olhos escapasse. Rabi Akiva foi julgado e condenado à morte pelo governador romano na Terra de Israel, o maléfico Tirano Rufo. No dia de Kipur, Akiva foi conduzido ao local da execução. Era cedo, o dia começava; hora de recitar o Shemá. O povo judeu reuniu-se em torno de seu líder, acompanhando-o em seus derradeiros momentos. A execução era pública e presenciada por toda a população.

Mas, para choque e surpresa de todos os presentes, ao começarem a despedaçá-lo, Rabi Akiva tinha um sorriso nos lábios, prestes a desatar em riso. Exasperado, o governador romano grita-lhe: "Mesmo nesta hora, zombas de mim! Deves ser o demônio. Não há como um ser humano agüentar tanto sofrimento físico com tua calma e teu sorriso!". Seus alunos indagavam: "Mestre, o que está ocorrendo? Como podes rir numa hora destas?"

E o que lhes respondeu Akiva? Foi isto o que lhes declarou o maior rabino na história judaica: "Por que sorrio? Pois este é o momento mais glorioso de minha vida! Dia após dia, dia e noite, recitei as palavras do Shemá: 'e amarás o Eterno, Teu D'us, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu vigor'. Entendia as palavras 'com toda a tua alma' como sendo 'mesmo às custas de toda a tua alma', e sempre imaginava se mereceria a oportunidade de cumprir esse mandamento - o de abrir mão de minha própria alma em nome de D'us".

E Rabi Akiva continuou: "Hoje, isto está acontecendo. Hoje estou sendo morto por ser judeu. Hoje estou sendo morto por minha fé em D'us e por tê-la fortalecido entre os outros. Não é, pois, este, o momento supremo de minha vida - em que posso oferecer minha vida a D'us?" A seguir, recitou as palavras: "Shemá Israel, Ad-nai Elo-enu, Ad-nai Echad"- Escuta, ó Israel, o Eterno é nosso D'us, o Eterno é Um". Deteve-se na pronúncia da palavra Echad - "Um", como afirmação da Absoluta Unicidade de D'us - até que sua alma foi recolhida e devolvida ao Criador.

Foi enterrado em Tiberíades, assim como o foram outros grandes Sábios. Seus despojos físicos lá estão, mas sua alma está também em outras partes, talvez em todas as partes onde haja judeus. O Talmud ensina que uma pessoa que perde a vida por ser judeu torna-se santificada e não há quem a ela se iguale, em mérito. Um dos maiores sábios do Talmud, Rabi Yehoshua ben Levi, revelou que o Paraíso tem sete níveis e que a alma de Rabi Akiva está no mais alto deles, ao lado de todos os judeus de todas as gerações que foram mortos por serem judeus.

Sua grandeza e seu legado

Rabi Akiva, pastor pobre e analfabeto que começou a estudar a Torá aos quarenta anos, tornou-se o maior sábio de sua era - um homem que seria chamado de "pai do mundo". Foi odiado e admirado por seus inimigos romanos e reverenciado pelos judeus. Certa vez, debatia com um colega, o sábio Rabi Tarfon, sobre a lei que exigia dos sacerdotes condutores dos serviços no Templo não ter imperfeições físicas. A posição do colega era mais flexível que a de Rabi Akiva. "Lembro-me", disse Rabi Tarfon, "de ter visto meu tio, que era manco, tocar o shofar no pátio do Templo". Rabi Akiva não estava convencido e explicou que Rabi Tarfon presenciara uma assembléia - não um ritual de sacrifício - já que qualquer imperfeição física desqualificaria um sacerdote de realizar os sacrifícios. Ao que Rabi Tarfon retrucou: "Eu estava lá! Vi e ouvi tudo, ao passo que você nem lá esteve! Tudo o que tem é esse seu poder de interpretar a lei da Torá. E mesmo assim, sabe mais do que eu. Akiva, Akiva: afastar-se de você é afastar-se da própria vida!"

Assim como Moisés, Rabi Akiva, morreu aos 120 anos. Os dois - o maior dos profetas e o maior dos rabinos da história judaica - tiveram caminhos semelhantes. Ambos eram pastores. Seus primeiros quarenta anos foram isentos de Torá: Moisés vivia no palácio do Faraó, enquanto Akiva nem sabia ler. Os quarenta anos seguintes foram vividos longe de casa - um vivenciou a Revelação Divina e se tornou o maior profeta da história. O outro encontrou o Divino através do estudo, tornando-se o mais destacado mestre da Torá. E, por último, os derradeiros quarenta anos na vida de ambos foram vividos liderando o povo judeu e lhes transmitindo a Divina Torá.

Como Moisés, que constantemente colocava sua vida e seus méritos na posição de pleitear em nome do povo judeu, Akiva encontrava maneiras de eximir os outros de qualquer culpa por suas falhas ou transgressões. Com sua coragem e brilhantismo, o Rabi servia de inspiração a quem o conhecesse. Onde os demais viam tragédia e desespero, via esperança. Certa vez, enquanto ele e três outros grandes Sábios subiam a Jerusalém, ao Monte do Templo, viu uma raposa que saía do local do Santo Santíssimo, que era a câmara mais sagrada do Templo. Os três Sábios se puseram a chorar e Akiva a rir. Quando lhe perguntaram o motivo do riso, explicou: duas profecias tinham sido feitas acerca do Templo Sagrado - uma por Uriá e a outra por Zechariá. O primeiro previu sua total destruição; o segundo, aludindo à Era Messiânica, prometeu que os anciãos voltariam às ruas de Jerusalém. E explicou que enquanto a profecia de Uriá não se tinha cumprido, ele temia que a de Zechariá não se concretizaria. Mas agora, tendo presenciado a ocorrência do pior, ele estava certo de que haveria de chegar o dia em que o Terceiro Templo - e definitivo - seria erguido. Os Rabinos, aceitando seu raciocínio, disseram-lhe: "Akiva, tu nos confortaste. Akiva, tu nos confortaste".

O sol não se põe sem haver outro nascente, ensinam os Sábios. D'us não deixa este nosso mundo totalmente destituído de luz. O dia em que Rabi Akiva ascendeu aos Céus, naquele dramático Yom Kipur, nascia um grande líder do povo judeu - um homem cuja liderança e erudição em Torá são comparadas, pelo Talmud, com as de Moisés. Esse homem, Rabi Yehudá HaNassi, continuou a obra de Rabi Akiva; compilou e redigiu a Torá Oral, para que o povo judeu nunca a olvidasse, destarte salvaguardando o judaísmo para todo o sempre. Mas isto é uma outra história...

Rabi Akiva foi o exemplo supremo do Baal Teshuvá - o judeu que "retorna", voltando a abraçar o judaísmo. Sua trajetória até a grandiosidade não foi rápida nem fácil. Praticou a arte do silêncio antes de começar a falar a língua da sabedoria da Torá. Quando começou a aprender e a praticar os seus mandamentos, errava, às vezes, chegando até a ser repreendido por mestres e colegas. Ele nos faz lembrar que nunca é tarde demais, nunca há total desalento, pois que até o mais desinteressado dos judeus pode voltar à sua religião e à sua herança, e até o mais inculto dos judeus pode não apenas estudar a Torá, mas também a dominar e difundir. Rabi Akiva legou ao povo judeu a sua coragem, o seu heroísmo e o seu amor. Sua execução invoca uma imagem, tragicamente exibida muitas vezes na história de nosso povo: inúmeros judeus a caminho da morte certa - da fogueira, das câmaras de gás - rezando, recitando o Shemá, proclamando a unidade de seu Criador; e eis que de súbito irrompem em cantos. Teriam sido inspirados pelo amor de Rabi Akiva? Teria sido a sua coragem que os carregara quando desceram ao vale da morte e ascenderam à Eternidade?

Ele permanece como nosso grande herói. É difícil contar sua história com os olhos secos, ausentes. É difícil ouvir falar dele sem se curvar em humildade e gratidão. Akiva foi um pergaminho vivo da Torá, um ser que caminhava e respirava como nós, mortais. Foi Moisés quem nos trouxe a Torá dos Céus. Mas foi Rabi Akiva quem assegurou que a Lei de Moisés continuaria a imperar, para sempre, na Terra. Como rabino e mestre, ele continua sem paralelo, jamais igualado na história de nosso povo.

Um grande Sábio do Talmud, Rabi Dosa ben Harkinas, assim se referia a Rabi Akiva: "Seu nome ressoa de uma extremidade a outra do mundo". E assim continua a ressoar, reverberando, para sempre, através dos tempos. Seu nome se tornou uma bênção, um cântico, uma prece. Sim, foi Rabi Tarfon quem melhor o colocou em palavras: "Akiva, Akiva, afastar-se de ti é afastar-se da própria vida".