terça-feira, 2 de novembro de 2010

O Limite entre a Mitologia e a Razão

O Novo Testamento e Mitologia
O Elemento Mitológico na Mensagem do Novo Testamento e o Problema de sua Reinterpretação
DEMITOLOGIZAR A PROCLAMAÇÃO DO NOVO TESTAMENTO

A. O Problema

1. A Perspectiva Mítica do Mundo e o Evento Mítico da Redenção

A cosmologia do NT é essencialmente mítica em seu caráter. O mundo é considerado como estruturado em três andares, tendo a terra no centro, o céu em cima e o submundo em baixo. O céu é a morada de Deus e dos seres celestiais – os anjos. O submundo é o inferno, o lugar de tormento. Mesmo a terra é mais do que simplesmente a cena de eventos naturais, cotidianos, da sucessão trivial e da tarefa comum. E a cena da atividade sobrenatural de Deus e seus anjos de um lado, e de Satanás e seus demônios de outro. Estas forças sobrenaturais intervêm no curso da natureza e em tudo que os homens pensam, querem e fazem. Os milagres de modo algum são raros. O homem não tem controle de sua própria vida. Espíritos maus podem tomar posse dele. Tanto Satanás pode inspirar-lhe maus pensamentos, como Deus pode inspirar seus pensamentos e guiar seus propósitos. Deus pode conceder-lhe visões celestiais. Pode permitir que o homem ouça sua voz que consola ou exige. Pode dar-lhe o poder sobrenatural de seu Espírito. A história não segue em suave curso contínuo; é colocada em movimento e controlada por estes poderes sobrenaturais. Este aeon está escravizado por Satanás, pelo pecado e pela morte (pois exatamente estas coisas é que são "poderes") e aproximar-se rapidamente do seu fim. Este fim virá logo em forma de uma catástrofe cósmica, sendo inaugurado pelos "ais" dos últimos tempos. Então o juiz virá do céu, os mortos ressuscitarão, haverá o juízo final, e os homens receberão salvação ou perdição eterna.

É esta então a perspectiva , mítica do mundo que o NT pressupõe quando apresenta o evento da redenção que é o assunto de sua pregação. Ele proclama em linguagem mitológica que os últimos tempos chegaram. "Na plenitude do tempo" Deus enviou seu filho, um Ser divino preexistente, que aparece sobre a terra como um homem (1), morre a morte de um pecador (2) sobre a cruz e faz expiação pelos pecadores dos homens (3). Sua ressurreição marca o início de uma catástrofe cósmica. A morte, conseqüência do pecado de Adão, é abolida (4), e as forças demoníacas são privadas de seu poder (5). O Cristo Ressurreto é exaltado à mão direita de Deus no céu (6) e feito "Senhor" e "Rei" (7). Ele virá novamente sobre as nuvens do céu para completar a obra da redenção, e então se seguirão a ressurreição e o julgamento dos homens (8). O pecado, o sofrimento e a morte serão então finalmente abolidos (9). Tudo isto deverá acontecer logo; Paulo chega mesmo a crer que estará vivo para presenciar tudo (10).

Todos os que pertencem à Igreja de Cristo e estão unidos ao Senhor pelo Batismo e pela Eucaristia estão certos da ressurreição para a salvação (11), a menos que a percam por comportamento menos digno. Os que crêem já gozam do primeiro penhor da salvação, pois o Espírito (12) está em ação neles, testemunhando sua adoção como filhos de Deus (13), e garantindo sua ressurreição final (14).

2. Esta Perspectiva Mitológica do Mundo é Obsoleta

Tudo isto está em linguagem mitológica, e a origem destes vários temas pode ser facilmente traçada na mitologia do Apocalipsismo Judaico daquela época e nos mitos da redenção do Gnosticismo. Na medida em que está relacionado a esta linguagem mitológica o kerygma é não-crível ao homem moderno, pois este está convicto de que a perspectiva mítica do mundo é obsoleta. Somos então levados a perguntar se quando nós pregamos o Evangelho de hoje, esperamos que seja aceita não somente a mensagem do Evangelho, mas também a perspectiva mítica do mundo na qual a mensagem está colocada. Se não, será que o NT incorpora uma verdade que é independente de seu contexto mítico? Se incorpora, a teologia precisa empreender a tarefa de despir o Kerygma de sua estrutura mítica, de demitologizá-lo.

Pode a pregação cristã esperar que o homem moderno aceite esta perspectiva mítica do mundo como verdadeira? Fazer isto seria insensato e impossível. Seria insensato porque não há nada especificamente cristão na perspectiva mítica do mundo como tal. Ela é simplesmente a cosmologia de uma época pré-científica. Seria impossível, porque nenhum homem pode adotar uma perspectiva do mundo à vontade – ele lhe é determinada pelo seu lugar na história. Naturalmente uma perspectiva do mundo não é algo inalterável, e o indivíduo até mesmo pode contribuir para a sua mudança. Mas ele só pode fazer isto quando é enfrentado por um novo conjunto de fatos que o completam a tal ponto que a perspectiva do mundo que ele tinha se torna insustentável. Sua única alternativa então é modificar sua perspectiva do mundo ou produzir uma nova. As descobertas de Copérnico e a teoria atômica são exemplos disto, bem como o romantismo, com sua descoberta de que o sujeito humano é mais rico e mais complexo do que o iluminismo ou idealismo tinham crido, e ainda o nacionalismo, com sua nova percepção da importância da história e da tradição dos povos.

Bem pode acontecer, igualmente, que verdades não percebidas por um iluminismo superficial sejam mais tarde redescobertas em mitos antigos. Por isto e que se justifica perfeitamente a atitude de teólogos que perguntam se não é exatamente isto que aconteceu com o NT. Ao mesmo tempo é impossível reviver uma perspectiva obsoleta do mundo por mero decreto, ainda mais uma perspectiva mítica. Pois o nosso pensamento hoje, para bem ou para mal, é modelado pela ciência moderna. Uma aceitação cega da mitologia do NT seria irracional, e fazer pressão para sua aceitação como um artigo de fé seria reduzir a fé cristã ao nível de uma realização humana. Há muitos anos Wilhelm Herrmann indicou isto, e é de cre-se que sua demonstração foi conclusiva. Submeter-se a esta exigência envolveria um sacrificium intellectus que poderia trazer somente um resultado – uma curiosa forma de esquisofrenia e insinceridade. Significaria aceitarmos na fé e na religião uma perspectiva do mundo que precisaríamos negar completamente em nossa vida diária. O pensamento moderno como o herdamos nos dá uma razão criticar a perspectiva do mundo do NT.

O conhecimento do homem e o seu domínio do mundo têm avançado a tal ponto através da ciência e da tecnologia que não mais é possível que alguém seriamente mantenha a perspectiva do mundo neo-testamentária – de fato, difìcilmente haverá alguém disposto. Que sentido, p. ex., podemos dar a tais frases no credo com "desceu ao inferno" ou "subiu ao céu"? Nós não mais cremos em um universo estruturado em três andares, universo este que os credos pressupõem. A única maneira honesta de recitar os credos é tirando a estrutura mitológica que envolve a verdade que eles contêm – isto é, pressupondo que eles contêm alguma verdade, que é justamente a questão que a teologia tem que perguntar. Ninguém que seja capaz de pensar por si mesmo supõe que Deus vive em céu local. Não mais há um céu no sentido tradicional da palavra. O mesmo se aplica ao inferno, no sentido de um submundo mítico abaixo de nossos pés. Sendo assim, não mais podemos aceitar a história de que Cristo desceu ao inferno ou sua Ascensão ao céu como literalmente verdadeiras. Não podemos mais procurar o retorno do Filho do Homem nas nuvens do céu ou esperar que os fiéis o encontrarão no ar (I Test. 4:15 sg.).

Agora que as forças e as leis da natureza tem sido descobertas, não podemos mais crer em espíritos, sejam eles bons ou maus. Sabemos que os astros são corpos físicos cujos movimentos são controlados pelas leis do universo, e não por seres demoníacos que escravizam a humanidade a seu serviço. Qualquer influência que possam ter sobre a vida humana deve ser explicável em termos das leis ordinárias da natureza; não pode ser atribuída de modo algum à sua malevolência. As doenças e suas curas são de igual modo atribuíveis a causação natural; elas não são resultados de atividade demoníaca ou de feitiçaria (15). Os milagre do NT cessaram de ser miraculosos, e defender sua historicidade recorrendo a desordens nervosas ou efeitos hipnóticos somente serve para sublinhar o fato. Se ainda restam certos fenômenos fisiológicos e psicológicos que somente podemos atribuir a causas misteriosas e enigmáticas, ainda assim estaremos atribuindo causas a eles, e portanto fazê-los cientìficamente inteligíveis. Mesmo o ocultismo pretende ser uma ciência.

É impossível usar a luz elétrica e o telégrafo sem fio e servirmo-nos das descobertas médicas e cirúrgicas modernas e ao mesmo tempo crer no mundo de demônios e espíritos apresentado pelo NT (16). Podemos nos acomodar a esta crença, mas esperar que outros façam o mesmo é tornar a fé cristã ininteligível e inaceitável ao mundo moderno.

A escatologia mítica é insustentável, pela simples razão que a parousia de Cristo nunca ocorreu como o NT esperava. A história não veio a um fim, e, como todo menino de grupo sabe, ela continuará seu curso. Mesmo se crermos que o mundo que conhecemos terá fim no tempo, esperamos que este fim tome a forma de uma catástrofe natural, não de um evento mítico tal como o NT espera. E se explicarmos a parousia em termos de teoria científica moderna, estaremos aplicando crítica ao NT, embora inconscientemente.

Mas a ciência natural não é o único desafio que a mitologia do NT tem que enfrentar. Há ainda o desafio mais sério apresentado pela compreensão que o homem moderno tem de si mesmo.

O homem moderno é confrontado por um curioso dilema. Ele pode considerar-se como pura natureza, ou como puro espírito. No último caso ele distingue a parte essencial do seu ser, a sua essência, da natureza. Em qualquer dos dois casos, contudo, o homem é essencialmente uma unidade. Somente ele é responsável por seu sentimento, pensamento e vontade (17). Ele não é, como o NT o considera, a vítima de uma estranha, dicotomia que o expõe à interferência de poderes externos a ele próprio. Se seu comportamento exterior e sua condição interior estão em perfeita harmonia, isto é algo que ele próprio conseguiu, e se outros pensam que a unidade interior deles foi desintegrada por interferência demoníaca ou divina, ele chama isto de esquizofrenia.

Embora a biologia e a psicologia reconheçam que o homem é um ser altamente dependente, isto não significa que ele está entregue a poderes exteriores a ele e dele distintos. Esta dependência é inseparável da natureza humana, e ele precisa apenas compreendê-la para recuperar seu domínio próprio e organizar sua vida em uma base racional. Se ele se considera como espírito, ele sabe que está permanentemente condicionado pela parte física, corporal de seu ser, mas ele distingue dela o seu verdadeiro eu, e sabe que ele é independente e responsável pelo seu domínio sobre a natureza.

Em qualquer dos dois casos ele acha aquilo que o NT tem a dizer a respeito do "Espírito" (pneûma) e dos sacramentos inteiramente estranho e incompreensível. O homem biologico não pode ver com uma entidade sobrenatural como o pneuma pode penetrar dentro da estrutura de seus poderes naturais e pôr-se a agir dentro dele. Nem pode o idealista compreender como um pneuma agindo como um poder natural pode tocar e influenciar sua mente e seu espírito. Cônscio como ele é de sua responsabilidade moral, ele não pode conceber como o batismo na água pode transmitir algo misterioso que é, daquela ocasião em diante, o agente de todas as suas decisões e ações. Ele não pode compreender como alimento físico pode fornecer força espiritual, e como o receber indignamente da Eucaristia pode resultar em doença e morte físicas (I Cor. 11:30). A única explicação possível é que isto é devido a sugestão. Ele não pode compreender como pode alguém ser batizado pelos mortos (I Cor. 15:29).

Não precisamos examinar detalhadamente as várias formas de Weltanschauung moderno, se idealista ou naturalista. Pois a única crítica do NT que é teologicamente relevante é a que surge necessariamente da situação do homem moderno. O Weltanschauung biológico não surge, necessariamente, da situação contemporânea. Somos ainda livres para adotá-lo ou não, conforme escolhermos. A única questão relevante para o teólogo é a suposição básica sobre a qual a adoção de um Weltanschauung biológico, bem como qualquer outro, se firma, e esta suposição é a perspectiva do mundo moldada pela ciência moderna e a concepção moderna da natureza humana como uma unidade auto-subsistente imune a interferência de poderes sobrenaturais.

Novamente, a doutrina bíblica de que a morte é a punição do pecado é de igual modo abominável tanto ao naturalismo como ao idealismo, visto que ambos consideram a morte como um processo simples e necessário da natureza. Para o naturalista a morte de modo algum é problema, e ao idealista ela é um problema por aquela mesma razão, pois em vez de surgir da essência espiritual do homem ela o destrói. O idealismo enfrenta um paradoxo. Por um lado o homem é um ser espiritual, e, portanto, essencialmente diferente das plantas e animais, e por outro ele é o prisioneiro da natureza, tendo nascimento, vida e morte exatamente iguais aos dos animais. A morte pode apresentar-lhe um problema, mas ele não pode conceber como ela pode ser punição pelo pecado. Seres humanos estão sujeitos à morte mesmo antes que tenham cometido algum pecado. Atribuir a mortalidade humana à queda de Adão é clara insensatez, pois culpa implica responsabilidade pessoal, e a idéia do pecado original como infecção herdada é sub-ética, irracional e absurda.

As mesmas objeções se aplicam à doutrina da expiação. Como pode a culpa de um homem ser expiada pela morte de um outro que é sem pecado, se é pode falar em alguém sem pecado. Que noções primitivas de culpa e justiça isso implica? E que idéia primitiva de Deus? A noção de sacrifício em geral pode lançar alguma luz sobre a teoria da expiação, mas mesmo assim, esta é uma noção mitológica bem primitiva, a afirmar que um Ser divino se encarnou, e expiou os pecados dos homens pelo seu próprio sangue! Ou poder-se-ia ainda adotar uma analogia jurídica, e explicar a morte de Cristo como uma transação entre Deus e o homem através da qual as reivindicações de Deus, ao homem foram satisfeitas. Mas isto faria do pecado assunto jurídico; o pecado seria compreendido como nada mais do que uma transgressão externa de um mandamento, e isto não faria sentido aos nossos padrões éticos. Além do mais, se o Cristo que morreu uma tal morte era o Filho preexistente de Deus, qual seria o sentido desta morte para ele? Obviamente ela significaria muito pouco, se ele soubesse que em três dias estaria ressuscitado!

A ressurreição de Jesus é de igual modo difícil, se significar um evento pelo qual um poder sobrenatural é liberado, o qual pode ser apropriado através dos sacramentos. Ao biologista tal linguagem não significa nada, pois ele não considera a morte como um problema. O idealista não faria objeção à idéia de uma vida imune à morte, mas ele não poderia crer que tal vida pudesse se obtenível pela ressurreição de um cadáver. Se este é o modo pelo qual Deus faz a vida disponível ao homem, sua ação está inextrincàvelmente envolvida em um milagre natural. Esta noção ele acha intolerável, pois ele só pode ver Deus em ação na vida do espírito (que para ele é a única vida real) e na transformação da sua personalidade. Mas, à parte da incredulidade deste milagre, ele não pode conceber como um evento como este pode ser um ato de Deus, ou como pode este evento afetar sua vida.

Influência gnóstica sugere que este Cristo, que morreu e ressuscitou, não era um mero ser humano, mas um Deus-homem. Sua morte e ressurreição não foram fatos isolados concernentes somente a ele, mas um evento cósmico no qual todos estaremos envolvidos (18). É somente com esforço que o homem moderno pode se imaginar em tal atmosfera intelectual, e mesmo se puder imaginar-se lá, ele nunca poderia aceitá-la, porque considera a essência do homem como natureza, e a redenção como um processo da natureza. E quanto à preexistência de Cristo, com o seu corolário da transladação do homem para um reino celestial de luz, e do vestir-se a personalidade humana em roupas celestiais e em corpo espiritual – tudo isto é não só irracional, mas inteiramente sem sentido. Por que deve a salvação tomar esta forma particular? Por que deve ser esta a consumação da vida humana e a realização do verdadeiro ser do homem?

B. A Tarefa diante de Nós
1. Não Seleção ou Subtração

Esta crítica drástica da mitologia do NT significa a completa eliminação do Kerygma?

Qualquer que seja a verdade, não podemos salvar o kerygma selecionando algumas de suas características e subtraindo outras, reduzindo assim a quantidade de mitologia existente nele. Por exemplo, é impossível dispensar o ensino de Paulo a respeito do recebimento indigno da Comunhão ou a respeito do Batismo pelos mortos, e, contudo, apegarmo-nos à crença de que aquêles elementos físicos têm efeito espiritual. Se aceitarmos uma idéia, precisaremos aceitar tudo que o NT tem a dizer a respeito do Batismo e da Comunhão, e é justamente isto que não podemos aceitar.

Naturalmente pode replicar-se dizendo que algumas características da mitologia do NT recebem maior proeminência que outras: não são todas que aparecem com a mesma regularidade nos vários livros. Por exemplo, as lendas (legends) do Nascimento Virginal e da Ascensão aparecem somente uma vez; Paulo e João parecem ignorá-las totalmente. Mas mesmo se a considerarmos acréscimos posteriores, isto não afeta o caráter mítico de evento da redenção como um todo. E se começarmos a subtrair do Kerygma, onde devemos traçar a linha demarcatória ? A perspectiva mítica do mundo deve ser aceita ou rejeitada em sua inteireza.

Neste ponto clareza absoluta e honestidade autêntica são essenciais tanto para o teólogo como para o pastor. É um dever que eles têm para consigo mesmos, para com a Igreja que servem, e para com aqueles a quem buscam ganhar para a Igreja. Eles precisam deixar bem claro o que se espera que seus ouvintes aceitem e o que não se espera. A todo custo o pregador não pode deixar seu povo nas trevas a respeito daquilo que ele secretamente elimina, nem pode permanecer nas trevas ele próprio. No livro de Karl Barth, A Ressurreição dos Mortos, a escatologia cósmica no sentido de "cronològicamente o final da história" é eliminada em favor do que ele pretende que seja uma "história última" (ultimate history) não-mitológica. Mas ele é capaz de iludir-se pensando que esta é exegese de Paulo e do NT, somente porque ele se livra de tudo que é mitológico em I Coríntios pela sujeição a uma interpretação que violenta seu sentido. Mas proceder assim não é lícito. Se a verdade da proclamação do NT deve ser preservada, o único caminho demitogizá-la. Mas nosso motivo em assim fazendo não é tornar o NT relevante ao mundo moderno a todo custo. A questão é simplesmente se a mensagem do NT consiste exclusivamente de mitologia, ou se ela realmente exige a eliminação do mito para ser entendida em seu sentido original. Esta questão se nos é imposta de dois lados. Primeiro há a natureza do mito em geral, e então há o próprio NT.

2. A Natureza do Mito

O propósito real do mito não e apresentar um quadro objetivo do mundo como este realmente é, mas expressar a compreensão que o homem tem de si próprio no mundo em que vive. O mito deve ser interpretado não cosmologicamente, mas antropologicamente, ou ainda melhor, existencialmente (19). O mito fala do poder ou dos poderes que o homem supõe experimentar com a base e limite de seu mundo e de sua própria atividade e seu sofrimento. Ele descreve êste poderes em termos derivados do mundo visível, com seus objetos e forças tangíveis, e da vida humana, com seus sentimentos, motivos e potencialidades. Ele uma árvore do mundo (word tree). Similarmente ele pode explicar o presente estado e a presente ordem do mundo falando de uma guerra primeva entre os deuses. Ele fala do outro mundo em têrmos deste mundo, e dos deuses em termos derivados da vida humana (20).

O mito é uma expressão da convicção que o homem possui de que a origem e o propósito do mundo em que ele vive devem ser procurados não dentro do mundo mas além dele – isto é, além do reino do conhecido e da realidade tangível – e que êste reino é perpetuamente dominado e ameaçado pelos podêres misteriosos que são ao mesmo tempo sua fonte e limite. O mito é também a expressão da consciência que o homem possui de que êle não é senhor de si mesmo. Ele expressa seu sentido de dependência não só de forças dentro do mundo visível, mas mais especialmente das forças que dominam além dos limites do conhecimento. Finalmente o mito expressa a crença do homem de que neste estado de dependência (das forças além deste mundo) ele pode ser liberto das forças existentes dentro do mundo visível.

Assim o mito contém elementos que exigem que ele seja criticado a saber, sua fantasia (imagery) com sua aparente reivindicação de validade objetiva. O propósito real do mito é falar de um poder transcendental que controla o mundo e o homem, mas este propósito é impedido a obscuridade pelos têrmos em que é expresso.

Por causa disto a importância da mitologia do NT está não em sua fantasia, mas na compreensão da existência que ela conduz. A questão real é se esta compreensão da existência é verdadeira. A fé reivindica que é, e a fé não deve estar amarrada à fantasia da mitologia do NT.

3. O Próprio NT

O próprio NT nos convida a este tipo de crítica. Não só há asperezas em sua mitologia, mas algumas de suas características são realmente contraditórias. Por exemplo, a morte de Cristo é algumas vezes um sacrifício e outras um evento cósmico. Por vezes sua pessoa é interpretada como o Messias e por outras como o Segundo Adão. A Kenosis do Filho preexistente (Fil. 2:6 sg.) é incompatível com as narrativas de milagres como provas de suas reivindicações messiânicas. O nascimento Virginal é inconsistente com a afirmação de sua preexistência. A doutrina da Criação é incompatível com a concepção dos "poderosos desta época" (I Cor. 2:6 sg.), do "deus deste século" (II Cor. 4:4) e dos "rudimentos do mundo", stoicheia toú kósmou (Gál. 4:3). É impossível enquadrar a crença de que a lei foi dada por Deus com a teoria que ela vem dos anjos (Gál. 3:19 sg.).

O que, entretanto, exige de modo mais pertinente a crítica da mitologia é uma curiosa contradição que permeia todo o NT. Êle nos diz por vezes que a vida humana é determinada por forças cósmicas, e por outras somos desafiados a uma decisão. Lado a lado com o indicativo paulino está o imperativo paulino. Em resumo, o homem é às vezes considerado como um ser cósmico, às vezes como um "eu" independente para quem a decisão é questão de vida ou morte. Incidentalmente, isto explica porque tantos ditos no NT falam diretamente á condição do homem moderno, enquanto outros permanecem enigmáticos e obscuros. Finalmente, tentativas de demitologização são às vezes feitas mesmo dentro do próprio NT. Mas sôbre isto mais será dito posteriormente.

4. Tentativas Anteriores de Demitologização

Como então deve ser reinterpretada a mitologia do NT? Não é primeira vez que os teólogo têm encarado esta tarefa. De fato, tudo o que dissemos poderia ter sido dito da mesma maneira há trinta ou quarenta anos, e é um sinal da bancarrota da teologia contemporânea o fato de ser necessário encarar o mesmo problema novamente. É fácil descobrir a razão disto. Os teólogos liberais do último século caminharam na linha errada. Eles lançaram fora não só a mitologia, mas o próprio Kerygma. Estavam certos? É este o tratamento que o NT requer? É esta questão que temos que enfrentar hoje. Os últimos vinte anos tem testemunhado um movimento que se desvia da crítica e um retorno a uma aceitação ingênua do Kerygma. O perigo tanto para a teologia como para a Igreja é que esta ressuscitação não-crítica da mitologia do NT pode tornar a mensagem do NT ininteligível ao mundo moderno. Não podemos dispensar os trabalhos críticos das gerações anteriores sem mais cerimônias. Precisamos aproveitá-los construtivamente. Fracasso em fazer isto resultará nas velhas lutas entre o ortodoxia e o liberalismo, isto é, supondo-se que existirá uma Igreja e que existirão teólogos para revivê-las! Talvez possamos esquematizar assim: ao passo que os liberais usaram a crítica para eliminar a mitologia do NT, nossa tarefa hoje e usar a crítica para interpretá-la. Naturalmente, pode ainda ser necessário eliminar mitologia aqui e ali. Mas o critério adotado precisa ser tomado não do pensamento moderno, mas da compreensão da existência humana que o próprio NT conduz (21).

Para início, examinemos algumas das tentativas anteriores de demitologização. Precisamos sòmente mencionar brevemente a interpretação alegórica do NT que tem perseguido a Igreja através de toda a sua história. Este método espiritualiza os eventos míticos, de modo que eles se tornem símbolos de processos que ocorrem na alma. Certamente esta é a maneira mais confortável de evitar a questão crítica. Este método permite que o sentido literal permaneça, mas não considera necessário que se lhe dê um sentido constrangedor, pois o crente pode evadir para o domínio espiritual.

Foi característico dos teólogos liberais mais antigos o considerar-se a mitologia relativa e temporária. Por causa disto eles pensaram que podiam eliminá-la, e reter somente os princípios básicos da religião e da ética. Eles distinguiam entre o que consideravam a essência da religião e o traje temporário que esta essência assumia. Ouçamos o que Harnack tinha a dizer sobre a essência da pregação de Jesus a respeito do Reino de Deus e de sua vinda: "O reino tem um sentido triplo. Primeiro, é algo sobrenatural, um dom vindo de cima, não um produto da vida ordinária. Segundo, é uma bênção puramente religiosa, um traço íntimo de unição com Deus vivo. Terceiro, é a mais importante experiência que um homem pode ter, experiência esta da qual tudo o mais depende; ela permeia e domina a totalidade de sua existência, porque o pecado é perdoado e a miséria banida". Notemos como a mitologia foi completamente eliminada: "O reino de Deus vem quando vem ao indivíduo, entrando em sua alma e tomando posse dele" (22).

Será notado como Harnack reduz o Kerygma a uns poucos princípios básicos da religião e de ética. Infelizmente isto significa que o Kerygma cessou de ser Kerygma: ele não mais é a proclamação do ato decisivo de Deus em Cristo. Para os liberais as grandes verdades da religião e da ética são intemporais e eternas, embora elas sòmente sejam realizadas dentro da história humana, e somente recebem expressão clara em processos históricos concretos. Mas a apreensão e aceitação destes princípios não depende do conhecimento e da aceitação da época em que eles foram formulados, ou das pessoas históricas que primeiro os formularam. Somos capazes de experimentá-los em nossas próprias vidas qualquer que seja a época em que vivamos. A história pode ser de interêsse acadêmico, mas nunca de importância suprema para a religião.

Mas o NT fala de um evento através do qual Deus executou a salvação do homem. Para o NT Jesus não é primàriamente o mestre, que certamente tinha coisas extremamente importantes a dizer e que sempre foi aplaudido por dizê-las, mas cuja pessoa é em última análise imaterial para os que assimilaram seu ensino. Pelo contrário, sua pessoa é exatamente o que o NT proclama como o evento decisivo da redenção. O NT fala desta pessoa em têrmos mitológicos, mas significa isto que devemos rejeitar o Kerygma afirmando que êle nada mais é do que mitologia? Esta é a questão.

A seguir veio a escola da História das Religiões. Seus representantes foram os primeiros a descobrir em que medida o NT é permeado por mitologia. A importância do NT, viram êles, está não em seu ensino sobre religião e ética, mas em sua religião e piedade; em comparação com isto, todo o dogma que êle contém, e, portanto, tôda a fantasia mitológica com sua aparente objetividade, era de importância secundária e mesmo podia ser negligenciado. A essência do NT está na vida religiosa que ele descreve; o essencial nele era a experiência de união mística com Cristo, em quem Deus tomou forma simbólica.

Estes críticos compreenderam uma verdade importante. A fé cristã não é a mesma coisa que idealismo religioso; a vida cristã não consiste do desenvolvimento da personalidade, da melhora da sociedade, ou de fazer do mundo um lugar melhor. A vida cristã significa um desviar-se do mundo, uma separação (detachment) dele. Mas os críticos da escola da História das Religiões falharam em ver que no NT esta separação é essencialmente escatológica e não mística. Religião para eles era expressão do anseio humano de levantar-se acima do mundo e transcendê-lo: era a descoberta de uma esfera supramundana onde a alma poderia separar-se de todas as preocupações terrenas e encontrar descanso. Por causa disto a manifestação suprema da religião devia ser encontrada não em uma ética pessoal ou em um idealismo social, mas no culto considerado como um fim em si mesmo. Justamente este era o tipo de vida descrito no NT, não somente como um modêlo e padrão, mas como desafio e inspiração. O NT assim era a fonte permanente de poder que capacitava o homem a perceber a verdadeira vida religiosa, e Cristo era o símbolo eterno para o culto da Igreja Cristã (23). Será observado como a Igreja era definida exclusivamente como uma comunidade de culto, e isto representa um grande avanço à frente do liberalismo. Esta escola redescobriu a Igreja como uma instituição religiosa. Para o idealista não havia realmente lugar para a Igreja. Mas foram eles bem sucedidos em recuperar o significado da Ecclesia no sentido pleno que o NT dá à palavra? Pois o NT a Ecclesia é invariàvelmente um fenômeno da história da salvação e escatologia.

Além do mais, se a escola da História das Religiões está certa, o Kerygma uma vez mais cessou de ser Kerygma. Como os liberais, também eles estão silenciosos a respeito de um ato decisivo de Deus em Cristo, proclamado como o evento da redenção. Assim ainda nos resta a questão se este evento e a pessoa de Jesus, que são descritos em termos mitológicos no NT, são algo mais que mitologia. Pode o Kerygma ser interpretado à parte da mitologia? Podemos recuperar a verdade do Kerygma para os que não mais pensam em termos mitológicos, sem cometer um crime contra o seu caráter como Kerygma?

5. Uma Interpretação Existencialista, a Única Solução.

A obra teológica que tal interpretação envolve pode ser esquematizada sòmente em um esboço bastante amplo e somente com uns poucos exemplos. Precisamos evitar a impressão que esta é uma tarefa leve e fácil, como se tudo o que tivéssemos que fazer fosse descobrir a fórmula correta, e pronto. Esta obra é muito maior do que simplesmente isto. Não pode ser realizada por um só indivíduo. Tomará o tempo e a força de toda uma geração teológica.

A mitologia do NT é, essência, a do apocalipsismo judaico e dos mitos de redenção gnósticos. Uma características comum de ambas é seu dualismo básico, segundo o qual o mundo presente e seus habitantes humanos estão sob o controle de poderes satânicos e demoníacos, e necessita de redenção. O homem não pode conseguir sua redenção por seus próprios esforços; esta deve vir-lhe como dádiva, através de uma intervenção divina. Os dois tipos de mitologia mencionados falam desta intervenção: o apocalipsismo judaico de uma crise mundial iminente na qual o aeon presente terá fim e o nôvo será introduzido pela vinda do Messias, e o gnosticismo de um Filho de Deus enviado de um reino de luz, que entra neste mundo na aparência de um homem, e através do seu destino e de seu ensino liberta os eleitos, abrindo assim o caminho para o retorno à morada celestial de onde ele viera.

O significado destes dois tipos de mitologia está uma vez mais não na fantasia com sua aparente objetividade, mas na compreensão da existência humana que ambos estão tentando expressar. Em outras palavras, eles precisam ser interpretados existencialmente. Um bom exemplo de um tal tratamento pode ser encontrado no livro de Hans Jonas sobre o gnosticismo (24).

Nossa tarefa é produzir uma interpretação existencialista da mitologia dualista do NT em linhas similares. Quando, por exemplo, lemos a respeito de podêres demoníacos que governam o mundo mantendo a humanidade em escravidão, será que a compreensão da existência humana que subjaz a esta linguagem oferece uma solução ao enigma da vida humana que seja aceitável mesmo à mente não-mitologica de hoje? Naturalmente, não devemos crer que isto implica que o NT nos apresente uma antropologia como a da ciência moderna. Isto não pode ser provado pela lógica nem demonstrado por um apelo à evidência fatual. As antropologias científicas sempre tomam por pressuposto uma compreensão definida da existência, que invariàvelmente é conseqüência de uma deliberada decisão da parte dos cientistas, consciente ou não. E é por causa disto que temos que descobrir se o NT oferece ao homem uma compreensão de si mesmo que o desafiará a uma genuína decisão existencial.

II. DEMITOLOGIZAÇÃO EM ESBOÇO

A. A Interpretação Cristã do Ser

1. A Existência Humana à parte da Fé

Que quer dizer o NT quando fala do "mundo", "deste mundo" (ho kósmos hoûtos), ou "deste aeon" (hoûtos ho aiôn)? Falando assim o NT está em acordo com os gnósticos, pois também eles falam "deste mundo", e dos príncipes, príncipe, ou deus deste mundo; e além do mais ambos consideram o homem como escravo do mundo e de seus poderes. Mas há uma diferença significativa. No NT um destes poderes é claramente ausente, a saber, a matéria, a parte física, carnal da constituição do homem. Nunca o NT lamenta que a alma do homem seu eu autêntico, esteja aprisionado em um corpo material; nunca ele lamenta o poder da sensualidade sobre o espírito. Por causa disto é que nunca e responsabilidade do homem pelo pecado é posta em dúvida. Deus é sempre o Criador do mundo, incluindo a vida humana no corpo. Ele também é o Juiz perante o qual os homens terão que prestar contas. A parte desempenhada por Satanás como o Senhor deste mundo precisa, portanto, estar limitada de um modo peculiar, ou ainda mais, se ele é o senhor ou deus do mundo, "este mundo" deve estar em uma relação dialética peculiar com o mundo como a criação de Deus.

"Este mundo" é o mundo da corrupção e da morte. Claramente, não foi assim quando ele saiu das mãos do Criador, pois foi somente em conseqüência da queda de Adão que a morte entrou no mundo (Rom. 5:12). Por causa disto é o pecado, em vez de a matéria como tal, que é a causa da corrupção e da morte. A concepção gnóstica da alma como um elemento puro e celestial que em virtude de um destino fatal está aprisionada em um corpo material é inteiramente ausente. A morte é o salário do pecado (Rom. 6:23; cf. I Cor. 15:56). É verdade que Paulo parece concordar com os gnósticos com respeito aos efeitos que ele atribui à queda de Adão como o ancestral da raça humana. Mas é claro que ele mais tarde retorna à idéia de responsabilidade individual quando ele diz que desde Adão a morte veio a todos os homens "porque todos pecaram" (Rom. 5:12), uma declaração que está em contradição formal com a teoria de Adão. Talvez ele queria dizer que com Adão a morte se tornou possível em lugar de inevitável. Embora possa ser isto, há uma outra idéia constantemente repetida por Paulo e que é igualmente incompatível com a teoria de Adão, e esta idéia é que o pecado, incluindo a morte, é derivado da carne (sárcs, Rom. 8:13; Gál. 6:8, etc). Mas, que quer ele dizer por "carne"? Não o lado físico ou corporal da natureza humana, mas a esfera da realidade visível, concreta, tangível e mensurável, que como tal é também a esfera da corrupção e da morte. Quando um homem escolhe viver inteiramente em e para esta esfera, ou como Paulo prefere, quando êle "vive segundo a carne", ela assume a forma de um "poder". Há realmente muitas diferentes maneiras de viver segundo a carne. Há a vida de prazer sensual desregrado e há maneira de basear-se a vida no orgulho da realização, nas "obras da lei", como diria Paulo. Mas estas distinções são imateriais, em instância última. Pois "carne" quer dizer não apenas as coisas materiais da vida, mas toda a criação e conquista humanas buscadas por amor de alguma recompensa tangível, tal como por exemplo o cumprimento da lei (Gál. 3:3). O termo inclui toda qualidade passiva, e tôda vantagem que um homem pode conseguir, na esfera da realidade visível, tangível. (Fil. 3:4 sg.).

Paulo vê que a vida do homem é oprimida pela ansiedade (merimnân, I Cor. 7:32 sg.). Todo homem focaliza sua ansiedade em algum objeto particular. O homem natural a focaliza na segurança, e em proporção às suas oportunidades e aos seus sucessos na esfera visível ele coloca sua "confiança" na "carne" (Fil. 3:3 sg). E a consciência de segurança encontra sua expressão no "gloriar-se" (kauchâsthai).

Tal busca é, contudo, incongruente com a situação real do homem, pois a realidade é que ele não está seguro. De fato, este é o modo em que êle perde sua verdadeira vida e se torna escravo daquela esfera mesma que ele havia esperado dominar, a qual ele cria que viesse a lhe trazer segurança. Ao passo que até então ele poderia ter gozado o mundo como criação de Deus, este agora se tornou "este mundo ", o mundo em revolta contra Deus. E é deste modo que os "poderes" que dominam a vida humana aparecem, e como tal adquirem o caráter de entidades místicas. (25) Visto que a esfera visível e tangível é essencialmente transitória, o homem que baseia sua vida sobre ela se torna prisioneiro e escravo da corrupção. Pode ser vista uma ilustração disto no modo em que os nossos esforços para conseguir segurança visível para nós mesmos nos traz em colisão com os outros; somente podemos buscar segurança para nós às custas da dêles. Assim, por um lado surge inveja, ira, ciúme, e tudo mais, e por outro compromisso, trocas, e ajustes de interêsses em conflito. Isto cria uma atmosfera que pervade tudo e controla todos os nossos julgamentos; nós pagamos tributo a ela e a temos por pressuposta. Deste modo o homem se torna escravo da ansiedade (Rom. 8;15). Todos se apegam à própria vida e às suas propriedades, porque tem um sentimento secreto de que tudo se lhes vai escapando.

2. A Vida da Fé

A vida autêntica, por outro lado, seria uma vida baseada em realidades invisíveis e intangíveis. Tal vida significa o abandono de toda segurança auto-planejada. É isto o que o NT quer dizer por "vida segundo o Espírito" ou "vida na fé".

Para esta vida devemos ter fé na graça de Deus. Isto significa que a realidade invisível e intangível realmente nos confronta com amor, abrindo o caminho para o nosso futuro e significando não morte mas vida.

A graça de Deus significa o perdão do pecado, e ela não nos liberta da escravidão do passado. A velha busca de segurança visível, o anseio por realidade tangíveis, e o apêgo a objetos transitórios, designa-se o pecado, pois através dêle impedimos que a realidade invisível entre em nossas vidas e recusamos o futuro de Deus que nos vem como uma dádiva. Mas, uma vez que abrimos nossos corações à graça de Deus, nossos pecados são perdoados; somos libertos do passado. Isto é o que se quer dizer por "fé": abrirmo-nos livremente ao futuro. Mas, ao mesmo tempo, fé envolve obediência, pois fé significa auto-renúncia e abandono de toda segurança. Significa a renúncia de todo esfôrço de esculpir um nicho na vida para nós mesmos, entregando toda nossa auto-confiança, e resolvendo confiar em Deus somente, no Deus que ressuscita dos mortos (II Cor. 1:9) e que chama as coisas que não existem à existência (Rom. 4:17). Significa um comissionamento radical do eu a Deus na expectação de que tudo virá dele e nada de nós mesmos. Tal vida produz livramento de todos os objetos tangíveis, terrenos, conduzindo assim a uma completa separação do mundo, e assim à liberdade.

Esta separação do mundo, contudo, é algo bastante diferente do ascetismo. Significa preservar uma distância do mundo e tratar com ele em um espírito de "como se não" (hos mé, I Cor. 7:29-31). Aquele que crê é senhor de todas as coisas (I Cor. 3:21-23). Ele tem aquele poder (ecsousía) do qual o gnóstico se vangloria, mas com a condição: "Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas" (I Cor. 6:12; cf. 10:23 sg.). O que crê pode "alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram" (Rom. 12:15), mas ele não está mais escravizado a coisa alguma no mundo (I Cor. 7:17-24). Tudo no mundo tem se tornado indiferente e sem importância. "Pois sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos"(I Cor. 9:19-23). "Tanto sei catar humilhado, como também ser honrado: de tudo e em todas as circunstâncias já tenho experiência, tanto de fartura, como de fome; assim de abundância, como de escassez." (Fil. 4:12). Além do mais, o poder de sua nova vida é manifesto mesmo na franqueza, no sofrimento e na morte (II Cor. 4:7-11; 12:9 sg.). Exatamente quando ele percebe que não é nada em si mesmo, ele pode ter e ser todas as coisas através de Deus (II Cor. 12:9 sg; 6:8-10).

Ora, existência nestes termos é existência escatológica; significa ser uma "nova criatura" (II Cor. 5;17). A escatologia do apocalipsismo judaico e do gnosticismo se emancipou da mitologia que a acompanhava, na medida em que a época da salvação já despontou para o crente e que a vida do futuro se tornou uma realidade presente. O quarto evangelho leva este processo a uma conclusão lógica, eliminado completamente todo e qualquer traço da escatologia apocalíptica. O julgamento final não é mais um evento cósmico iminente, pois ele já está acontecendo na vinda de Jesus e em sua convocação e crer-se (João 3:19; 9:39; 12:31). Aquele que crê tem vida aqui e agora, e já passou da morte para a vida (5:24, etc). Externamente tudo continua como antes, mas interiormente sua relação para com o mundo se mudou radicalmente. O mundo não tem mais reivindicações a fazer sôbre êle, pois a fé é a vitória que vence o mundo (I João 5:4).

A escatologia do gnosticismo de igual modo é ultrapassada. Não que o crente recebe uma nova natureza (fúsis) ou que sua natureza preexistente se emancipe, ou que sua alma se assegure de uma jornada ao céu. A nova vida na fé não é uma assegurada possessão ou doação, que poderia conduzir somente ao libertinismo. Nem é uma possessão a ser aguardada com cuidado e vigilância, que poderia conduzir sòmente ao ascetiscismo. A vida na fé não é possessão, de modo algum. Ela não pode ser expressa exclusivamente em termos indicativos; precisa de um imperativo para completá-la. Em outras palavras, a decisão da fé nunca é final; precisa de constante renovação em cada nova situação. Nossa liberdade não nos escusa da demanda sob a qual estamos como homens, pois é liberdade para obediência (Rom. 6:11 sg.). Crer não significa ter apreendido, mas ter sido apreendido. Significa que o que crê está sempre viajando pela estrada entre o "Já" e o "não ainda", sempre em busca do alvo.

Para o gnosticismo a redenção é um processo cósmico no qual os redimidos recebem o privilégio de participar aqui e agora. Embora essencialmente transcendente, a fé precisa ser reduzida a um possessão imanente. Seus sinais externos são liberdade (eleuthería) , poder (ecsousía), fenômenos pneumáticos, e acima de tudo êxtase. Em último instância, o NT não conhece nenhum fenômeno em que realidades transcendentes se tornam possessões imanente. É verdade que Paulo é familiar com a êxtase (II Cor. 5:13; 12:1 sg.). Mas ele se recusa a aceitá-la como uma prova de possessão do Espírito. O NT nunca fala de treinar-se a alma em experiência mística ou de êxtase como o auge da vida cristã. Não fenômenos psíquicos, mas a fé é a características desta vida.

Certamente Paulo compartilha a crença popular de sua época de que o Espírito se manifesta em milagres, e ele atribui então fenômenos psíquicos anormais à sua agência. Mas o entusiasmo dos coríntios por coisas como esta fez com que ele se apercebesse de seu caráter equívoco. Então ele insiste que os dons do Espírito deve ser julgados segundo o valor que têm para a "edificação", e assim fazendo ele transcende o ponto de vista popular que considera o Espírito uma agência que opera como qualquer outra fôrça natural. É verdade que ele considera o Espírito como uma entidade misteriosa que habita no homem e garante sua ressurreição (Rom. 8:11). Ele pode mesmo falar do Espírito como se ele fosse uma espécie de material sobrenatural (I Cor.15:44 sg.). Todavia, em última instância, ele claramente entende por "Espírito" a possibilidade de uma nova vida que é aberta pela fé. O Espírito não age como uma fôrça sobrenatural, nem é a possessão permanente do crente. É a possibilidade de uma nova vida que deve ser apropriada por uma resolução deliberada. Por causa disto a exortação paradoxal de Paulo: "Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito" (Gál. 5:25). Ser "guiados pelo Espírito" (Rom. 8:14) não é um processo automático da natureza, mas o cumprimento de um imperativo: "Vivei segundo o Espírito, não segundo a carne". Imperativo e indicativo são inseparáveis. A possessão do Espírito nunca torna supérflua a decisão. "Digo, porém: Andai no Espírito, e jamais satisfareis à concupiscência da carne" (Gál. 5:16). Assim o conceito "Espírito" foi emancipado da mitologia.
O catálogo paulino dos frutos do Espírito ("amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio", Gál. 5:22) mostra como a fé, separando o homem do mundo, o faz capaz de comunhão ( fellowship) na comunidade. Agora que ele está livre da ansiedade e da frustração que vem do apêgo às realidades tangíveis do mundo visível, o homem é livre para gozar de comunhão com os outros. Por causa disso a fé é descrita como atuante pelo amor (Gálatas 5:6). E isto significa ser uma nova criatura (cf. Gál. 5:6 com 6:15).

B. O Evento da Redenção

1. Cristianismo sem Cristo?

Temos sugerido uma interpretação existencialista não-mitológica de compreensão cristã do Ser. Mas encontra-se esta interpretação realmente no NT? Parece que temos desconsidera um ponto importante, a saber, que no NT fé é sempre fé em Cristo. Fé, no sentido estrito da palavra, só houve a partir de um momento específico na história. A fé teve que ser revelada; ela veio (Gál. 3:23,25). Isto poderia, é claro, ser considerado como parte da história da evolução espiritual do homem. Mas o NT quer dizer mais que isto. Ele reivindica que a fé somente se tornou possível em um ponto definido da história em conseqüência de um evento – a saber, o evento de Cristo. Fé, no sentido de comissionamento (26) obediente e de separação interior do mundo sòmente é possível quando a fé em Jesus Cristo.

Aqui está o ponto crucial da questão – temos nós aqui um remanescente de mitologia que ainda requer uma reformulação? De fato, chegamos a isto, podemos ter uma compreensão cristã do Ser sem Cristo?

O leitor lembrar-se-á de nossa crítica à escola da História das Religiões por eliminar ela o decisivo evento de Cristo. Será que nossa reinterpretação do Cristianismo em termos existencialistas é aberta precisamente à mesma objeção?

Poderia parecer como se o evento de Cristo fôsse uma relíquia de mitologia, que ainda espera pela eliminação. Este é um problema sério e se a fé cristã recuperar sua auto-segurança o problema precisa ser enfrentado. Pois a fé cristã só pode recuperar sua certeza e segurança se estiver preparada para considerar até extremos a possibilidade de sua própria impossibilidade ou superfluidade.

Poderia parecer bem possível ter-se uma compreensão cristã do Ser sem Cristo, como se o que tivéssemos no NT fosse a primeira descoberta e a expressão mais ou menos clara, com aparência de mitologia, de uma compreensão do Ser que no fundo é a compreensão natural que o homem tem do seu Ser, compreensão esta que tem recebido expressão clara na filosofia existencialista moderna. Quer dizer que o que o existencialismo tem feito é apenas remover a máscara mitológica e sustentar à compreensão cristã do Ser, como encontramos no NT, levando-a a uma conclusão mais lógica? É a teologia simplesmente uma precursora do existencialismo? É ela nada mais do que uma sobrevivência inútil e um íncubo desnecessário?

Tal é a impressão que poderíamos tirar de uma consideração dos desenvolvimentos recentes na filosofia. Não poderíamos nós dizer que o NT relata o que os existencialistas chamam de "a historicidade de Ser"?

O Conde Yorck von Wartenburg (27) escreveu a Dilthey em 15 de dezembro de 1892: "A dogmática foi uma tentativa de formular uma ontologia da mais elevada vida histórica (historic, geschichtlich). A dogmática cristã foi inevitàvelmente a antítese do intelectualismo, porque o Cristianismo é a vitalidade suprema" (28). Dilthey concorda: "... todo dogma precisa ser traduzido de modo a efetuar sua validade universal para toda a vida humana. Os dogmas são estreitados pela sua conexão com a situação no passado no qual surgiram. Tão logo são eles libertos desta limitação se tornam ... a consciência da natureza supra-sensual e supra-inteligível da historicidade pura e simples... Por causa disto os principais dogmas cristão, que incluem símbolos tais como "Filho de Deus", "satisfação", "sacrifício", e o semelhante, são, na medida em que são limitados aos fatos da história cristã, insustentáveis. Mas tão logo são reinterpretados como afirmações de validade universal eles expressam a forma viva mais elevada de toda a história. Assim eles perdem sua rígida e exclusiva referência à pessoa de Jesus que deliberadamente exclui qualquer outra referência" (29).

Yorck dá, à guisa de ilustração, uma reinterpretação das doutrinas do pecado original e da expiação. Ele as acha inteligíveis à luz do que ele chama de "conexão virtual" que corre como uma linha reta através de toda a história. "Jesus é a demonstração histórica (historical, historisch) de uma verdade universal. A criança se beneficia do auto-sacrifício de sua mãe. Isto envolve uma condição de virtude e poder de uma pessoa a outra, sem a qual a história é impossível. [Note-se o corolário – toda história, não apenas a história cristã, envolve transferência de poder.] Por esta razão é que o racionalismo é cego ao conceito de história. E o pecado – não atos específicos de mal-fazer, mas a pecaminosidade do homem em geral – é, como o homem religioso sabe por sua própria experiência, bastante impredizível. Não se torna menos "monstruoso e repulsivo" [como Dilthey tinha estigmatizado a doutrina do pecado original] se soubermos que a doença e a miséria são transmitidas de geração? Estes símbolos cristãos são retirados da profundidade mesma da natureza, pois a própria religião- quero dizer o Cristianismo – é sobrenatural, não inatural" (30).
O desenvolvimento da filosofia desde a época de Dilthey tem, pareceria, amplamente justificado estas posições. Karl Jaspers não encontrou dificuldades em transpor a interpretação do Ser cristão de Kierkegaard para a esfera da filosofia. Acima de tudo, a análise existencialista que Heidegger faz da estrutura ontológica do ser pareceria ser nada mais do que uma versão secularizada, filosófica, do ponto de vista neo-testamentário a respeito da vida humana. Para ele a principal característica do Ser do homem na história é a ansiedade. O homem existe em uma permanente tensão entre o passado e o futuro. A cada momento ele é confrontado com uma alternativa. Ou ele se imerge no mundo concreto da natureza, e assim inevitavelmente perde sua individualidade, ou ele abandona toda e qualquer segurança e se comissiona sem reservas ao futuro, e somente assim alcança seu ser autêntico. (Cf. Nota 26). Não é exatamente esta a compreensão neo-testamentária da vida humana? Alguns críticos têm objetado que eu estou tomando emprestado as categorias de Heidegger e forçando-as ao NT. Temo que isto somente mostre que eles estão fechando seus olhos ao problema real, que é que os filósofos estão dizendo a mesma coisa que o NT, e dizendo bastante independentemente.

Wilhelm Kamlah (31) colocou a questão de um modo novo em um recente livro. É verdade que Kamlah expressamente ataca o caráter escatológico da compreensão cristã do Ser, mas isto porque ele interpreta errôneamente a separação do mundo que é conseqüente da fé. Ele a compreende não-dialeticamente como uma simples negação do mundo, e assim deixa de fazer justiça ao "como se não" tão característico das Epístolas paulinas. Mas a compreensão do Ser que Kamlah desenvolve filosoficamnete é, manifestamente, uma versão secularizada do que encontramos no Cristianismo. O conceito de fé, ele o substitui por "auto-comissionamento" (Cf Nota 26), pelo que ele quer dizer "rendição à realidade universal", ou a Deus como a fonte de todo Ser. Auto-comissionamento traz consigo uma revelação do significado da realidade universal. Além do mais é emancipação, trazendo liberdade interior através de separação de todos os objetos sensuais de desejo. O próprio Kamlah está ciente de quão chegado é isto à concepção cristã de fé. Ele diz: "Os teólogos freqüentemente tem observado o caráter paradoxal desta habilidade de confiar, ao menos na medida em que se trata do início da fé. Tem-se perguntado freqüentemente como pode vir o indivíduo a crer se a fé é um dom de Deus e não pode ser alcançada através de esforço humano, e como pode exigir-se fé se ela está fora do limite da capacidade humana. A questão freqüentemente é deixada sem resposta porque os teólogos tem deixado de ver que este é um problema que não é peculiar ao Cristianismo, mas que pertence à estrutura fundamental de nosso ser natural" (32).

A fé cristã, entendida de modo próprio, pareceria ser idêntica ao auto-comissionamento natural. "Visto que oferece a verdadeira compreensão do Ser, a filosofia emancipa o auto-comissionamento natural e o capacita a tornar-se o que se pretende que ele fosse" (33). Assim a filosofia não necessita de qualquer revelação.

O amor cristão, através do qual a fé opera, está aberto a interpretação semelhante. Ele equivale ao ato de nos comissionarmos à nossa cercania familiar. De fato, Kamlah pensa que pode corrigir o NT neste ponto. Segundo ele acha, a concepção cristã do amor interrompe o que ele chama de suave fluxo das história. Ela viola a prioridade do ambiente imediato em que temos sido colocados pela história. Ela dissipa o amor porque o universaliza em lugar de dirigi-lo a nossos verdadeiros próximos (vizinhos, neighbours), aqueles que estão junto de nós. Kamlah quer que consideremos como nossos próximos aqueles que estão unidos a nós pelos laços inexoráveis da história. Deste modo ele emanciparia a verdadeira condição natural (naturalness) do homem (34).

Mas é mesmo verdade que em última análise o NT quer dizer por fé a disposição natural do homem? Claramente, "natural" neste contexto não significa "empírico" mas "próprio ao ser autêntico do homem." Este ser primeiramente tem que ser colocado livre. Mas segundo Kamlah isto não requer revelação. Tudo o que é necessário é reflexão filosófica. É a fé, neste sentido, a disposição natural do homem?

Sim e não. Sim, porque a fé não é uma qualidade misteriosa sobrenatural, mas disposição para a humanidade autêntica. Similarmente, o amor não é efeito de um poder misterioso sobrenatural, mas a disposição "natural" do homem. O NT com Kamlah por um parte do caminho quando ele (NT) chama o homem-em-fé uma "nova criação". Isto implica que pela fé o homem adentra à vida para a qual foi originalmente criado. A questão não é se a natureza do homem pode ser descoberta à parte do NT. É um fato que não foi descoberta sem a ajuda do NT pois a filosofia moderna é devedora tanto ao NT como a Lutero e a Kierkegaard. Mas isto meramente indica o lugar do existencialismo na história intelectual do homem, e, na medida em que se trata do seu conteúdo, ele pouco deve à sua origem histórica. Pelo contrário, o fato mesmo de que é possível produzir uma versão secularizada da concepção neo-testamentária de fé prova que nada há de misterioso ou sobrenatural a respeito da vida cristã.

Não; a questão é se a "natureza" do homem é realizável, isto é, se é possível de ser alcançada. Não é bastante simplesmente mostrar ao homem o que ele deve ser? Pode ela conseguir alcançar seu Ser autêntico por um mero ato de reflexão? É claro que a filosofia, não menos que a teologia, tem sempre tomado por pressuposto que o homem, em maior ou menor grau, tem errado e se desviado, ou ao menos que sempre está em perigo de assim fazer. Mesmo os idealistas tentam mostrar-nos o que realmente somos – a saber, que somos realmente espírito, e que, portanto, e errado perdermo-nos a nós mesmos no mundo das coisas. Tornante o que és! Para Heidegger, o homem perdeu a sua individualidade, e, portanto, ele o convida a redescobrir seu verdadeiro eu (selfhood). Kamlah percebe que o que ele chama de "existência histórica genuína" pode estar escondido e enterrado debaixo do cascalho da irrealidade, e que este é especialmente o caso hoje quando estamos sofrendo os efeitos do Iluminismo. Kamlah também está ciente de que auto-comissionamento imposta sobre ele de fora. Não pode haver emancipação sem obediência (35).
Ao mesmo tempo, contudo, estes filósofos estão convencidos de que tudo de que precisamos é ser informados a respeito da "natureza do homem para que possamos realizá-la. "Visto que é a verdadeira compreensão do ser, a filosofia emancipa o auto-comissionamento que é próprio ao homem, e o capacita a alcançar sua estrutura plena"(36) –evidentemente, isto significa: ela emancipa o homem para o verdadeiro auto-comissionamento. A filosofia procura "libertar"(37) a verdadeira condição natural (naturalness) do homem.

É justificada esta auto-confiança dos filósofos? Qualquer que seja a resposta, ao menos é claro que este é o ponto onde eles se separam do NT. Pois o NT afirma a total incapacidade do homem para libertar-se de seu estado caído. Este livramento somente pode vir por um ato de Deus. O NT não nos dá uma doutrina "natureza", uma doutrina da natureza autêntica do homem; ele proclama o evento da redenção realizado em Cristo.

Esta é a razão que faz com que o NT afirme que sem este ato salvífico (saving) de Deus nosso estado é desesperador, afirmação esta que o existencialismo repudia. Que jaz por trás desta diferença?

Os filósofos e o NT concordam que o homem pode ser somente o que ele já é. Por exemplo, os idealistas creram que era possível a vida do espírito somente porque eles consideraram o homem como essencialmente espírito. Torna-te o que és! Similarmente Heidegeer pode nos convocar à resolução de existir como nós mesmos, como personalidades autênticas, em face da morte porque ele nos abre os olhos à nossa situação de "arremessados"(38) ao Nada. O homem tem que comprometer-se a ser o que ele já é. Similarmente é para Kamlah razoável convidar-nos a que nos emancipemos por um ato de auto-comissionamento, porque ele vê que nossa vida empírica já é uma vida de auto-comissionamento já somos membros da sociedade, já recebemos seus benefícios e contribuímos para a sua manutenção.

Também o NT vê que o homem pode ser sòmente o que ele já é. Paulo exorta os cristãos a que sejam santos porque eles já foram feitos santos (I Cor. 6:11, cp. 5-7), e a andar no Espírito porque eles já estão no Espírito (Gál. 5:25), e a mortificar o pecado porque eles já estão mortos para o pecado (Rom. 6:11 sg.); ou, em linguagem joanina, porque eles não são "do mundo" (toû kósmou, João 17;16); eles podem vencer o mundo, e porque eles são nascidos de Deus não pecam (I João 3:9). A existência escatológica é um ideal atingível porque "veio a plenitude do tempo" e Deus enviou seu Filho "para nos desarraigar deste mundo perverso"(Gál. 4:4; 1:4).

Assim, o NT e os filósofos concordam que a vida autêntica é possível somente porque de algum modo ela já é uma possessão presente. Mas há uma diferença – o NT fala assim somente aos cristãos que crêem, somente aqueles que abriram seus corações à ação redentora de Deus. Ele nunca fala assim ao homem natural, pois este não possui vida, e seu estado é de desespero.

Por que o NT toma esta linha? Porque ele sabe que o homem pode tornar-se somente o que já é, e porque ele vê que o homem natural, à parte de Cristo, não é como deve ser – não está vivo, mas morto.

O ponto em questão é como entendemos a queda. Mesmo os filósofos concordam a respeito do fato da queda. Mas eles pensam que tudo de que o homem precisa é ser informado de seu estado, e então ele será capaz de escapar deste estado. Em outras palavras, a corrupção resultante da queda não se estende ao âmago da personalidade humana. O NT por outro lado, considera a queda como total.

Como então, se a queda é total, pode o homem estar ciente do seu estado? Ele certamente está ciente de sua situação, como os próprios filósofos testificam. Como pode o homem estar ciente de que sua queda é total e que se estende ao âmago mesmo de sua personalidade? Na realidade a questão é outra: é somente porque o homem é um ser caído, sòmente porque ele sabe que não é o que ele realmente deve ser e o que ele gostaria de ser, que ele pode estar ciente de seu estado. Esta consciência de sua natureza autêntica não é uma doação da criação ou uma possessão à sua disposição. Os filósofos concordariam até aqui porque também eles sabem, que a natureza autêntica do homem tem que ser apreendida por uma resolução deliberada. Mas eles pensam que tudo de que o homem necessita é ser informado a respeito de sua natureza autêntica. Esta natureza ele nunca realiza, mas a todo momento ele é capaz de realizá-la - podes porque deves. Mas os filósofos estão confundindo uma possibilidade teórica com uma real. Pois, como o NT considera, o homem perdeu a aquela possibilidade real, e mesmo a sua consciência do que seja humanidade autêntica está pervertida, como é mostrado por sua enganosa crença de que a humanidade autêntica é uma possessão da qual ele pode dispor à vontade.

Por que então a queda destruiu esta possibilidade real? A resposta está em que em seu estado presente todo impulso do homem é um impulso de um ser caído. Paulo demonstra isto no caso dos judeus. Buscando justiça eles perderam de vista o objeto de sua busca. Procuravam justificação através de suas próprias obras; queriam ter base para se gloriarem diante de Deus. Aqui está uma perfeita ilustração do estado do homem, de sua escravidão à carne, que os judeus estavam tentando tão freneticamente evitar. Esta escravidão leva à glorificação própria e à auto-afirmação, a uma tentativa desesperada de controlar-se o próprio destino. Se a vida autêntica é vida de auto-comissionamento, então ela deixa de ser alcançada não somente pelos que ruidosamente se auto-afirmam, mas também por aqueles que procuram alcançar auto-comissionamento por seus próprios esforços, pois estes deixam de perceber que o auto-comissionamento pode ser recebido somente como um dom divino de Deus.

Os judeus que se gloriavam em sua fidelidade à lei e os gnósticos que se jactavam de sua sabedoria são ilustrações da atividade dominante do homem, de sua independência e autonomia que ao fim conduzem à frustração. Encontramos esta mesma coisa no idealismo com o seu deus in nobis:
Lançai mão da divindade; fazei-a vossa:Ela descerá de seu trono celestial até vós.

No caso de Heidegger a perversidade de tal atitude é menos óbvia porque ele não caracteriza a resolução como auto-comissionamento. Ma é claro que o enfrentar o acidente de seu destino em face da morte é realmente a mesma auto-afirmação radical da parte do homem. Kamlah está relativamente mais próximo da posição cristã quando afirma que o mandamento de auto-comissionamento é capaz de ser cumprido porque Deus concede uma compreensão de si mesmo (39) ou porque a "Realidade" torna o auto-comissionamento possível ao homem pelo revelar o seu próprio significado a ele (40), ou porque o auto-comissionamento recebe uma indicação de sua própria inteligibilidade que vem da própria "Realidade" (41). Mas afirmar a inteligibilidade da Realidade a mim me parece uma afirmação desesperada. Porventura não é um ato desesperado de auto-afirmação quando Kamlah diz: "Não é possível duvidar inteiramente na inteligibilidade da Realidade" (42)? Isto certamente significa que a única atitude razoável que o homem pode adotar à parte de Cristo é uma atitude de desespero, desesperando-se da possibilidade de alcançara o Ser autêntico.

De algum modo é isto que o NT afirma. Certamente o NT não pode provar a sua afirmação melhor do que os filósofos podem provar a inteligibilidade da realidade. É questão de decisão. O NT endereça ao homem que tem princípio a fim é um ser que se afirma a si mesmo, a que sabe, através de experiência amarga, que a vida que ele realmente vive não é vida autêntica, e que ele é totalmente incapaz de alcançar esta vida por seus próprios esforços. Em resumo, ele é um ser totalmente caído.

Isto significa, na linguagem do NT, que o homem é pecador. A auto-afirmação da qual temos falado é idêntica ao pecado. O pecado é auto-afirmação, auto-glorificação, pois "ninguém se vanglorie na presença de Deus... Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor" (I Cor. 1:29, 31; II Cor. 10:17). É isto uma desnecessária mitologização de uma proposição ontológica? Pode o homem como ele é perceber que esta auto-afirmação envolve culpa, e que por ela ele é pessoalmente responsável para com Deus? O pecado é um conceito mitológico ou não? A resposta dependerá do que façamos com as palavras de Paulo aos coríntios: "Que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se não tiveras recebido?" (I Cor. 4:7). Aplica-se isto a todos os homem sem discriminação ou somente aos cristãos? Pelo menos isto fica claro: a auto-afirmação envolve culpa somente se puder ser entendida como ingratidão. Se a auto-afirmação radical que faz com que seja impossível ao homem alcançar a vida autêntica de auto-comissionamento é idêntica ao pecado, òbviamente deve ser possível ao homem compreender igualmente sua existência como um dom de Deus. Mas é justamente esta auto-afirmação radical que faz com que esta compreensão seja impossível. Pois a auto-afirmação engana o homem fazendo-o crer que sua existência é um prêmio dentro do seu próprio alcance. Quão cego o homem é com respeito ao seu estado é ilustrado pelo pessimismo que considera a vida como um fardo imposto sobre o homem contra a sua vontade, ou pelo modo em que os homens a respeito do "direito de viver" ou pelo modo em que eles esperam seu justo quinhão de boa sorte. A auto-afirmação radical do homem o cega ao fato de pecado, e esta é a mais clara prova de que ele é um pecador. Ele somente não dará importância considerando isto como mitologia, o que, contudo, não implica em que ele esteja certo.

O pecado cessa de ser mera mitologia quando o amor de Deus encontra o homem como um poder que o envolve e o sustém mesmo em seu estado de queda e auto-afirmação. Este amor trata o homem como se ele fosse outro homem, e fazendo assim, o amor livra o homem de si mesmo, de como ele é realmente.

Pois em resultado de sua auto-afirmação o homem é um ser totalmente caído. Ele é capaz de saber que sua vida autêntica consiste de auto-comissionamenteo, mas é incapaz de realizá-la porque embora ele tente com seriedade, ele ainda permanece o que ele é, um homem que se afirma a si mesmo. Assim, na prática, a vida autêntica se torna possível sòmente quando o homem é liberto de si mesmo. O NT reivindica que é exatamente isto o que aconteceu. É este precisamente o sentido daquilo que foi executado em Cristo. Exatamente quando o homem não pode fazer nada, Deus entra em cena e age - de fato, ele já agiu - a favor do homem.

Paulo se esforça para expressar isto quando ele fala de expiação do pecado, ou da "justiça (righteousness) criada como um dom de Deus, em lugar de ser uma conquista humana. Através de Cristo, Deus reconciliou o mundo consigo mesmo, não lhe imputando os seus pecado (II Cor. 5:19). Deus fez com que Cristo fôsse pecado por nós, para que através dele pudéssemos permanecer diante de Deus como justos (II Cor. 5:21). Para todo aquele que crê sua vida passada está morta e esquecida. Ele é uma nova criatura, e como tal ele enfrenta cada novo momento. Em resumo, ele se tornou um homem livre.

É bem claro que este perdão de pecados não é um conceito jurídico. Não significa remissão de punição (43). Se assim fosse o estado do homem seria tão mau como nunca. Pelo contrário, o perdão conduz a liberdade do pecado, que ato até então mantivera o homem em escravidão. Mas esta liberdade não é uma qualidade estática: é liberdade para obedecer. O indicativo implica um imperativo. O amor é o cumprimento da lei, e portanto o perdão de Deu liberta o homem de si mesmo e o faz livre para devotar sua vida ao serviço dos outros. (Rom. 13:8-10; Gál. 5:14).

Assim se tronou possível a existência escatológica. Deus agiu e o mundo – "este mundo"- veio a um fim. O próprio homem foi feito de novo. "Se alguém está em Cristo é nova criatura; as cousas antigas já passaram; eis que se fizeram novas." (II Cor. 5:17). Assim fala Paulo. João diz a mesma coisa em sua linguagem particular. O conhecimento da "verdade" revelada em Jesus torna livres os homens (8:32), livres da escravidão do pecado (8:34). Jesus chama os mortos à vida (5:25) e dá visão aos cegos (9:39(. O que crê em Cristo é "nascido de nôvo" (3:3 sg.); é-lhe dado um novo começo de vida. Não mais ele é do mundo (worldling), pois venceu o mundo através da fé (I João 5:4).

O evento de Jesus Cristo é portanto a revelação do amor de Deus. Ele faz o homem livre de si mesmo e livre para ser ele mesmo, livre para viver uma vida de auto-comissionamento em fé e amor. Mas a fé nesse sentido da palavra é possível somente onde ela toma a forma de fé no amor de Deus. Todavia tal fé é ainda uma forma sutil de auto-afirmação na medida em que o amor de Deus é meramente pensamento, idéia. Ela é somente uma idéia abstrata na medida em que Deus não revelou seu amor. Por causa disto é que fé para o cristão quer dizer fé em Cristo, pois é fé no amor de Deus revelado em Cristo. Somente aqueles que são amados são capazes de amar. Somente aqueles que tem recebido confiança como um com podem mostrar confiança nos outros. Somente aqueles que sabem o que é auto-comissionamento por experiência podem adotar esta atitude para si mesmos. Somos livres para nos darmos a Deus porque ele se entregou por nós. "Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou, e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecado." (I João 4:10)."Nós amamos porque ele nos amou primeiro"(I João 4:19).

A afirmação clássica deste auto-comissionamento de Deus, que é a base de nosso próprio auto-comissionamento, é encontrada em Romanos 8;32: "Aquele que não poupou a seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura nos não dará graciosamente com ele todas as coisas?" Comparemos isto com o texto joanino: "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça mas tenha a vida eterna" (João 3:16). Há também textos similares que falam de Jesus entregando-se a si mesmo por nós: "... o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso" (Gál. 1:4); "Eu estou crucificado com Cristo; logo já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e êste viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim (Gál. 2:19 sg.).

Aqui então está a crucial distinção entre o NT e o existencialismo, entre a fé cristã e a compreensão natural do Ser. O NT fala e a fé conhece a respeito de um ato de Deus através do qual o homem se torna capaz de auto-comissionamento, capaz de fé e amor, capaz de possuir a vida autêntica.

Temos nós levado nossa demitologização suficientemente longe? Resta-nos ainda um mito, ou ao menos em evento portador de um caráter mítico? É possível, como temos visto, reafirmar em termos não-mitológicos o ensino do NT sobre a existência humana à parte da fé e na fé. Mas, que dizer a respeito do ponto de transição entre a velha vida e a vida nova, autêntica? Pode este ponto de transição ser entendido de outro modo a não ser como um ato de Deus? A fé é genuína sòmente quando é fé no amor de Deus revelado em Cristo?

2. O Evento de Jesus Cristo

Afirmar que só se pode falar mitologicamente de um ato de Deus é considerar a idéia de um ato de Deus em Cristo como um mito. Mas ignoraremos esta questão por um momento. Mesmo Kamlah pensa que é filosoficamente justificável usar "a linguagem mitológica a respeito de uma ato de Deus" (p. 353). A questão aqui é, pois, se aquele evento particular no qual o NT vê o ato de Deus e a revelação do seu amor – isto é, o evento de Jesus Cristo – é essencialmente um evento mítico.

a. A Demitologização do Evento de Jesus Cristo

É fora de cogitação que o NT apresenta o evento de Jesus Cristo em termos Míticos. O problema é se esta é a única apresentação possível. Ou o próprio NT exige uma reafirmação do evento de Jesus Cristo em termos não-mitológicos? É claro, porém, que o evento de Cristo é de uma ordem inteiramente diferente dos mitos cúlticos da religião grega ou helenística. Certamente Jesus Cristo é apresentado como o Filho de Deus, um ser divino preexistente, e, portanto, uma figura mítica no tocante a isto. Mas ele também é uma figura concreta da história – Jesus de Nazaré. Sua vida é mais do que um evento mítico; é uma vida humana que terminou na tragédia da crucificação. Temos aqui uma combinação única de história e mito. O NT reivindica que este Jesus da história, cujos pais eram bem conhecidos de seus contemporâneos (João 6:42), é ao mesmo tempo, o Filho de Deus preexistente, e lado a lado com o evento histórico da crucificação ele apresenta o evento definidamente não-histórico da ressurreição. Esta combinação de mito e história apresenta um número de dificuldades, como pode ser visto por certas inconsistências no material do NT. A doutrina da preexistência de Cristo conforme apresentado por Paulo e João é difícil de ser reconciliada com a lenda do nascimento Virginal em Mateus e Lucas. Por um lado ouvimos que "ele se esvaziou assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana ..." (Fli. 2;7), e por outro lado temos as descrições dos Evangelhos de um Jesus que manifesta sua divindade em seus milagres, em sua onisciência e logros (elusiveness) misteriosos, e a descrição similar que Atos faz dele como "Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós, com milagres, prodígios e sinais" (Atos 2:22). De um lado temos a ressurreição como a exaltação de Jesus na cruz ou do túmulo, e de outro as lendas do túmulo vazio e da ascensão.

Somos compelidos a perguntar se toda esta linguagem metológica não é simplesmente uma tentativa de expressar o significado da figura histórica de Jesus e os eventos de sua vida; em outras palavras, tentativa de exprimir seu significado como figura e evento de salvação. Se assim for, podemos dispensar a forma objetiva em que são colocados.

Deste modo é fácil tratar com a doutrina da preexistência de Cristo e a lenda do nascimento Virginal. Claramente elas são tentativas de explicar o sentido da Pessoa de Jesus para a fé. Os fatos passíveis de verificação pela crítica histórica não podem exaurir, de fato não podem sequer indicar adeqüadamente, tudo que Jesus significa para mim. Como ele realmente teve origem importa pouco, e nós só podemos apreciar de fato o seu significado quando deixamos de nos preocupar com tais questões. Nosso interesse nos eventos de sua vida, e acima de tudo na cruz, e mais do que um interesse acadêmico com a história do passdo. Podemos encontrar sentido neles somente quando perguntamos o que Deus está tentando dizer a cada um de nós através deles. Uma vez mais, a figura de Jesus não pode se compreendida simplesmente a partir de seu contexto na história ou na evolução humana. Em linguagem mitológica isto quer dizer, que ele surge da eternidade, que sua origem transcende tanto a história como a natureza.

Contudo não prosseguiremos a examinar os incidentes particulares de sua vida. Em última instância o ponto crucial do assunto está na cruz e na ressurreição.

b. A Cruz

É a cruz, compreendida como o evento da redenção, exclusivamente mítica em caráter, ou pode ela reter seu valor para a salvação sem atentado ao seu caráter como história?

A cruz certamente tem um caráter mítico na medida em que se concerne o seu cenário objetivo. O Jesus que foi crucificado era o Filho de Deus preexistente e encarnado, e como tal ele era sem pecado. Ele é a vítima cujo sangue expia nossos pecado. Ele suporta vicàriamente o pecado do mundo, e sofrendo a punição pelo pecado a nosso favor ele nos livra da morte. Esta interpretação mitológica mistura analogias sacrificiais e jurídicas, que para nós hoje cessaram de ser sustentáveis. De qualquer modo elas deixam de fazer justiça àquilo que o NT esta tentando dizer. Ao máximo o que elas podem transmitir é que a cruz efetua o perdão de todos os pecados passados e futuros do homem, no sentido de que a punição que eles mereciam foi retirada. Mas o NT quer dizer que mais do que isto. A cruz redima os homens não só da culpa, mas do poder do pecado. É por isso que, quando o autor de Colossenses diz: " Ele (Deus) ... perdoando todos os nossos delitos; tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz" se apressa a acrescentar: "E despojando os principados e as potestades, pùblicamente os expôs ao desprezo, triunfando dêles na cruz" (Col. 2:13-15).

O evento histórico da cruz adquire dimensões cósmicas e assim sua significação é sobremodo realçada. Pois se vemos na cruz o julgamento do mundo e a derrota dos poderes deste mundo (I Cor. 2:6 sg.), a cruz se torna o julgamento de nós mesmo como criaturas caídas escravizadas aos poderes do "mundo".

Entregando Jesus para ser crucificado Deus erigiu a cruz para nós. Crer na cruz de Cristo não quer dizer preocuparmo-nos com um processo mítico executado fora de nós e do nosso mundo, ou com um evento objetivo que passou a ser vantajoso para nós pela ação de Deus, mas sim fazer a cruz de Cristo nossa própria, sofrer a crucificação com ele. A cruz em seu aspecto redentor não é um incidente isolado que sucedeu a um personagem mítico, mas um evento de importância "cósmica". Sua significação decisiva e revolucionária é demonstrada pela estrutura escatológica em que ela é colocada. Em outra palavras, a cruz não é apenas um evento do passado que pode ser contemplado em destacamento, mas o evento escatológico no tempo e além do tempo, pois na medida em que se trata de seu significado – isto é, seu significado para a fé – é uma realidade sempre-presente.
A cruz se torna uma realidade presente nos sacramentos. No batismo homens e mulheres são batizado na morte de Cristo (Rom. 6:3), e crucificado com ele (Rom. 6:6). Em cada celebração da Ceia do Senhor a morte de Cristo é proclamada (I Cor. 11:26). Através disto os comungantes participam de seu corpo crucificado e de seu sangue derramado (I Cor. 10:16). A cruz de Cristo é ainda uma realidade sempre-presente na vida diária dos cristãos. "E os que são de Cristo crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências" (Gál. 5:24). Por isso é que Paulo pode falar da "cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo" (Gál. 6:14). Por isso ele procura conhecer a "comunhão dos seus sofrimentos", como quem está conformado com ele na sua morte (Fil. 3:10).

O crucificar das paixões e concupiscências inclui o vencer do nosso receio natural para com o sofrimento e a perfeição de nossa separação do mundo. Por causa disto a aceitação voluntária de sofrimento, nos quais a morte já se mostra em ação no homem significa: levar "sempre no corpo o morrer de Jesus" e ser "sempre entregues à morte por causa de Jesus" (II Cor. 4;10 sg.).

Assim a cruz e a paixão são realidade sempre-presentes. Quão pouco elas estão limitadas aos eventos da primeira Sexta feira Santa é amplamente ilustrado pelas palavras que um discípulo de Paulo coloca em sua bôca: "Agora me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja" (Col. 1:24).

Em seu aspecto redentor a cruz de Cristo não é mero evento mítico, mas um fato histórico permanente que se origina no evento histórico passado que é a crucificação de Jesus. A significação permanente da cruz é que ela é o julgamento do mundo, o julgamento e a libertação do homem. Neste sentido Cristo é crucificado "por nós", uma frase que não implica necessariamente em qualquer teoria de sacrifício ou satisfação. Esta interpretação da cruz como um fato permanente em lugar de como um evento mítico faz muito mais justiça a significação redentora do evento passado do que quaisquer interpretações tradicionais. Em última análise a linguagem mitológica é apenas um "medium" para conduzir o significado do evento passado. O real significado da cruz é que ela criou uma nova e permanente situação na história. A pregação da cruz como o evento da redenção desafia todos os que a ouvem a apropriar a sua significação para si próprios, a que desejem ser crucificados com Cristo.

Mas, inquirir-se-á, pode-se discernir esta significação no evento real da história passada? O evento como tal pode nos fornecer esta significação? Ou a cruz possui esta significação porque é a cruz de Cristo? Em outras palavras, precisamos primeiro estar convencidos da significação de Cristo e crer nele para então discernir o real significado real da cruz, compreendê-la como a cruz de Jesus como uma figura da história passada?

Na medida em que se trata dos primeiros pregadores do Evangelho certamente se deu isto. Para eles a cruz era a cruz daquele com o qual eles haviam vivido em intercurso pessoal. A cruz era uma experiência de suas próprias vidas. Elas lhes apresentava uma questão e lhes desvendava o seu significado. Mas para nós esta conexão pessoal não pode ser reproduzida. Para nós a cruz não pode desvendar seu próprio significado: ela é um evento do passado, Nunca podemos recuperá-la como um evento em nossas próprias vidas. Tudo que sabemos a respeito dela é derivado de registro histórico. Mas o NT não proclama Jesus Cristo deste modo. O significado da cruz não é desvendado pela vida de Jesus como uma figura da história passada, uma vida que necessita de ser reproduzida por pesquisa histórica. Pelo contrário, Jesus não é proclamado meramente como o crucificado; ele também ressuscitou dos mortos. A cruz e a ressurreição formam uma unidade inseparável.

c. A Ressurreição

Mas, que dizer a respeito da ressurreição? Não é ela um evento mítico puro e simples? Òbviamente ela não é um evento da história passada com significado auto-evidente. Pode a narrativa da ressurreição, juntamente com todas as outras menções dela no NT, ser estendida simplesmente como uma tentativa de transmitir o significado da cruz? Quer o NT dizer, ao afirmar que Jesus ressuscitou dos mortos, que sua morte não é apenas uma morte humana comum, mas o julgamento e a salvação do mundo, privando a morte de seu poder? Não expressa ele esta verdade na afirmação de que o Crucificado não foi seguro pela morte, mas ressuscitou dos mortos?

Sim, de fato: a cruz e a ressurreição formam um evento cósmico singular e indivisível. "Ele foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação" (Rom. 4:25). A cruz não é um evento isolado, como se fosse o fim de Jesus, fim este que precisava da ressurreição, subseqüentemente, para revertê-lo. Quando Jesus morreu já era o Filho de Deus, e sua morte por si mesma foi a vitória sobre o poder da morte. João demonstra isto muito claramente ao descrever a paixão de Jesus como a "hora em que ele é glorificado, e pelo duplo significado que ele dá à frase "levantado", aplicando-a à cruz e à exaltação de Cristo à glória.

A cruz e a ressurreição formam um evento cósmico singular e indivisível que traz julgamento ao mundo, e que abre a possibilidade de vida autêntica aos homens. Mas sendo assim, a ressurreição não pode ser uma prova miraculosa de demonstração possível e suficiente para convencer o cético de que a cruz realmente tem a significância cósmica e escatológica atribuída a ela.

Todavia não pode ser negado que a ressurreição de Jesus é freqüentemente usada no NT como uma prova miraculosa. Tomemos por exemplo Atos 17:31. Aqui se nos diz claramente que Deus substanciou as reivindicações de Cristo por ressuscitá-lo dentre os mortos. Então vejamos as narrativas da ressurreição: tanto a lenda do túmulo vazio como as aparições insistem na realidade física do corpo ressurreto do Senhor (ver especialmente Lucas 24:39-43). Mas estes certamente são embelezamentos posteriores da tradição primitiva. Paulo nada sabe a respeito deles. Há, contudo, uma passagem onde Paulo tenta provar o milagre da ressurreição alegando uma lista de testemunhas oculares (I Cor. 15:3-8). Mas este é um proceder perigoso, como Karl Barth involuntariamente demonstrou. Barth procura explicar I Cor. 15 de modo a evitar o sentido real do texto afirmando que a lista de testemunhas oculares foi introduzida não para provar o fato da ressurreição, mas para provar que a pregação do apóstolo, como a pregação dos primeiros cristãos, era a pregação de Jesus como o Senhor ressurreto. As testemunhas oculares portanto garantem a pregação de Paulo, não o fato de ressurreição. Um fato histórico que envolve uma ressurreição dos mortos é inteiramente inconcebível!

Sim, de fato: a ressurreição de Jesus não pode ser uma prova miraculosa pela qual o cético possa ser compelido a crer em Cristo. A dificuldade não é simplesmente a incredulidade de um evento mítico, como a ressurreição de um cadáver – pois isto é o que ressurreição quer dizer, como é mostrado pelo fato de que o Senhor ressurreto é apreendido pelos sentidos físicos. Nem a dificuldade está em estabelecer-se a historicidade objetiva da ressurreição, não importando quantos testemunhos são citados, como se uma vez estabelecida esta historicidade se pudesse crer na ressurreição além de qualquer dúvida e a fé pudesse ter sua incensurável garantia. Não; a dificuldade real é que a ressurreição é ela própria um artigo de fé, e não se pode estabelecer um artigo de fé invocando outro. Não se pode provar a eficácia redentora da cruz invocando a ressurreição. Pois a ressurreição é um artigo de fé porque é muito mais do que a ressurreição de um cadáver – é o evento escatológico. E assim ela não pode ser uma prova miraculosa. Pois, à parte de sua credibilidade, o milagre simples nada nos diz a respeito do fato escatológico da destruição da morte. Além do mais, um tal milagre não é desconhecido à mitologia.

Está suficientemente claro, contudo, que o NT está interessado na ressurreição de Cristo simples, somente porque ela é o evento escatológico par excellence. Através dela Cristo aboliu a morte e trouxe vida e imortalidade à luz (II Tim. 1:10). Isto explica porque Paulo toma emprestada linguagem gnóstica para clarificar o significado da ressurreição. Como na morte de Jesus todos morreram (II Cor. 5:14 sg.), assim através de sua ressurreição todos foram ressuscitados dos mortos, embora naturalmente este evento se estenda por um longo período de tempo (I Cor. 15:21 sg.). Mas Paulo não somente diz: "Todos serão vivificados em Cristo"; ele pode também falar a respeito de ressuscitar com Cristo no tempo presente, exatamente como ele fala de nosso morrer com ele. Através do sacramento do batismo os cristãos participam não somente na morte de Cristo, mas também em sua ressurreição. Não acontece simplesmente que nós andaremos com ele em novidade de vida estaremos unidos com ele em sua ressurreição (Rom. 6:4 sg.); isto já acontece conosco aqui e agora. "Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado mas vivos para Deus em Cristo Jesus" (Rom. 6:11).

Ainda mais, na vida, diária os cristãos participam não somente na morte de Cristo, mas tammbém em sua ressurreição. Nesta ressurreição eles gozam uma liberdade do pecado, embora seja uma liberdade em luta (Rom. 6:11 sg.). Eles são capazes de deixar "as obras da trevas", de modo que se aproxima o dia quando as trevas desaparecerão a ponto de poder já ser experimentado aqui e agora. "Andemos dignamente como em pleno dia" (Rom, 13:12 sg.): "nós não somos da noite nem das trevas...nós porém que somos do dia sejamos sóbrios..." (I Texx. 5:5-8). Paulo busca compartilhar não somente os sofrimentos de Cristo mas também "o poder de sua ressurreição’ (Fil. 3:10). Deste modo ele leva no corpo o morrer de Jesus, "para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo" (II Cor. 4:10). Similarmente quando os coríntios exigiram uma prova de sua autoridade apostólica, ele solenemente os adverte: "Cristo.. não é fraco para convosco, antes é poderoso em vós. Porque de fato crucificado em fraqueza, contudo vive pelo poder de Deus. Porque nós também somos fracos nele, mas viveremos com ele para vós outros pelo poder de Deus" (II Cor. 13:3 sg.).

Deste modo a ressurreição não é um evento mitológico alegado para provar a eficácia salvífica da cruz, mas um artigo de fé tanto quanto o sentido da própria cruz. De fato, fé na ressurreição é realmente a mesma coisa que fé na eficácia salvífica da cruz, fé na cruz como a cruz de Cristo. Por causa disto não se pode primeiro crer em Cristo e então na força desta fé crer na cruz. Crer em Cristo significa crer na cruz como na cruz de Cristo. A eficácia salvífica da cruz não é derivada do fato de que ela é a cruz: é a cruz de Cristo, porque tem esta eficácia salvífica. Sem esta eficácia ela é o fim trágico de um grande homem.

Voltemos de novo à velha questão. Como vimos nós a cremos na cruz como a cruz de Cristo e como evento escatológico par excellence? Como vimos nós a crer na eficácia salvífica da cruz?

Há somente uma resposta. Este é o modo em que a cruz é proclamada. Ela é sempre proclamada junto a ressurreição. Cristo nos encontra na pregação como o crucificado e ressurreto. Ele nos encontra na palavra da pregação e em nenhum lugar mais. A fé da Páscoa (Easter faith) é justamente esta – fé na palavra da pregação.

Seria errado novamente neste ponto levantar a questão de como a pregação surgiu historicamente, como se isto pudesse sustentar sua verdade. Isto seria ligar nossa fé na palavra de Deus aos resultados da pesquisa histórica. A palavra da pregação nos confronta com a palavra de Deus. Não compete a nós o questionar suas credenciais. Somos nós que somos questionado, é a nós que se pergunta se creremos na palavra ou se a rejeitaremos. Mas respondendo esta questão aceitando a palavra da pregação como a palavra de Deus e a morte e a ressurreição de Cristo como o evento escatológico, nos é oferecida uma oportunidade de compreendermos a nós mesmos. Fé e não-fé nunca são decisões cegas e arbitrárias. Elas nos oferecem a alternativa entre aceitar ou rejeitar aquilo que somente pode iluminar nossa compreensão de nós mesmos.

A real fé da Páscoa é fé na palavra da pregação que traz iluminação. Se o evento do dia da Páscoa é, um certo sentido, um evento histórico adicional ao evento da cruz, ele é nada mais que o surgimento da fé no Senhor ressurreto, visto que foi esta fé que conduziu à pregação apostólica.

A própria ressurreição não é um evento da história passada. Tudo que a crítica histórica pode estabelecer é o fato de que os primeiros discípulos vieram a crer na ressurreição. O historiador pode, talvez, em alguma medida, explicar aquela fé a partir da intimidade pessoal que os discípulos gozaram com Jesus durante sua vida terrena, e assim reduzir as aparições as ressurreição a uma série de visões subjetivas. Pois o evento histórico do surgimento da fé da Páscoa significa para nós o que significou para os primeiros discípulos –a saber, a auto-manifestação do Senhor ressurreto, o ato de Deus em que o evento redentor da cruz é completado. (44)

Não podemos escorar nossa própria fé na ressurreição com a fé dos primeiros discípulos e assim eliminar o elemento de risco que a fé na ressurreição sempre envolve. Pois a fé dos primeiros discípulos na ressurreição é ela própria parte e parcela do evento escatológico que é o artigo da fé.

Em outras palavras, a pregação apostólica que teve origem no evento do dia da Páscoa é ela própria uma parte do evento escatológico da redenção. A morte de Cristo, que é tanto o julgamento como a salvação do mundo inaugura o "ministério da reconciliação" ou "a palavra da reconciliação" (II Cor. 5:18 sg.) Esta palavra suplementa a cruz e faz sua eficácia salvífica inteligível por exigir fé e por confrontar os homens com a questão se eles estão desejosos de se compreenderem como homens que são crucificados e ressuscitados com Cristo. Através da palavra da pregação a cruz e a ressurreição são feitas presentes: o "agora escatológico está aqui, e a promessa de Isa. 49:8 é cumprida: "eis agora o tempo sobremodo oportuno, eis agora o dia da salvação" (II Co. 6:2). É por isso a pregação apostólica traz julgamento. Para alguns o apóstolo é cheiro de "morte para a morte", e para outros "aroma de vida para vida" (II Cor. 2:16). Paulo é o agente através do qual a vida da ressurreição se torna efetiva no fiel (II Cor. 4:12). A promessa de Jesus no Quarto Evangelho é eminentemente aplicável à pregação em que êle é proclamado: "Em verdade em verdade vos digo: Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida eterna... vem a hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem , viverão"( João 5:24 sg.). Na palavra da pregação e ali somente encontramos o Senhor ressurreto. "E assim a fé vem pelo ouvir, e ouvir pela Palavra de Cristo" (Rom. 10:17, trd.).

Como a própria palavra e o apóstolo que a proclama, assim a Igreja onde a pregação da palavra é continuada, e onde os crentes ou "santos" (i. e., aqueles que foram transferidos para a existência escatológica) são reunidos é parte do evento escatológico. A palavra "Igreja " (ekklesía) é um termo escatológico, enquanto sua designação como o Corpo de Cristo enfatiza sua significação cósmica. Pois a Igreja não é apenas um fenômeno da história secular, é fenômeno de história significativa, no sentido que ela se realiza na história.

Conclusão:

Esboçamos um programa para a demitologização do NT. Sobrevivem ainda traços de mitologia? Certamente sim para aqueles que consideram toda linguagem a respeito de um ato de Deus, ou de um evento escatológico decisivo, como mitológica. Mas isto não é mitologia no sentido tradicional, não é a espécie de mitologia que se tornou antiquada com o declínio da perspectiva mítica do mundo. Pois a redenção de que falamos não é um evento miraculoso sobrenatural, mas um evento histórico executado no tempo e no espaço. Estamos convencidos de que esta afirmação faz melhor justiça ao significado real do NT e ao paradoxo do Kerygma. Pois o Kerygma mantém que o emissário escatológico de Deus é uma figura concreta de um passado histórico particular, que sua atividade escatológica foi executada em um destino humano, e que portanto é um evento cujo caráter escatológico não admite prova secular. Aqui temos o paradoxo de Fil. 2:7: "Ele esvaziou-se"; de II Cor. 8:9: "que sendo rico se fez pobre por amor de vós"; de Rom. 8:3 "Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa"; de I Tim. 3:16 "aquele que foi manifestado na carne": e acima de tudo da fórmula clássica de João 1:14- "A Palavra se fez carne" (Trd.)

O agente da presença e atividade de Deus, o mediador de sua reconciliação do mundo consigo mesmo, é uma figura real da história. Similarmente a palavra de Deus não é um oráculo misterioso, mas um relato sóbrio e fatual de uma vida humana, de Jesus de Nazaré, possuindo eficácia salvífica para o homem. Naturalmente o Kerygma pode ser considerado como parte da história da evolução espiritual do homem, e usado como base para um Weltanschauung sustentável . Todavia esta proclamação reivindica ser a palavra escatológica de Deus.

Os apóstolos que proclamam a palavra podem ser considerados meramente como figuras da história passada, e a Igreja como um fenômeno sociológico e histórico, parte da história da evolução espiritual do homem. Todavia ambos são fenômenos escatológico e eventos escatológicos.

Todas estas afirmações são uma ofensa (skándalon), que não será removido por discussão filosófica, mas sòmente por fé e obediência. Todos estes são fenômenos sujeitos a observação histórica, sociológica psicológica, todavia para a fé são todos eles fenômenos escatológicos. É precisamente sua imunidade à prova que assegura a proclamação cristã a acusação de ser mitológico. A transcendência de Deus não é reduzida à imanência, como no mito. Em vez disto, temos o paradoxo de um Deus transcendente presente e ativo na história: "A Palavra se fez carne".
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REFERÊNCIAS

* Este artigo é traduzido do primeiro volume de Kerygma and Myth, editado por Hans Werner Bartsch e traduzido para o inglês por Reginald H. Fuller, S. P. C. K., London, 1 957, pp. 1-44.
As citações bíblicas são retiradas da Edição Revista e atualizada no Brasil da SBB, exceto em lugares em que foi acrescentado trd., quando o tradutor sentiu as necessidades de maior proximidade ao original.
Existencial corresponde ao inglês existential e ao alemão existentiell, referindo-se à existência como tal. Existencialista corresponde ao inglês existentialist e ao alemão existential, referindo-se ao sistema filosófico chamado existencialismo.
Histórico corresponde ao inglês historical e ao alemão historisch, compreendendo o que pode ser estabelecido pelo historiador em sua crítica do passado. Histórico (historic, geschichtlich) corresponde ao sentido das duas palavras entre parênteses, significando o que, embora ocorrendo na história passada, tem uma referência vital e existencial para a nossa vida hoje.
Não foi observada a distinção entre history e story na tradução, pois o têrmo estória geralmente usado para traduzir story não corresponde inteiramente ao sentido deste. Tanto history como story foram traduzidos por história, portanto.
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NOTAS

Gál. 4:4; Fil 2:6 sg.; II Cor. 8:9; I João 1:14, etc.
II Cor. 5:21; Rom. 8:3
Rom. 3:23-26; 4:25; 8:3; II Cor. 5:14,19; João 1:29; I João 2:2; etc.
I Cor. 15:21 sg.; Rom. 5:12 sg.
I Cor. 2:6; Col. 2:15; Apoc. 12:7 sg., etc.
Atos 1:6 sg.; 2:33; Rom. 8:34, etc.
Fil. 2:9-11; I Cor. 15:25
I Cor. 15;23 sg.; 50 sg., etc
Apoc. 21:4, etc.
. I Tes. 4:15 sg.; I Cor. 15:51 ag.; cf. Mc 9:1
. Rom. 5:12 sg.; I Cor. 15:21 sg.; 44b, sg.
. Aparché: Rom. 8;23, arrabón: II Cor. 1:22; 5:5.
. Rom. 8:15; Gál. 4:6
. Rom. 8:11
. Pode, naturalmente argumentar-se que há pessoas vivas hoje cuja confiança na perspectiva científica tradicional do mundo tem sido abalada, e outras que são primitivas bastante para serem enquadradas em uma época de pensamento mítico. E há também muitas variedades de superstição. Mas quando crença em espíritos e milagres se degenera em genuína. As várias especulações e impressões que influenciam o povo crédulo aqui e ali são de pouca importância, sem levar em conta até que ponto ‘slogans’ baratos têm difundido uma atmosfera inimiga à ciência. O que importa é a perspectiva do mundo que os homens embebem de seu ambiente, e é a ciência que determina esta perspectiva do mundo através da escola, da imprensa, do telégrafo sem fio, do cinema e de todos os outros frutos do processo técnico.
. Cp. As observações de Paul Schütz sôbre o declínio da religião mítica no Oriente através da introdução da medicina e da higiene modernas.
. Cp. Gerhardt Krüger, Einsicht und Leidenschaft, Das Wesen des platonischen Denkens, Frankfort, 1 939, p. 11 sg.
. Rom. 5:12 sg.; I Cor. 15;21 sg., 44b.
. Krüger, op. cit. esp. p. 17 sg., 56 sg.
. Mito é usado aqui no sentido popularizado pela escola História das Religiões. Mitologia é o uso de fantasia para expressar o que é do outro mundo em têrmos deste mundo e o divino em termos na vida humana, o outro lado em termos dêste lado. Por exemplo, a transcendência divina é expressa como distância espacial. É um modo de expressão que torna fácil compreender o culto como uma ação na qual meios materiais são usados para conduzir poder imaterial. Muito não é usado naquele sentido moderno, segundo o qual é praticamente equivalente a ideologia.
. Como uma ilustração desta reinterpretação crítica do mito cf. Hans Jonas, Augustin und das paulinische Freiheitsproblem, 1 930. Pp. 66-76
. What is Christianity?, Williams and Norgate, 1 904, pp. 63-4 e 57.
. Cp. e.g., Troeltsch, Die Bedeutung der Geschichtlichkeit Jesu für den Glauben, Tübingen, 1911.
. Gnosis und spätantiker Geist. I. Die mythologische Gnosis, 1 934.
. Têrmos como "o espírito da época" ou "o espírito da tecnologia" nos oferecem alguma sorte de analogia moderna.
. "Auto-comissionamento" traduz muito precariamnete "self-commitment". Infelizmente não temos em mãos o original alemão. Mas este original alemão foi traduzido para o francês por "abandon". Queira o leitor, portanto, levar em mente que "auto-comissionamento" tem o sentido de auto-entrega, de rendição própria, de abandono próprio em favor de alguma causa, além do sentido limitado e mesmo impreciso de "comissionar" em nossa língua – O termo aparecerá freqüentemente no restante do artigo.
. Briefwechsel zwischen Wilhelm Dilthey und dem Grafen Paul Yorck von Wartenburg, 1 877-97, Halle, Niemeyer, 1 923.
. p. 154
. p. 158
. p. 155
. Christentum und Selbstehauptung, Frankfort, 1 940.
. p. 321
. p. 326
. p. 337
. p. 403
. p. 326
. p.337
. Geworfenheit: ver "Existence and Being", Vision Press, 1 949, p. 49 sg. (Trd. Inglês) Throwness (Trad. Português)
. pp. 341,353
. p. 298
. p. 330
. p. 358
. É digno de se notar que Paulo nunca usa o termo áfesis ton hamartion, embora ela apareça na literatura dêutero-paulina; ver e.g., Col. 1:14; Efésios 1:7.

A Evolução do Inferno e Satanás através da História

Introdução: A concepção de mundo na Idade Média

“O demônio transportou-o uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: “Dar-te-ei tudo isso, se, prostando-te diante de mim, me adorares (...) Para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele servirás.” (Deut 6, 13)

“Em seguida, o demônio o deixou, e os anjos aproximaram-se dele para servi-lo.” (Mat. 4-11).

Para o homem medieval todas as coisas eram sagradas: o mundo, a natureza, o corpo humano. Tudo o que dizia respeito ao sobrenatural e ao extraordinário causava fascínio (LE GOFF & SCHMITT, 2002: vol. II, 105). Esse fenômeno psicossocial é típico das sociedades agrárias, pré-industriais, muito dependentes da natureza e, portanto, à mercê de forças desconhecidas e incontroláveis. O principal desejo da população era aproximar-se do Reino Celeste, sendo o reino terrestre considerado uma cópia imperfeita daquele (AGOSTINHO, 1991). O céu era naturalmente associado a Deus e ao macrocosmo, local onde viviam o Criador e os Anjos. Já o microcosmo, identificado com a natureza, era a moradia dos homens e lugar das tentações (COSTA, 2002).

Assim como eles acreditavam na idéia de um paraíso terreal no Oriente, como nos mostra a lenda sobre o reino de Preste João (COSTA, 2001: 53), coexistia a crença em locais habitados por seres monstruosos, como se observa nos bestiários medievais (VAN WOENSEL, 2001). A Peste Negra (1346-1352) intensificou a preocupação medieval com as “quatro últimas coisas”: Morte, Juízo, Paraíso e Inferno (DEFORT, s/d). Ela teve efeito marcante sobre a arte e a literatura, que se tornaram saturadas de imagens de dor e morte. Peças de mistério com temas religiosos tornaram-se comuns e geralmente falavam sobre a decadência humana e os tormentos do Inferno.

A palavra Paraíso significa jardim ou parque. No Gênesis (2, 8) é empregada para indicar o Jardim do Éden, onde viviam Adão e Eva antes do pecado. A perfeita felicidade que gozavam nossos primeiros pais deu ensejo à aplicação do vocábulo para designar o céu, onde os bons gozarão a eterna felicidade após a morte (Lc: 23, 43; 2Cor: 12, 4; Apc: 2,7). No Novo Testamento a noção de Inferno aparece perfeitamente clara. Segundo a doutrina cristã, o termo Inferno é o lugar de castigo sem fim para os anjos maus e para os homens mortos em estado de pecado mortal. No Antigo Testamento, o Inferno era o Sheol, palavra hebraica que significa a residência dos mortos, um lugar inquietante e triste, mas desprovido de castigos, não possuindo assim a forte conotação que passou a ter no Novo Testamento, isto é, um lugar onde os pecadores pagam por seus erros.

Da paisagem do Sheol é preciso reter dois elementos importantes que reaparecerão tanto no Purgatório quanto no Inferno cristão: a montanha e o rio. O Sheol era temido, mas não aparecia como local de torturas. Em todo caso, encontramos nele três tipos de castigos especiais: o leito de vermes, a sede e o fogo. Podemos observar em Isaías que Lúcifer é atirado à terra e coberto por vermes como castigo por querer se contrapor a Deus (LE GOFF, 1983: 16-21). Não há ensinamento mais claro e certo no Novo Testamento que a realidade do Inferno, a severidade de seus tormentos inimagináveis e sua duração perpétua. A intensidade do sofrimento no Inferno dependerá do número e da grandeza dos pecados cometidos e a pena sofrida jamais será diminuída. O mais importante é que os condenados compreenderão que foram criados só para Deus e que por causa de sua perversidade e orgulho O perderam e estarão para sempre separados Dele (Mt: 7, 23; 25, 10.41).

Assim, desamparado diante de uma natureza freqüentemente hostil, o homem medieval encontrava as origens desse abandono - e as possíveis escapatórias - no mundo do Além. Era demoníaco tudo aquilo que lembrava ao homem que ele era um animal, como por exemplo, a excreção, o vômito, a violência, a doença, a morte e o aspecto grotesco do sexo (MACEDO, 2000: 84). As pessoas viviam no mundo com medo: medo da fome, medo da morte e principalmente medo do Inferno. Acreditavam no sobrenatural, no poder das forças das trevas, na ação de Satã e seus demônios no mundo, em bruxos que faziam pactos com o demônio, renunciando ao cristianismo. A bruxaria satânica era assim a imagem refletida, inversa e abrangente do cristianismo, uma fé alternativa. Satã e seus demônios eram a contrapartida de Deus e seus anjos (RICHARDS, 1990: 82).

O Novo Testamento nos mostra que o mal é uma peça fundamental da teologia cristã, sendo que na base de sua doutrina encontramos mais referências ao mal que ao bem. Para os medievos a comunicação entre os mundos humano e divino estava sempre aberta, o sagrado, o divino ou o demoníaco se encontravam por toda parte. No mundo eram presentes anjos e demônios, a quem se procurava atrair ou exorcizar. Qualquer ataque contra a fé católica era considerado oriundo de Satanás, com o objetivo de desfazer o trabalho de Cristo. Assim, qualquer homem ou governo que tolerasse a heresia estaria, portanto, servindo a Lúcifer. Julgando-se parte inseparável da moral e governo político da Europa, a Igreja considerava a heresia com o mesmo espírito que o Estado considerava a traição: um ataque contra os fundamentos da ordem social - segundo a Bíblia, no caminho do Inferno se encontram todos os pecadores impenitentes. São Paulo preveniu: “Não vos enganeis: nem os ímpios, nem os idólatras, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os ébrios possuirão o reino do Céu” (I Cor: 6).

Em linhas gerais, os relatos de viagem ao Além eram abundantes na literatura medieval. Essas viagens não se encontravam somente na imaginação de algumas mentes clericais; sua presença constante nos escritos da época indicam que tratava-se de preocupação sempre presente nas mentalidades de então. Tais viagens eram descritas das mais diversas formas: a pé, de barco ou a cavalo, e quase sempre eram empreendidas com a ajuda de um guia - uma alma, um animal ou um anjo - que orientava o personagem até seu objetivo, o Inferno ou o Paraíso. O sagrado se manifestava constantemente na sociedade medieval, mas devemos considerar que o “sagrado” do ponto de vista dos homens da época englobava o “profano” (diante do templo). Por isso, a sociedade medieva vivia sob o signo da hierofania, isto é, a constante manifestação do sagrado (FRANCO JÚNIOR, 2001: 139). No final da Idade Média, acreditava-se que o inferno era não apenas um lugar quente, abafado e povoado por danações horrendas. Havia também pântanos fumegantes, onde as almas dos pecadores ardiam em soluções de enxofre. Este fato poderá ser comprovado na breve análise que faremos mais adiante das obras de Ramon Llull e Dante Alighieri.

I. O Imperador do Mal: um breve panorama histórico

Orígenes (c. 185-254), um dos maiores teólogos orientais da Igreja, acreditava ser impossível “... saber as origens do mal sem ter entendido a verdade sobre o chamado Diabo e seus anjos, e quem ele era antes de tornar-se e como ele se tornou um diabo” (LINK, 1998: 9). Seguindo seus passos, traçaremos um breve panorama sobre esse ser que desde suas primeiras aparições, ainda que bem raras no Antigo Testamento, assumiu várias formas, adotou vários nomes e gerou longos debates sobre sua verdadeira identidade. A partir do século IX o Diabo encontra-se bem definido e somente no séc. XIV torna-se tal qual o conhecemos hoje: um ser maligno, de asas, chifres e rabos que habita as profundezas do Inferno, torturando os pecadores continuamente. É uma tarefa árdua delimitar suas origens, já que se trata de um ser inapreensível, dado às suas constantes metamorfoses.

No Novo Testamento e nos textos medievais dois termos de origem grega designam o Diabo ou os diabos: Diabolus – verbo grego cujo significado é jogar no meio ou atravessar o caminho e metaforicamente separar, dividir, fazer tropeçar e cair (Evangelhos de Lucas e Mateus) e daemon - na origem, os espíritos, bons ou maus, intermediários entre os deuses e os homens, muitas vezes o espírito de um herói morto. O Diabo pode também ser designado por expressões que lembram que a categoria dos seres espirituais e angélicos - spiritus malignus,spiritus immundus,ângelus malignus (LE GOFF & SCHMIT, 2002: vol. I, 321). O termo hebreu há-sâtân (o acusador) designa em Jó um anjo da corte celeste encarregado de por a prova os justos; ele exerce o papel de antagonista, querendo testar a fidelidade e a justiça de Jó, assim como feri-lo com desgraças:

“Tendo pois saído o Satanás da presença do Senhor, feriu a Jó duma chaga maligna, desde a planta do pé até o alto da cabeça. Jó sentado num monturo raspava com um pedaço de telha a podridão e sua mulher lhe disse: Ainda tu perseveras na tua simplicidade? Louva a Deus e morre. Jó lhe respondeu: falaste como uma das mulheres tolas. Se nós temos recebido os bens da mão de Deus, por que não receberemos também os males? Em todas estas coisas não pecou Jó com seus lábios.” (Jó: 2, 7-10)

No entanto, somente no Livro do Jubileu - aprócrifo do século I a. C. - que o termo designa o chefe dos demônios. Por outro lado, não podemos confundir as palavras Lúcifer e Satã. Lúcifer, o anjo da luz, é o Senhor, príncipe dos Infernos, aprisionado nas profundezas da terra, enquanto Satã, palavra de origem hebraica que significa “adversário, oponente”, é o primeiro de seus servidores, seu bode expiatório e encarregado de missões na terra (MUCHEMBLED, 2001: 43). Em Jó, Satã é um membro do conselho de Deus (LINK, 1998: 24). No Novo Testamento, Marcos ao referir-se ao Diabo chama-o de Satanás, palavra de origem aramaica, que significa “aquele que é contra, obstrui ou age como adversário”, aumentando ainda mais a confusão semântica desenvolvida em torno do deus do mal. Esta é a primeira passagem em que Satanás equivale ao Demônio:
“E os escribas, que haviam baixado de Jerusalém, diziam: ele está possesso de Belzebu, e em virtude dos príncipes dos demônios, é que expele demônio. E havendo-os convocado, lhes dizia (Jesus Cristo) em parábolas: Como pode Satanás lançar fora a Satanás? E se um reino está dividido contra si mesmo não pode durar aquele reino.” (MAR: 3, 22-24).

Com a tradução da Bíblia para o latim por volta do séc. III, essas confusões semânticas foram desaparecendo e os termos designativos do Diabo foram se definindo pouco a pouco. Nomes específicos passaram a ser usados algumas vezes (Belzebu, Baal, Beliar, Belfegor, Beemor, Asmodeu, Astaroth, Leviatã...), seja para enfatizar a diversidade do mundo infernal, seja, sobretudo no século XV, para designar as potências intermediárias entre Lúcifer e os simples demônios. Na atualidade, todos estes termos se confundem, querendo em geral designar uma só entidade. Segundo o Primeiro Livro de Enoque (TRICCA, 1995-6: 119) - apócrifo do séc. IV a. C. - a queda dos anjos constitui o ato originário de todos os males da terra. Com efeito, são duas as teorias que buscam explicar este fato. A primeira revela que os anjos decaíram do céu, seduzidos e unidos às mulheres, gerando uma raça de bastardos gigantes, os nephilim, que se tornaram espíritos demoníacos:
“Quando outrora aumentou o número dos filhos dos homens, nasceram-lhes filhas bonitas e amoráveis. Os anjos, filhos do céu, ao verem-nas, desejaram-nas e disseram entre si: “vamos tomar mulheres dentre as filhas dos homens e gerar filhos!” (...) Entrementes elas engravidaram e deram a luz à gigantes de três mil côvados de altura. Estes consumiram todas as provisões de alimentos dos demais homens. E quando as pessoas nada mais tinham para dar-lhes voltaram-se contra elas e começaram a devorá-las.” (1 ENOCH: O livro dos anjos, VI e VII)
A partir do século IV essa teoria declinou, sendo substituída pela segunda versão da queda dos anjos que aponta para Lúcifer que, por invejar a Deus e desejar igualar-se a Ele, foi expulso, rebaixado e condenado a viver nas profundezas da terra por toda a eternidade:
“Arrastada foi a tua soberba até aos infernos, caiu por terra o teu cadáver: debaixo de ti se estenderá por cama a polílha, e a tua coberta serão os bichos. Como caíste do céu, ó estrela d’alva, filho da aurora! Como foste atirado à terra, vencedor das nações! E, no entanto, dizias no teu coração: ‘Hei de subir até o céu, acima das estrelas de Deus colocarei o meu trono... Subirei acima das nuvens... E, contudo, foste precipitado ao Sheol, nas profundezas do abismo.” (IS: 14,11-15)
Para os teólogos cristãos os demônios são criados bons e se tornam maus por vontade e não por natureza. Inumeráveis textos relatam os atos maléficos do inimigo, atribuindo a ele a responsabilidade por todas as catástrofes, tempestades e tormentas, além de serem os corruptores dos frutos da terra, a causa das doenças nos homens e no gado, o motivo pelo qual os navios afundam e desabam as casas. Suas armas favoritas são a tentação e a trapaça, sendo as tentações da carne, do dinheiro, do poder e das honras as mais terríveis.

O Diabo/Satã e seus demônios, com sua aparência multiforme e seus diversos nomes, figuram entre os personagens mais importantes da cultura popular e até mesmo da erudita do Ocidente Medieval. Tido como a encarnação do mal, o oponente das forças celestes, o tentador tanto dos homens bons, como dos ímpios e dos pecadores, ele era considerado onipresente, onisciente e onipotente, e seu poder se fazia sentir em todos os aspectos da vida e das representações mentais medievais. Os demônios eram representados por uma gama riquíssima de imagens, freqüentemente mostrados em traços repugnantes, onde se misturavam formas humanas e animais. Os corpos demoníacos eram retratados com uma tremenda desproporção, excessivamente altos ou baixos, magros ou gordos, normalmente escuros e irregulares, mesclando formas de anfíbios, répteis, símios e dragões. Essa deformação intencional figurada na iconografia cristã aproximava os demônios das figuras de faunos, sátiros e outros personagens mitológicos da tradição pagã. (MACEDO, 2000: 80)

A Igreja era considerada, uma proteção contra o demônio. Seus principais instrumentos de combate às trevas eram os sacramentos (especialmente o do batismo, que limpa o homem do pecado original), os exorcismos, os objetos sagrados, os jejuns e as preces. Os clérigos enfatizavam que o diabo nada poderia fazer contra aqueles que tivessem fé. O sinal da cruz era um gesto de poder infalível que salvava os homens de todos os perigos. O diabo era o inspirador dos inimigos da Igreja e da Cristandade, muitas vezes comparado aos judeus. Nesse aspecto, o Evangelho fornece um forte argumento, quando qualifica os judeus, que não reconhecem Cristo, como “filhos do diabo” (Jo: 8, 44), ou “sinagoga de Satã” (Apc: 2, 9). Por sua vez, os muçulmanos e o Islã representavam o dragão, o monstro de sete cabeças, a encarnação do mal. Maomé, afirmavam alguns, morrera em 666, o número da Besta. Para o ocidente medieval, os sarracenos eram “...demoníacos, bárbaros, cruéis, feios e perversos seguidores do imoral Maomé, um anti-cristo.” (Link, 1983: 105).

A figura do Diabo e a acentuação de seus traços negativos e maléficos ganhou força a partir dos séculos XIII-XIV. A partir de então é certo que ultrapassaram a esfera metafórica dos discursos literários e exegéticos. Embora seja quase impossível avaliar com precisão o impacto social do discurso demonológico, parece certo que ele atingiu círculos cada vez maiores, desde as cortes reais e principescas até aos ricos leigos, que descobriram o Inferno em seus Livros de Horas. Isto sem esquecer as pessoas que freqüentavam muitas igrejas ornamentadas com temas apocalípticos, ou camponeses submetidos a uma pregação do mesmo tipo. Satã era a imagem do mau poder, sendo freqüentemente descrito como um vassalo cuja maldade o fazia querer ser igual a seu senhor, ao invés de ser-lhe submisso. Por exemplo, Satã é associado ao Mau Governo nos afrescos de Ambrogio Lorenzeti (c. 1290-c.1348) (COSTA, 2000: 32).

Assim, feito esse breve relato sobre as diversas formas pelas quais o Diabo era apresentado na Idade Média e os significados que ele adquiria no inconsciente cristão, nos deteremos a partir de agora na obra do filósofo Ramon Llull (1232-1316) e como o reformador catalão apreendeu esse ser demoníaco e seu reino maléfico.

II. O Diabo e o Inferno em Ramon Llull (1232-1316)

Ramon Llull recebeu o mesmo nome de seu pai, nascendo em 1232, pouco depois que sua família se estabeleceu em Maiorca. A personalidade de Ramon, como transparece em certos temas e perspectivas adotados em suas obras e em seu código ético de seus escritos moralizantes - nos fazem pensar em uma etapa da juventude e inicio da maturidade dedicada a uma bem sucedida atividade prática, participando ativamente dos negócios familiares. Para tal atividade não era necessária uma grande preparação teórica, algo impossível nas circunstâncias daqueles anos e incomum à ordem social a qual pertencia. Na Vida Coetânea (1312), Llull afirma não possuir um saber suficiente, nem sequer gramática (para ele falar e escrever corretamente), a não ser uma pequena parte. Ele havia aprendido, como a maioria das pessoas de seu tempo que sabiam ler, utilizando o saltério. Mas, sobretudo, havia aprendido a falar corretamente graças a uma cultura não clerical notavelmente incrementada pela tradição dos relatos de cavalaria e pela cultura dos trovadores.

Ramon Llull se converteu por volta de 1265, com aproximadamente trinta anos de idade. A partir de então dedicou-se à conversão dos infiéis, uma evangelização que acreditava ser possível através do amor e do diálogo. Llull pretendia divulgar a palavra de Deus a todos os homens através da criação de escolas onde se estudasse a língua dos infiéis e os estudantes pudessem se preparar para o martírio, um ideal que perseguiu até o fim de sua vida. Duzentas e oitenta obras de Llull chegaram até os dias de hoje. Sua produção literária pode ser dividida em quatro partes: 1) Fase pré-artística (1271-1274), 2) Fase quaternária (1274-1289), 3) Fase ternária (1290-1308) e 4) Fase pós-artística (1308-1315) (COSTA, 2001: 6). As obras aqui analisadas incluem-se na fase quaternária, excluindo sua autobiografia (Vida Coetânia), ditada a um monge cartuxo em 1311.

Llull procurava as causa primeiras das coisas. Acreditava ser possível conhecer as pessoas através de suas obras. Para ele era necessário fazer o bem, mesmo que isso causasse sofrimento, pois sofrer eleva o homem, o crente só realizaria sua missão se tivesse uma vida ativa, voltada para a difusão da fé cristã. Entre as obras de Llull analisadas aqui temos:

1) A Doutrina para Crianças (c. 1274-1276), uma pequena enciclopédia pedagógica escrita em catalão, em uma época na qual o latim era a única língua de ensinamento. Trata-se de uma obra sobre o ensino primário do século XIII; Ramon Llull escreveu-a pensando na educação de seu filho, contendo, assim aquilo que o autor considerava mais importante para sua formação religiosa, moral e prática;
2) A Vida Coetânea (1311), sua autobiografia. Segundo Ricardo da Costa, a autobiografia de Ramon “é um claro expoente documental do processo medieval da gênese do individuo” (COSTA, 2000: 57). Esta obra é utilizada para referências básicas sobre a vida de Ramon Llull;
3) Félix ou o Livro das Maravilhas (1288-1289)”, uma das primeiras novelas de cunho filosófico-social escritas na Europa medieval. A obra foi escrita por Llull em Paris, durante sua primeira visita àquela cidade. Llull tinha então cerca de 56 anos e
4) Livro dos Anjos (1274?-1283?), um tratado angélico, onde Llull define os anjos, Deus e os demônios.
Na Doutrina para Crianças examinaremos particularmente os capítulos: IX (Descer ao Inferno) e o XCIX (Do Inferno).

A descida de Jesus Cristo ao Inferno, no período entre Sua morte e Ressurreição, consta na Bíblia (Mt XII, 40; At II, 31; Rm X, 7), mas foi especialmente difundida na Idade Média através do Evangelho de Nicodemo, um apócrifo vulgarizado no período. Segundo este relato, Cristo, quando de Sua descida aos infernos, tirou de lá parte daqueles que se encontravam enclausurados, isto é, os justos não batizados por serem anteriores à Sua vinda a terra. Isto significa dizer que Ele retirou essencialmente os patriarcas e os profetas bíblicos (LE GOFF, 1993: 63). Llull descreve tal passagem na Doutrina para Crianças no capítulo IX, o que indica que provavelmente foi influenciado - assim como Dante - pelo texto de Nicodemos:
“Amável filho saiba e creia que quando a alma de Nosso Senhor Deus Jesus Cristo deixou Seu corpo morto na cruz, incontinenti desceu aos infernos e vendo Adão, Abraão e os outros profetas e santos, arrancou-os à força dos demônios e de sua prisão e colocou-os na Glória Celestial que não terá fim. No momento que Adão viu chegar seu Senhor e Seu Criador para livrá-los dos trabalhos e da dor onde estiveram cinco mil anos, disse: estas são as mãos que me criaram e me formaram e este é o Senhor que Se lembrou de nós em Sua Glória.” (RAMON LLULL,1972: 58)

Adiante, vemos os demônios serem descritos de variadas maneiras, como grandes peixes que colocam os pecadores num mar borbulhante e cheio de fogo ardente, como dragões infernais de grandes e agudos dentes, com bocas cheias de fogo, prontos para engolir os infiéis e pecadores que viessem a cair através de uma cachoeira infernal dentro de sua enorme garganta. Em outra passagem vemos os demônios semelhantes a cães, leões e serpentes “... que roerão as orelhas, os olhos, a cara, os braços e as pernas, e entrarão no ventre e roerão seus ossos e comerão seu coração e suas entranhas.” (RAMON LLULL, 1972: 237-239). Em outra parte do Inferno Llull descreve pessoas que arderão por dentro e por fora como tições no fogo incessante. E durante todo o tempo o homem grita de desespero e pavor. (RAMON LLULL, 1972: 238).

Llull descreve os castigos infernais e relaciona-os a cada um dos pecadores. Em Llull, o castigo que os usurários recebem é o de serem amarrados e jogados dentro de um fosso cheio de ouro e prata fundida: já que durante toda a vida se dedicaram a acumular riquezas, que passem então o resto da eternidade junto a elas. (RAMON LLULL, 1972: 239). Aqueles que cometeram o pecado da luxúria são colocados nus dentro de grandes montanhas de gelo e neve nas profundezas do Inferno (RAMON LLULL, 1274-1276: 239): já que se abrasaram no fogo da paixão durante a vida, que congelem agora por toda a eternidade. Para Llull a luxuria era considerada o pior dos pecados (COSTA, 2001: 19). Provavelmente o filósofo catalão baseou-se nas pregações rigorosas de São Paulo contra os pecados carnais:
“Não sabeis porventura que o que se ajunta com a prostituta, faz-se um mesmo corpo com ela? Porque serão, disse, dois em uma carne. Mas o que está unido ao Senhor, é um mesmo com ele. Fugi da fornicação. Todo o outro pecado, qualquer que o homem cometer, é fora do corpo: mas o que comete fornicação peca contra o seu próprio corpo.” (I Cor: 6, 16-18).

O Inferno de Llull está localizado no interior da Terra. É um lugar trancado, fechado e dividido em quatro partes: 1) o Inferno, onde estão os pecadores que nunca sairão, 2) o Inferno chamado Purgatório, onde os homens cumprem pena pelos erros deste mundo - é interessante notar que Llull considera o purgatório como parte do Inferno e não um terceiro lugar, como faz Dante na Divina Comédia, 3) um Terceiro Inferno chamado Abrae, onde estão os profetas que viveram antes do nascimento de Jesus Cristo e 4) o Quarto Inferno. Ali estão as crianças que não foram batizadas - por sua vez, , na obra de Dante os não batizados também estão no Inferno, que ele chama de Limbo, juntamente com aqueles que nasceram antes de Cristo (RAMON LLULL, 1972: 237).

É importante considerar que até o fim do século XII a palavra purgatorium não existe como substantivo. No essencial o purgatório surgiu como um lugar de purgação dos pecados veniais, ou melhor, dos pecados perdoáveis e também dos sete pecados capitais: acídia, soberba, glutonia, avareza, inveja, ira e luxúria, só que cometidos de maneira mais branda. O Purgatório é o lugar onde os mortos sofrem provação que, se forem superadas, poderão levá-los à vida eterna. Os homens presos no Primeiro Inferno luliano nunca podem morrer: são continuamente torturados por demônios que, armados “de cutelos bem cortantes”, dividem e estraçalham o homem dar-lhe a bênção da morte (RAMON LLULL, 1972: 239). As almas dos homens no Inferno luliano sofrem por entender e lembrar toda a Glória que perderam; sua vontade odeia a memória que os lembra que poderiam estar no Paraíso (RAMON LLULL, 1972: 240). Dante faz a mesma afirmação com relação às almas que estão no Limbo, onde não existiam castigos físicos, apenas o desejo de conquistar a salvação e ter a certeza de que nunca conseguirão obtê-la.

No Félix ou o Livro das Maravilhas (1288-1289), Llull deixa bem claro a enorme pena que Maomé sofre no Inferno, já que foi ele o responsável pela condenação de tantos homens:
“Félix teve uma grande maravilha com aquela grande pena que o corpo sofrerá no Inferno e disse que grande pena será aquela que terá Maomé, que proporcionou a tantos homens estarem no Inferno, pois na pena de cada um será multiplicada a pena de Maomé. Quando Félix se maravilhou longamente com a grande pena de Maomé, se maravilhou muito fortemente dos cristãos terem tão pouco cuidado de converter os infiéis, e teve a opinião de como se preocupavam tão pouco, teriam a mesma pena que os infiéis suportam nos Infernos.” (RAMON LLULL, 1989: vol. II, 387).

Um pouco antes descreve o diabo da seguinte maneira:
“Os diabos, enquanto criaturas, têm qualidades semelhantes às propriedades de Deus, isto é, o diabo tem bondade e grandeza, duração, poder, ciência e vontade, pois essas qualidades Deus criou aí para que o diabo com elas fruísse as propriedades de Deus, isto é, a bondade, a grandeza e as outras. Mas como o diabo obra contrariamente a cada uma dessas qualidades, tem a maior pena que pode existir, assim como a bondade do diabo, que é boa pois foi criada, converte-se em má pela má obra que o diabo faz.” (RAMON LLULL, 1989: vol. II, 381)

Para Ramon Llull os diabos foram originalmente criados bons, como todos os anjos do Senhor, e tornaram-se maus quando desejaram ser semelhantes a Deus:
"Quando Félix ouviu essas palavras, entendeu como era muito grande a glória que os diabos teriam se não a tivesse perdido, e maravilhou-se como puderam perder tão grande glória por nada. O eremita disse que no princípio, no momento que Deus criou todos os anjos, estes que agora são diabos desejaram ser semelhantes a Deus, isto é, cada um quis ser bom por si mesmo e ser grande por si mesmo, e assim de todas as suas qualidades. E cada um quis ter sua finalidade e seu cumprimento por si mesmo e em si mesmo. E como cada um desejou ser semelhante a Deus, foi justo que cada um estivesse em pena e perdesse a glória para a qual foram criados.” (RAMON LLULL, 1989: vol. II, 382)

Assim, os demônios devem sofrer grandes sofrimentos, pois a eles foi dada a glória de olhar a Deus e de conhecer toda a Sua bondade, mas ao invés de renderem louvores ao Criador, eles O invejaram e tramaram contra Ele. Llull deixa bem claro no Livro dos Anjos que os demônios devem sofrer pena pelos seus pecados. (45-6). Sob essa ótica, Llull divide o castigo infernal de duas formas: na primeira pena, os anjos malignos entendem toda a Glória Celeste que perderam e lamentam com toda sua vontade e entendimento o fato de terem sido expulsos do Paraíso (44); já a segunda forma de castigo faz com que todas as sete dignidades angélicas (Bondade, Grandeza, Poder, Sabedoria, Amor, Justiça e Perfeição) estejam em total desacordo, assim como o fogo, a água, o ar e a terra se contrastam por corrupção nos corpos dos homens doentes e dos pecadores mortos (46). É interessante ressaltar que o próprio Llull afirma não encontrar palavras capazes de descrever os tormentos sofridos pelos demônios, tamanha a magnitude deles (45).

As penas infernais que os homens sofrem no inferno são também citadas por Llull no Livro das Maravilhas, no décimo livro “Do Inferno”, onde ele cita novamente os quatro elementos que compõem o corpo humano (ar, água, fogo e terra) que simultaneamente consumiriam o homem; assim os pecadores seriam atormentados pelo calor em toda sua forma e matéria e da mesma maneira sentiriam a umidade do ar, o frio da água e a secura da terra; “...uma pena em diferença, em umidade e em contrariedade, sem nenhuma concordância.” (RAMON LLULL, 1989: vol. II, 386)

III. O Diabo e o Inferno na obra de Dante Alighieri

Dante Alighieri nasceu em Florença (1265-1321) e, ao contrário do que se pensa, ao escrever seu imortal poema intitulou-o Comédia (somente a partir do século XVI passou a ser denominado “A Divina Comédia”). Exilado em Ravena (1307) por motivos políticos e condenado à morte na fogueira caso tentasse regressar a Florença, Dante escreveu seu poema influenciado pela filosofia escolástica, sendo o “Inferno” concebido a partir da “Eneida” de Virgílio (SCHIAVO, 2000: 125). Inspirado em seu amor platônico e juvenil por Beatriz, Dante escreveu “A Comédia”, visando acima de tudo conhecer “... o lugar limitado que ocupa o homem no universo, criado, circunscrito e dominado completamente por Deus...” (MAURO, 1998: 7)
Para o poeta o homem sem Deus é um ser perdido e a salvação só seria alcançada por aqueles que possuíssem as quatro virtudes cardeais (força, justiça, prudência e temperança), juntamente com as três virtudes teologais (fé, esperança e caridade), as únicas capazes de nos conduzir a Deus - Llull dá a mesma importância às virtudes cardeais e teologais como premissa básica para a salvação humana. Assim, o poema ilustra a pretensão humana de viver em conformidade, em harmonia e de acordo com a vontade de Deus. Dessa forma, o poema é um retrato e síntese do pensamento medieval em relação à estrutura do universo.

A fim de reformar moralmente o mundo, Dante construiu uma inesquecível viagem por mundos extraterrenos, pois entendia que o mundo, e principalmente a sociedade da qual fazia parte, encontrava-se numa situação imoral e degradante. Desde o século XI a Itália passava por importantes transformações que mais tarde abalariam todo o mundo tripartido feudal. Dessa forma, a crítica dantesca é uma forma de redenção humana, e baseia-se especialmente nas transformações políticas, sociais, econômicas e religiosas italianas.

Assim, sob a ótica da danação e da perdição que o mundo se encontrava, Dante considera que os homens devem voltar-se para os bens celestiais, os únicos que podiam torná-los felizes em vida e bem-aventurados na eternidade (MAURO, 1998: 13). Relatando o que nos aguardava após a morte, Dante empreende uma viagem por três reinos do outro mundo: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Trata-se da essência do pensamento medieval, que não pensava nada fora do sagrado: o mundo era entendido como uma hierofania. A preocupação apologética, a defesa da fé cristã e o trabalho de conversão dos não-cristãos era a mola mestra do século XIII. Em sua peregrinação imaginária, Dante é guiado por Virgílio, poeta que para Dante simbolizava a razão humana, única força capaz de tornar os homens dono das quatro virtudes cardeais que os conduziriam às portas da felicidade. Nosso poeta inicia sua viagem pelo Inferno na Sexta-feira Santa, finalizando-a na Páscoa: são três dias de viagem pelas profundezas da terra como
“... o esquema métrico e o número de cantos (33) que correspondem a um múltiplo de três, número que simboliza a aceitação total e absoluta dos mistérios da religião cristã: a crença sem silogismos defectivos no Pai, no Filho e no Espírito Santo, sentidos e entendidos como uma só pessoa...” (Mauro, 1998: 12)

O Inferno é concebido como uma imensa cratera escavada nas profundezas da terra com a queda do corpo do Anjo rebelde expulso do Paraíso. Ao chegarem no Inferno, as pessoas são julgadas pelo monstro Minos, que lhes impõe a devida penitência. As penas variavam de pecado para pecado: quanto mais grave a falta cometida (incontinência, violência, fraude e traição, os quatro pecados mais graves que um homem poderia cometer em vida) mais severa seria a pena e maior a profundidade infernal. As almas pecadoras jamais regressariam do Inferno. Mergulhadas em profundas trevas, jamais veriam novamente a luz do Sol e sofreriam, ora os rigores de um frio hibernal, ora os ardores de chamas abrasadoras. Dividido em nove círculos, o Inferno dantesco é cheio de abismos tenebrosos, pântanos, lagos e rios que exalam vapores fétidos; tempestades de chuva, de neve, de granizo e de tições acesos; ventos uivantes e frio petrificador; corpos torturados, rostos contorcendo-se em gritos e gemidos.

Às portas do Inferno nos deparamos com um portal contendo a seguinte inscrição:
“Por mim se chega ao reino do pranto, por mim se chega à dor que não tem fim, por mim se chega ao ondenado povo. A justiça inspirou meu grande Artífice. Formaram-me o Poder Divino, o Supremo saber e o Primeiro Amor. Tudo o que antes de mim foi criado, eterno será, sendo eu também eterno: Perdei, ó vós que entrais, toda Esperança.” (Canto III: 37)

Ao entrar no pátio que o levaria ao primeiro círculo do Inferno, Dante se depara com os ignavos, espíritos que em vida não praticaram o mal, mas também não fizeram nada em prol do Bem. Estes eram picados por nuvens de vespas e moscardos, roídos por vermes e obrigados a correr sem parar atrás de uma insígnia – símbolo da sociedade clássica (Canto III: 37). Após ver essa cena, Dante se dá conta de que se encontra não propriamente no Inferno, mas no Limbo, local de moradia de Virgílio. Ali estão as crianças mortas sem batismo, todos os bons pagãos e todos os bons judeus, exceto uns poucos heróis do Antigo Testamento, os quais Cristo, em uma visita ao Limbo, libertara mandando-os para o Céu (Canto IV: 43). Apesar de ser o primeiro círculo do Inferno, no Limbo não há castigos: o único sofrimento dos que lá se encontram consiste em desejar eternamente um destino melhor e saber que jamais o terão.

Prosseguindo sua viagem, nosso poeta depara-se com Minos à entrada do segundo círculo que ao perceber Dante, faz com que um ser vivente tente obstruir-lhe a passagem. Entretanto, Virgílio intervém, argumentando que esta era a suprema vontade celestial. Contrariado, o monstro acata a vontade divina e permite a passagem dos peregrinos. Com efeito, é importante observar a predominância da vontade Divina mesmo nas profundezas do Inferno, fato que pode ser observado também em várias outras passagens de um círculo para o outro. O segundo círculo é um local onde os luxuriosos são jogados incessantemente de um lado para o outro por terríveis ventos (Canto V: 49), quando então se inicia os tormentos físicos infernais.

No terceiro círculo são punidos os condenados pela gula. Estes estão estendidos na lama. Expostos a uma perpétua chuva, pesada, maldita e fria, são espancados todo o tempo por Cérbero, feroz cão de três cabeças que, com suas aguçadas garras, estraçalhava-os e devora-os incessantemente (Canto VI: 55).

Ao se aproximar do quarto círculo, Dante e seu guia deparam-se com Plutão, demônio que reage ferozmente ante a presença dos dois viajantes. Mais uma vez Virgílio intervém, fazendo valer o apoio divino que os assiste. Neste círculo, são punidos os avarentos e os pródigos. Eles lutam entre si, rolando pesados blocos de pedra que se chocam exaustivamente numa competição infinita (Canto VII: 61).

No quinto círculo, encontram-se numerosos espectros avançando uns contra os outros e ferindo-se violentamente com unhadas e dentadas. Estes se deixaram vencer pela cólera e pelo orgulho, juntamente com os preguiçosos (Canto VII: 61).

Ao se aproximarem do sexto círculo, mais uma vez Dante e seu guia se vêem impedidos de prosseguir. Desta vez, Virgílio não interfere e aguarda a chegada de um mensageiro celeste para ajudá-los a entrar. Ao chegar, o anjo abre as portas com o toque de uma varinha. Assim, Dante e Virgílio entram no sexto círculo, onde as almas dos hereges estão sendo assadas em sepulturas de fogo (Canto IX: 73).

No sétimo círculo, dividido em três giros, são punidos os violentos. O Minotauro governa este espaço infernal - o que deixa evidente a influência mitológica grega nos relatos de Dante. Ali são punidos aqueles que cometeram crimes violentos contra pessoas, contra Deus e contra si próprios. Carregam a pena de viverem perpetuamente sob a ameaça de morrerem afogados em um caudaloso rio de sangue, o Flegetonte, onde centauros atiram-lhes setas todas as vezes que suas cabeças emergem. No primeiro giro do sétimo círculo encontramos os homicidas, os salteadores e os tiranos; no segundo os suicidas e perdulários (esbanjadores, gastadores), e no terceiro e último giro, sob uma chuva de fogo, são punidos aqueles que cometeram violência contra Deus, contra a natureza ou contra a arte - os blasfemos (que se encontram deitados), os usurários (sentados) e os sodomitas (em um contínuo e incessante andar) (Cantos XI; XII, XIII E XIV: 85-108).

Findo este círculo, Dante e Virgílio são escoltados pelo monstro Gerión para as profundezas do oitavo círculo, que o poeta chama Malebolge, onde são penitenciados os que cometeram fraude. Este círculo é constituído por dez valas, e em cada vala é punida uma categoria de fraude (Canto XVIII: 127).

Na primeira vala encontramos os rufiões e os sedutores; na segunda os aduladores, submersos no esterco. Os simoníacos encontram-se na terceira vala, fixados de cabeça para baixo em estreitos buracos, só com a perna para fora e com o fogo ardendo sobre as plantas dos pés (Canto XVII-XIX: 127-138). Na quarta vala deste círculo estão os adivinhos, cujas cabeças estão invertidas, o que os obriga a andar para trás (Canto XX: 139). Na quinta vala estão os traficantes, nadando eternamente em um lago de piche fervente (Canto XXI: 145). A sexta vala pertence aos hipócritas, entre eles Caifás, o sacerdote que instigou os fariseus a crucificar Cristo (Caifás jaz no único caminho daquele abismo, prostrado e crucificado no chão, de maneira que todos que por ali passam são obrigados a pisar em seu corpo). Na sétima vala, os ladrões são atormentados por cobras venenosas (Canto XXIII, XXIV: 157-168). Chamas fazem arder o corpo dos maus conselheiros na oitava vala. Os escandalosos e cismáticos são punidos no nono abismo. Ali os espíritos condenados percorrem constantemente a vala, sendo cruelmente esquartejados a cada volta por um diabo armado com uma espada. Nesta vala encontra-se Maomé, tido pelos cristãos como o maior herege de todos (Cantos XXVI-XXVIII: 175-192). Na décima vala encontram-se os falsários e os alquimistas com o corpo todo coberto por sarnas e impossibilitados de se moverem (hidropisia) (Canto XXIX: 193).

Por fim os poetas atingem o nono círculo do inferno, onde são punidos os traidores, distribuídos em quatro giros: Caína, Antenora, Ptoloméia e Judeca. No primeiro giro encontram-se os traidores de parentes; no segundo os da pátria, todos imersos no gelo de Cocito, só com a cabeça para fora (Canto XXXII: 211). No terceiro giro (Ptoloméia) os traidores de seus hóspedes estão imersos no gelo como os outros, mas com os rostos voltados para cima, o que faz com que suas lágrimas congelem impedindo-lhes a seqüência do pranto. Ali estão as almas danadas enviadas antes mesmo da morte de seus corpos, os quais, ocupados por um demônio que lhes substitui a alma, permanecem como viventes no mundo até sua morte física (Canto XXXIII: 217). No quarto e último giro do nono círculo, anuncia-se o rei do Inferno, Lúcifer. Este surge do gelo, do centro da terra, agitando um gélido vento com suas seis enormes asas. Lá se encontram os pecadores da Judeca. Lúcifer é descrito por Dante como um monstro com imensas asas abertas, não emplumadas como as dos anjos, mas negras como as de um morcego. Ele possui três faces: amarela, preta e vermelha, simbolizando respectivamente a impotência, a ignorância e ódio, atributos opostos aos da Trindade. Cada uma das três bocas mastiga incessantemente um pecador. Judas é o principal, os outros dois são Bruto e Cássio. Os outros traidores da Judeca se encontram completamente afundados no gelo e nenhum é identificado (Canto XXXIV:225).

Findo a viagem pelo inferno, Dante e Virgílio escalam o corpo de Lúcifer até alcançarem a entrada de uma caverna, quando alcançam a superfície no hemisfério austral, saindo do abismo infernal para rever as estrelas e prosseguirem em sua viagem até o Purgatório.

À guisa de conclusão: uma breve análise comparativa das obras de Ramon Llull e Dante Alighieri

A priori podemos ressaltar uma diferença básica entre os dois autores: Llull é um filósofo, um místico; Dante é um político e um poeta. Esta diferença pode ser observada na maneira com a qual os dois escritores pensam os alquimistas: para Dante eles deveriam sofre as penas infernais; para Llull basta provar que a alquimia é um embuste:
“Félix perguntou ao filósofo se a alquimia é a arte pela qual se pode fazer a transmutação de um metal em outro. O filósofo respondeu que convém à transmutação de um elemento em outro a transmutação substancial e acidental, isto é, a forma e a matéria devem se transmudar com todos seus acidentes em uma substância nova composta de novas formas, matérias e acidentes. E tal obra, belo amigo, disse o filósofo a Félix, não pode ser feita artificialmente, porque a natureza possui o ofício de todos os seus poderes.” (RAMON LLULL, 1989: vol. II, 120)

Entretanto, naturalmente ambos têm em comum o desejo de reformar o mundo. Assim, ressaltaremos as diferenças e semelhanças em relação ao Diabo e ao Inferno contidas nas obras de Llull e Dante.

Diferenças:

1) Llull entende o Purgatório como Inferno, já Dante o concebe como um terceiro lugar. Isso demonstra uma maior interação de Dante com a produção literária da época, visto que a noção de Purgatório, surgida no século XII, já se encontrava bem consolidada no século XIII. Ao que tudo indica, Llull parece se ater mais às verdades católicas contidas na Bíblia (que não reconhece o Purgatório como um terceiro lugar): para os cristãos um Inferno temporário como o Purgatório seria uma obra contrária à perfeição da vontade divina, pois repugnaria a justiça e as mais solenes promessas e advertências de Deus, que ofereceu aos homens todos os meios para se salvar;

2) Para Llull, os piores pecados que um homem poderia cometer seriam, respectivamente, a luxúria, a deslealdade, a injúria e a falsidade. Por sua vez, Dante destaca a traição, a incontinência, a fraude e a violência.

Semelhanças:

1) O latim ainda era a língua predominante nos textos escritos no século XIII, língua oficial para a produção literária da época. Todavia, tanto Llull quanto Dante se preocuparam em escrever em sua língua pátria - Llull em catalão, Dante em italiano, sendo, portanto, responsáveis pela fixação e padronização de suas línguas;
2) Ambos concordam ao afirmar que, por mais que o corpo sofra castigos corporais e mortes terríveis, há um eterno renascer para o recomeço de todas as torturas. Os quatro elementos (água, fogo, terra e ar) castigam simultaneamente os homens;
3) As crianças não batizadas são colocadas no Inferno, pois não foram libertadas do pecado original;
4) Ambos descrevem o sofrimento que as almas têm em saber que estão no Inferno e que de lá não poderão sair, por saberem que foram criadas para o Céu e para a Glória de Deus, mas por soberba, luxúria e os outros pecados que os afastaram de Deus, estão condenadas a penar eternamente.
5) Ambos deixam clara a repugnância que tinham pela figura de Maomé que, por seus atos, não foi sozinho para o Inferno, mas levou consigo um grande número de pessoas.
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