segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O Manifesto do Ceticismo


Que valor tem tudo isto?
Algum estudioso do cristianismo poderia nos explicar qual é o valor do Gênesis?
Sabemos que não é verdadeiro – que se contradiz. Há duas versões da criação, uma no primeiro e outra no segundo capítulo.
Na primeira, os pássaros e bestas foram criados antes do homem.
Na segunda, o homem é criado antes dos pássaros e bestas.
Na primeira, as aves são feitas a partir da água.
Na segunda, as aves são feitas a partir da terra.
Na primeira, Adão e Eva são criados juntos.
Na segunda, primeiramente Adão foi feito; depois as bestas e os pássaros, e então Eva foi criada a partir de uma das costelas de Adão.
Essas histórias são muito mais antigas que o Pentateuco.
Versão persa: Deus criou o mundo em seis dias, um homem chamado Adama, uma mulher chamava Eva, e então descansou.
As histórias dos etruscos, babilônios, fenícios, caldeus e egípcios são muito parecidas.
Os persas, gregos, egípcios, chineses e hindus têm seu Jardim do Éden e sua Árvore da Vida.
Assim, os persas, os babilônios, os núbios, o povo do sul da Índia, todos tinham sua história da sucumbência do homem e da serpente astuciosa.
Os chineses dizem que o pecado veio ao mundo através da desobediência da mulher. E mesmo os taitianos acreditam que o homem foi criado da terra, e a primeira mulher de um de seus ossos.
Todas essas histórias são igualmente autênticas e de idêntico valor ao mundo, e todos os seus autores estavam igualmente inspirados.
Sabemos também que a história do dilúvio é muito mais antiga que o livro do Gênesis; além disso, sabemos que não é verdadeira.
Sabemos que a história do Gênesis é copiada da versão caldéia. Nela você também encontra tudo sobre a chuva, a arca, os animais, a pomba que foi enviada três vezes e a montanha na qual a arca repousa.
Ou seja, hindus, chineses, persas, gregos, mexicanos e escandinavos têm essencialmente a mesma história.
Também sabemos que o relato sobre a Torre de Babel é uma fábula ignorante e infantil.
Então o que resta neste inspirado livro do Gênesis? Contém alguma palavra que visa o desenvolvimento do coração ou da mente? Contém algum pensamento elevado – qualquer grande princípio, alguma poesia –, qualquer palavra que conduza à prosperidade?
Contém algo além de uma enfadonha e detalhada descrição de coisas que nunca aconteceram?

Há algo no Êxodo que pretende tornar os homens generosos, bondosos e nobres?

O que há de bom em ensinar a crianças que Deus torturou o gado inocente dos egípcios – ferindo-os mortalmente a pedradas – por culpa dos pecados do faraó?
Será que nos tornaríamos compassivos se acreditássemos que Deus matou os primogênitos dos egípcios – primogênitos de um povo pobre e sofrido, da pobre moça trabalhando nos moinhos – por causa da maldade do rei?
Podemos acreditar que os deuses egípcios fizeram milagres? Transformaram água em sangue e bastões em serpentes?
No Êxodo não há sequer uma idéia original ou uma linha que tenha valor.
Sabemos – se é que sabemos alguma coisa – que este livro foi escrito por selvagens – selvagens que acreditavam na escravidão, na poligamia e nas guerras de extermínio. Sabemos que a história contada é impossível e que os milagres relatados nunca ocorreram. Este livro admite que há outros deuses além de Jeová. No 18º capítulo há este verso: “Agora sei que o Senhor é maior que todos os deuses; até naquilo em que se houveram arrogantemente contra o povo”.
Neste livro sagrado ensina-se o dever do sacrifício humano – do sacrifício de bebês.
No 22º capítulo há este comando: “Não tardarás em trazer ofertas da tua ceifa e dos teus lagares. O primogênito de teus filhos me darás”.
O Êxodo foi um trampolim ou uma travanca à espécie humana?
Subtraindo-se do Êxodo as leis comuns às outras nações, o que resta nele de valor?

Há algo de importância em Levítico?

Há algum capítulo que mereça ser lido? Que interesse temos nas roupas dos padres, nas cortinas e velas dos tabernáculos, nas pinças e pás do altar ou no óleo utilizado pelos levitas?
Para que serve o código cruel, as punições amedrontadoras, as maldições, as falsidades e os milagres deste livro ignorante e infame?
E o que há no livro de Números?

Com seus sacrifícios e água de ciúmes, seus pães e colheres, suas crianças e flor de farinha, seus óleos e castiçais, seus pepinos, cebolas e manás – que ajuda e instrui a humanidade?
Que interesse temos na rebelião de Corá, na água da amargura, nas cinzas da novilha vermelha, na serpente de bronze, na água que seguiu o povo para cima e para baixo por quarenta anos e na jumenta inspirada do profeta Balaão?
Acaso essas absurdidades e crueldades – essas superstições pueris e selvagens – ajudaram a civilizar o mundo?
Há qualquer coisa em Josué?

Em suas guerras, em seus assassinatos e massacres, em suas espadas gotejando sangue de mães e bebês, em suas torturas e mutilações, em sua fraude e fúria, em seu ódio e vingança – cuja finalidade é melhorar o mundo?
Cada capítulo deste livro não é um verdadeiro choque ao coração de um homem bondoso? Será um livro que crianças deveriam ler?
O livro de Josué é impiedoso como a fome, feroz como o coração de uma besta selvagem. É uma história, uma justificativa, uma santificação de praticamente qualquer tipo de atrocidade.

O livro de Juízes?

trata do mesmo assunto, nada além de guerra e matança; a horrível história de Jael e Sísera; de Gideão e suas trombetas e cântaros; de Jefté e sua filha, que ele matou para agradar Jeová.
Nele encontramos a história de Sansão, na qual um deus-sol é transformado em um hebreu gigante.

Leiam este livro de Josué, leiam sobre morticínio de mulheres, esposas, mães e bebês, leiam seus milagres impossíveis, leiam seus crimes cruéis – e tudo feito de acordo com os Dez Mandamentos de Jeová –, e então me digam se este livro foi feito para nos tornar compreensivos, generosos e bondosos.

Admito que a historia de Rute, em alguns aspectos, é bela e tocante; que é contada com naturalidade, e que seu amor por Noêmi era profundo e puro. Mas em matéria de namoro, dificilmente aconselharíamos nossas filhas a seguir o exemplo de Rute. Devemos lembrar que Rute era uma viúva.

Há algo que valha a pena ser lido no primeiro e segundo livros de Samuel?

Deveria um profeta de Deus despedaçar um rei cativo? A história da arca, de sua captura e recuperação, tem qualquer importância para nós? É uma atitude correta, justa e clemente matar cinqüenta mil homens porque olharam uma caixa? Qual a utilidade das guerras de Saul e Davi e das histórias de Golias e da feiticeira de Endora? Por que Jeová deveria ter matado Uzá por ter estendido a mão para firmar a arca e perdoado Davi por assassinar Urias e roubar sua esposa?
De acordo com “Samuel”, Davi fez um censo do povo. Isso suscitou a ira de Jeová, que como punição permitiu a Davi escolher sete anos de fome, três meses fugindo da perseguição de seus inimigos ou três dias de pestilência. Davi, tendo confiança em Deus, escolheu os três dias de pestilência; e então Deus – o misericordioso – matou setenta mil homens pelo pecado de Davi.
Ante as mesmas circunstâncias, o que um diabo teria feito?

Há algo no primeiro e segundo livros de Reis que sugere a idéia de inspiração?

Quando Davi está morrendo, diz ao seu filho Salomão para matar Joabe – que não deixasse suas cãs descerem à sepultura em paz. Com seu último suspiro, ordena que seu filho faça com que as cãs de Simei desçam à sepultura com sangue. Após proferir essas amáveis palavras, o bom Davi, o homem do coração de Deus, dormiu com seus pais.
Seria necessária inspiração para que um homem escrevesse a história da construção do templo, a história da visita da rainha de Sabá ou relatasse o número de esposas de Salomão?
Que nos importa mão seca Jeroboão, a profecia de Jeú ou a história de Elias e os corvos?
Como podemos acreditar que Elias trouxe chamas do céu ou que foi até o último Paraíso em um carro de fogo?
Podemos acreditar na multiplicação do azeite por Eliseu, que um exército foi ferido com cegueira ou que um machado flutuou na água?
Será que ler sobre a decapitação dos setenta filhos de Acabe, sobre o vazamento dos olhos de Zedequias e o assassinato de seus filhos nos torna mais civilizados? Há uma palavra sequer no primeiro e segundo livros de Reis que se destina a melhorar o homem?

O primeiro e segundo livros de Crônicas não passam de uma repetição do que é dito no primeiro e segundo livros de Reis. As mesmas velhas histórias – com algumas reduções, algumas adições, mas que não as tornam nem melhores nem piores.

O livro de Esdras é irrelevante. Conta-nos que Ciro, o rei da Pérsia, emitiu uma proclamação para a construção do templo de Jerusalém, e que declarou ser Jeová o único e verdadeiro Deus.
Nada poderia ser mais absurdo. Esdras nos fala sobre o retorno do cativeiro, a construção do Templo, a dedicatória, umas poucas orações, e isso é tudo. Esse livro não tem qualquer importância, é inútil.

Neemias trata do mesmo assunto, apenas fala sobre a construção do muro, as reclamações do povo quanto aos impostos, a lista daqueles que retornaram da Babilônia, um catálogo daqueles que habitavam Jerusalém e a dedicatória dos muros.
Nenhuma palavra do livro de Neemias merece ser lida.

Então vem o livro de Ester: nele é dito que o rei Assuero estava embriagado; que ordenou à sua rainha, Vasti, que se mostrasse a ele a aos convidados. Mas ela recusou-se.
Isso enfureceu o rei, e este ordenou que de cada província fossem trazidas as moças mais bonitas, para que ele pudesse escolher uma para ocupar o lugar de Vasti.
Entre outras, foi trazida Ester, uma judia. Ela foi escolhida, tornando-se a esposa do rei.
Um cavalheiro chamado Hamã desejava que todos os judeus fossem destruídos, e o rei, não tendo conhecimento de que Éster era uma judia, assinou um decreto para que os judeus fossem mortos.
Através dos esforços de Mordecai e Ester o decreto foi anulado e os judeus salvaram-se.
Hamã preparou uma forca para a execução de Mordecai, mas a boa Ester conseguiu fazer com que Hamã e seus dez filhos fossem enforcados na forca que ele havia construído, e os judeus foram autorizados a matar mais de setenta e cinco mil súditos do rei.
Essa é a história inspirada de Ester.

No livro de Jó encontramos alguns sentimentos elevados, alguns pensamentos sublimes e alguns tolos, algo sobre a maravilha e a perfeição da natureza, as alegrias e tristezas da vida; mas a história é infame.

Alguns Salmos são bons, muitos são indiferentes e poucos são infames. Neles estão misturados vícios e virtudes. Há versos que elevam e versos que degradam. Há orações de perdão e orações de vingança. Em toda a literatura mundial não existe nada mais inumano e infame que o 109º salmo.

Nos provérbios há muita sagacidade, muitas máximas expressivas e prudentes, muitos dizeres sábios. As mesmas idéias são exprimidas de várias maneiras – a sabedoria da economia e do silêncio, os perigos da vaidade e da ociosidade. Alguns são triviais, alguns são tolos e muitos são sábios. Esses provérbios não são generosos – não são altruísticos. Dizeres de mesma natureza podem ser encontrados em todas nações.

Eclesiastes é o livro mais profundo da Bíblia. Foi escrito por um descrente – um filósofo –, um agnóstico. Retire-se dele as interpolações, e estará de acordo com o pensamento do século XIX. Nesse livro estão as passagens mais filosóficas e poéticas da Bíblia.

Após atravessar o deserto de mortes e crimes – após ler o Pentateuco, Josué, Juízes, Samuel, Reis e Crônicas –, é um encanto encontrar esse jardim de poesia chamado “Cântico dos Cânticos”. Um drama de amor – de amor humano –, um poema sem Jeová, um poema nascido do coração e verdadeiro para os instintos divinos da alma.
“Eu dormia, mas o meu coração velava.”

Isaías é o trabalho de vários. Suas palavras pomposas, sua imagética vaga, suas profecias e maldições, seus devaneios contra reis e nações, seu escárnio da sabedoria humana e seu ódio à alegria não possuem a menor tendência de promover o bem-estar do homem.
Neste livro encontra-se o mais absurdo de todos os milagres. A sombra no relógio volta dez graus como sinal de que Jeová havia adicionado quinze anos à vida de Ezequias.
Com este milagre o mundo – que gira de oeste para leste a mais de mil milhas por hora – não apenas para, mas de fato retrocede até que a sombra do relógio tenha voltado dez graus!
Há em todo o mundo algum indivíduo inteligente que acredite nesta mentira grosseira?
Jeremias não contém nada de importância – nenhum fato de valor.

Nada além de procura por erros, lamentações, resmungos, gemidos, maldições e promessas; nada além de fome e oração, da prosperidade do mal, da ruína dos judeus, do cativeiro e o retorno, e finalmente Jeremias, o traidor, no tronco e na prisão.

O livro de Lamentações é simplesmente a continuação dos delírios do mesmo pessimista insano; nada além de pó, trapos, cinzas, lágrimas, uivos, xingamentos e insultos.

E Ezequiel – comendo manuscritos, profetizando cerco e desolação, com visões de brasas de fogo, de querubins, da figura da caldeira fervente e da ressurreição de ossos secos – também não possui qualquer valor, nenhum valor imaginável.
Assim como Voltaire, digo que se há alguém que admira Ezequiel, então deveria ser compelido a jantar com ele.

Daniel é um sonho conturbado – um pesadelo.

Que utilidade tem este livro, com sua imagem com cabeça de ouro, com peito e braços de prata, com ventre e coxas de bronze, com pernas de ferro e com pés em parte de ferro e em parte de barro; com suas escrituras na parede, sua cova dos leões e sua visão do carneiro e do bode?

Há algo e ser aprendido de Oséias e sua esposa?
Há algo proveitoso em Joel, em Amós, em Obadias?
Há algo a ser extraído da história de Jonas e o peixe que o engoliu?

Será possível que Deus é realmente o autor de Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Malaquias e Zaracias, com seus cavalos vermelhos, seus quatro chifres, seus quatro ferreiros, seu rolo voador, seus montes de bronze e sua pedra com sete olhos?

Estes livros “inspirados” trouxeram qualquer benefício ao homem?

Nos ensinaram como cultivar a terra, construir casas, tecer roupas ou preparar alimento?

Nos ensinaram a pintar quadros, talhar estátuas, construir pontes, navios ou qualquer coisa bela ou útil? Foi do Velho Testamento que derivamos nossas noções de governo, de liberdade de culto, de liberdade de pensamento?

Colhemos destes livros qualquer idéia que contribuiu à ciência? Há nestas “sagradas escrituras” uma palavra, uma linha que tenha contribuído à riqueza, à inteligência ou à felicidade da humanidade?

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Problema das Evidências Extra-Bíblica Sobre Jesus

Eu acredito que uma das principais funções dos biblioblogs é prestar, por assim dizer, um serviço público. Ser fonte de informação confíável em relação aos temas de historia bíblica e estudo das religiões, de forma a permitir o acesso do público leigo. A Internet torna possível compartilhar e transmitir informação com muita facilidade, boa ou má. Permite, com frequência que se desimforme e se deseduque, que se ressuscite teses estapafúrdias, há muito refutadas.

É problemático porque as pessoas lêem, e de boa fé acham que estão aprendendo, passam adiante, e estão recebendo informação, na melhor da hipóteses desatualizada, e na maioria das vezes errada.

Por exemplo, o filme feito para internet, Zeitgeist, muito popular no youtube, faz as seguintes afirmações.

"Além disso, há alguma evidência extra-bíblica de um certo Jesus, o Filho de Maria, que viajou com 12 seguidores, curando pessoas e tudo mais? Existiram numerosos historiadores que viviam no Meidterrâneo e arredores, tanto durante, quanto logo após a presumida vida de Jesus. Quantos desses historiadores se referiram a esta figura? Nenhum. Entretanto para ser justo, não quer dizer que os defensores do Jesus Histórico não tenham dito o contrário. Quatro historiadores são tipicamente citados para demonstrar a existência de Jesus. Plínio o Jovem, Suetonio, Tacito são os três primeiros. Cada um dessas referências consiste de um poucas frases e na melhor hipóteses referem apenas a Christus ou Cristo, o que de fato não é um nome, mas um título. Significa "ungido". A quarta fonte é Josephus, e esta já foi provado ser uma fraude a centenas de anos. Tristemente, é ainda citado como verdade".[1]

Esse argumento é apresentado as vezes de outra forma, apresenta-se uma lista de autores, (em uma das versões chega a 31), que viviam no Império Romano nos 100 ou 150 anos seguintes a morte de Jesus, e pergunta-se "se Jesus existiu, se realizou tão grandes feitos, como pode não ter sido notado por esses escritores? Como pode ter sido mencionado apenas por 4 ou 5 autores, em textos que não maiores que um parágrafo?"

Uma dessas listas, encontrada em inúmeros sites, foi elaborada no final do séc. XIX pelo escritor Jonh Remsburg, afirmando que só uns quatro ou cinco mencionaram Jesus (deve ser observado que o próprio Remsburg, acreditava na existência histórica de Jesus de Nazaré).

Lista de Remsburg: Josefo, Filo, Seneca, Seneca, Plínio Velho, Suetônio, Juvenal, Martial, Persius, Plutarco, Justo de Tiberias, Apolônio, Plínio o Moço, Tacito, Quintiliano, Lucano, Epicteto, Silius Italicus, Statius, Ptolemy, Hermogones, Valerius Maximus, Arrio, Petronio, Dion Pruseus, Veleio Paterculo, Apio, Teon de Esmirna, Flegon, Pompon Mela, Quintius Curtius, Luciano, Pausanias, Valerius Flaccus, Florus Lucius, Favorinus, Faedro, Damis, Aulus Gellius, Columella, Dio Crisostomo, Lisias, Apio de Alexandria.

Antes de tudo, vamos pensar: dos autores citados por Remsburg, alguns escreveram fábulas (como Faedro), outros eram poetas (como Marcial e Statius), outros escreveram sobre mitologia, e filosofia. Quantos deles mencionaram os assuntos da Judéia do sec. I? A maioria escrevia para um público da elite grega e romana, senadores, magistrados, nobres de cidades como Roma, Atenas ou Alexandria. Lugares como Galiléia eram tão remotos como o sertão da Paraíba ou do Ceará para um alemão ou canadense. E como se eu fosse a Nova York, entrasse em um livraria, pegasse aleatoriamente livros de 40 autores diferentes (de filosofia, politica, geografia, ciências e historia) e se 4 ou 5 mencionassem Padre Cícero, Antônio Conselheiro, Tiradentes ou o Negro Cosme, eu concluisse que eles não existiram, ou foram irrelevantes.

Sessenta milhões de pessoas viviam no Império Romano no sec. I DC, e como a esmagadora maioria delas não foi citada por nenhum historiador, ou não aparece em artefatos arqueológicos, eu posso concluir então que elas não existiram?

A propósito, quem foram os comandantes de todas as legiões do Império no sec. I?

Quem foram os 600 membros do Senado Romano ou os 71 do Sinédrio Judaico, em digamos, 50 DC?

São perguntas que nós, com os registros disponíveis e fontes que chegaram até nós, não temos como responder, embora saibamos que foram pessoas influentes e poderosas.

Para se ter uma idéia, o historiador Jona Lendering observa"As mais de quarenta províncias do Império Romano eram administradas por um governador, cujo mandato durava de 12 a 36 meses. Estes homens poderosos são virtualmente desconhecidos para os historiadores modernos, que se consideram afortunados quando acontece de conhecer a identidade do oficial responsável por uma provincia em um determinado momento".[2]

Ou seja, apesar desses homens terem governado provincias com dezenas, centenas de milhares de habitantes e comandado exercítos de milhares de soldados, por anos a fio, terem construido monumentos, registrado seus feitos em inscrições, cunhado moedas, muitas vezes não sabemos o seu nome, e, em outros casos, mesmo que saibamos são apenas nomes em uma lista. Casos como Plínio, o Jovem, por sua coleção de cartas com o Imperador Trajano e uma longa inscrição que descreve sua carreira, ou de Pôncio Pilatos, que é mencionado nos evangelhos, Filo, Josefo e Tácito (ironicamente a única menção de Pilatos por uma fonte romana, mesmo assim como aquele que executou Jesus de Nazaré), além de aparecer em um inscrição fragmentária e algumas moedas, são excessões que confirmam a regra. Isso ocorre porque apenas um pequena parte dos textos escritos no período e dos potenciais artefatos arqueólogicos sobreviveram até nosso tempo.

Em 24 de agosto do ano de 79 DC, o Monte Vesúvio, nas proximidades de Nápoles, entrou em erupção. A região, como hoje, era densamente povoada, e a cidade de Pompéia (onde viviam cerca de 20 mil pessoas) e a vizinha Herculano foram completamente destruidas. O célebre escritor e magistrado romano Plínio, o Velho, morreu naquela tragédia, tentando resgatar sobreviventes. Uma tragédia. Milhares morreram, e os sobreviventes ficaram sem teto. Mas quantos relatos de testemunhas oculares, de fontes primárias ou secundárias, nós temos disponíveis. UM. ISSO MESMO UM. Plínio, o Jovem, sobrinho do outro Plínio que morreu na erupção, que descreveu a tragédia a pedido de seu amigo Tácito (a parte em que o relato foi provavelmente inserido esta perdida) [3] . Temos algumas outras referências, escritas algumas décadas depois do fato, pelo poeta Statius (95 DC), o historiador Flávio Josefo ( 93-95 DC), e Suetônio (125 DC) [4], geralmente curtas e não maiores que alguns parágrafos, ainda que dezenas de escritores tenham vivido no período. Isso porque foi um evento que, se fosse hoje, faria o "breaking news" da CNN e meses depois viraria filme para televisão "baseado em uma história real". Felizmente, erupções vulcânicas deixam para trâs uma quantidade enorme de artefatos arqueológicos, que permitem não só entender o evento, mas reconstruir a vida de uma cidade romana do sec I DC.

Outro exemplo de como esse modus operandi em relação a Jesus no âmbito da história antiga pode levar a conclusões absurdas é a do próprio Imperador Trajano. Trajano governou o Império entre 98-117 DC, e em seus vinte anos de reinado foram talvez os mais gloriosos da História de Roma, de tal forma que, mesmo no final do IV século, os novos imperadores recebiam os votos "felicior Augusto, melior Traiano", ("que seja mais bem afortunado que Augusto e melhor que Trajano"). Herbert W. Benario, Professor Emérito de História Clássica da Emory University, observa que:
"Trajano foi das figuras mais admiráveis da Roma Antiga. Um homem que mereceu o reconhecimento e renome que gozou em sua vida e das gerações seguintes [5].

No entanto, surpreendentemente,
"as fontes para o homem e seu principado são desapontadoramente escassas. Não há um historiador contemporâneo que possa iluminar o período. Tácito o menciona apenas ocasionalmente, Suetônio não escreveu sua biografia, e nem mesmo o autor da muito posterior e largamente fraudulenta História Augusta. (...) Plínio, o Jovem, é nossa principal fonte literária, em seu Pannegyricus - seu longo discurso de agradecimento ao Imperador, após assumir o Consulado no final do ano 100 DC - e suas cartas (...) Cassio Dio, que escreveu na decada de 230 DC, elaborou uma longa história imperial a qual, para o periodo Trajanico, sobreviveu somente em forma abreviada no livro LXVIII. O retoricista Dio de Prusa, um contemporâneo do Imperador, oferece muito pouco de valor. As epitomes de Aurélio Vitor e Eutrópio, do IV século, oferecem algumas informações úteis. Inscrições, moedas, papiros, e textos legais são os mais importantes. Uma vez que Trajano construiu muitos projetos de significância, a arqueologia contribui poderasomente para nossa compreensão do homem [5].

Ou seja, ainda que "numerosos historiadores vivessem no, e em volta do Mediterrâneo" no tempo do Imperador Trajano, nossas fontes literárias sobre seus 20 anos de reinado são extremamente escassas, e não temos disponível nenhuma biografia escrita por um autor contemporâneo, embora tenhamos dezenas de escritores no período. No entanto, sabemos da existência e importância de Trajano pelas menções breves de Suetônio e Tácito, a correspondência de Plínio, a biografia escrita por Cassio Dio mais de 100 anos depois de sua morte, e principalmente, moedas, inscrições, monumentos e obras públicas. Se essas são as fontes para o Imperador, que regia os destinos de 60 milhões de pessoas, o que devemos esperar do carpinteiro galileu, que segundo os próprios discipulos "foi crucificado pelos poderes da época, que não o compreenderam" e cujo movimento cerca de 100 anos após sua morte, contava, no maximo, com cerca de 10 a 15 mil seguidores (que não cunhavam moedas, nem elaboravam documentos oficiais, nem construiam estradas, pontes, ou monumentos) ?.

(Também aqui vale observar que apenas uma "pequena parte do que foi escrito na Antiguidade chegou até nós, e que muito do que foi escrito sobre Trajano (ou da destruição de Poméia), por seus contêmporâneos foi perdido. Da mesma forma, o mesmo ponto se aplica a Jesus).

Mas, já que comecei a escrever, podemos aproveitar para avançar para coisas mais úteis. Além de analisar os relatos (ou falta deles) para pessoas e eventos contemporâeos a Jesus (um século antes e depois de sua morte), vamos comparar o impacto e atestação deixado por esses eventos e pessoas nas fontes literárias, com aquele deixado por Jesus de Nazaré. Uma espécie de "Escala Richter de Impacto Histórico". Veremos que o mais surpreendente não foi Jesus ter sido mencionado por apenas quatro ou cinco escritores mas o fato dele ter sido citado, e por tantos autores não cristãos. Mas, antes, abordaremos algumas questões preliminares, como o (quase) consenso da comunidade acadêmica favorável a historicidade de Jesus, sobre as menções a Jesus nos autores não-cristãos (mostrando, por exemplo, que a posição dominante entre os estudiosos é que Josefo se referiu a Jesus), e o porque da maioria dos escritos da Antiguidade não terem chegado até nós.

1ª Preliminar: Como os estudiosos analisam a historicidade de Jesus

Jesus de Nazaré é objeto de devoção e fé de centenas milhões de seguidores no mundo inteiro.

a) Os historiadores e Jesus

Não obstante, muitos fazem de sua vida o seu ganha-pão. Milhares de historiadores, arqueólogos, estudiosos bíblicos e especialistas em judaísmo antigo, buscam nos textos bíblicos e extra-bíblicos, nos escritos dos primeiros cristãos, na análise do contexto social, político e econômico da Judéia e do Império Romano no século I, e se propõem a chamada "busca" pelo Jesus Histórico.

Alguns desses estudiosos são cristãos, liberais ou conservadores, outros são judeus, outros ateus, outros místicos, "espirituais mas não religiosos". Suas interpretações como a visão mais próvavel do curso do Ministério de Jesus e início do cristianismo variam bastante. Mas, existem algum as certezas compartilhadas por todos, ou quase todos, entre elas é que a muito poucos motivos para duvidar da existência histórica de Jesus:

Professor judeu Geza Vermes, Professor de Judaismo Antigo na Universidade de Oxford, com cerca de 60 anos de dedicação a pesquisa do judaismo do 2° Templo, Jesus Histórico e Cristianismo primitivo afirma:
"Na verdade, com excessão de um punhado de céticos inveterados, a maioria dos estudiosos de hoje parte para o extremo oposto e considera existência de Jesus tão garantida que não se dá ao trabalho de questionar o significado de historicidade" [6].

Também o Professor da Universidade Hebraica David Flusser (1917-2000), que foi membro da Acadêmia de Ciências de Israel por sua contribuição no campo da História Clássica e Judaísmo Antigo, em cinquenta anos de trabalho, escreve:
"Realmente, possuimos registros mais completos sobre a vida dos imperadores seus contemporâneos e de alguns poetas romanos. Entretanto a excessão do historiador judeu Flávio Josefo, e possivelmente de São Paulo, Jesus é o judeu, de épocas posteriores ao Antigo Testamento, sobre quem nós mais sabemos" [7]

John Dominic Crossan, Professor da DePaul University, e uma das principais figuras a frente do Jesus Seminar, fez as seguintes observações, em um Seminário On-line na lista acadêmica de discussão "Crosstalk", quando perguntado em relação a tese da não existência de Jesus, faz a comparação (muito exagerada, ao nosso ver) entre essa tese com aqueles que negam que os americanos pousam na lua:
"(...) Eu não estou certo, como já havia dito antes, que alguém possa persuadir outras pessoas que Jesus nunca existiu se não for capaz de explicar todo o fenômeno de Jesus histórico e cristianismo primitivo, seja como um trapaça ou uma parábola santa. Eu tinha um amigo na Irlanda, que não acreditava que os americanos pousaram na lua, mas que tinham criado a coisa inteira para reforçar sua imagem de guerra fria contra os comunistas. Eu não consigo argumentar com ele. Portanto, não estou de todo certo que eu possa provar que o Jesus histórico existiu contra esse tipo de hipótese e, provavelmente, para ser honesto, não estaria mesmo interessado em tentar. No entanto, tomei a hipótese não como uma conclusão pré-estabelecida , mas como uma simples questão que estava por trás das primeiras páginas de BofC [Birth of Christianity] quando eu mencionei Josefo e Tácito. Eu não acredito que tanto um quanto o outro tenham checado os arquivos romanos ou judaicos sobre Jesus. Eu creio que eles expressaram o conhecimento público, comum, sobre aquele estranho grupo chamdo cristãos, e seu não menos estranho fundador chamado Cristo. A existência, não apenas dos textos cristãos mas destas fontes não cristãs é suficiente para me convencer que estamos lidando com um indíviduo que existiu na história. Além disso, a despeito das inúmeras formas em que os oponentes criticaram o cristianismo, ninguém nunca sugeriu que tudo tinha sido inventado. Isso é suficiente para mim.
e (...) que esta pessoa existiu é uma conclusão histórica para mim, e não um postulado dogmático ou pressuposição teológica. De modo geral, meus argumentos são: (1) a existência é dada em fontes cristãs, pagãs e judaicas; (2) Não é negada até mesmo pelos críticos mais hostis do cristianismo primitivo (Jesus é um bastardo e um tolo mas nunca uma ficção ou um mito!); (3) Até onde eu sei, não há paralelo daquela época e período que me permita compreender uma invenção desse tipo [8].

A grande questão é que independente dos testemunhos não-cristãos, sempre bem-vindos pelos estudiosos, a grande maioria das informações sobre Jesus virá, sempre, do Novo Testamento, e de alguns outros textos considerados antigos, como o evangelho de Tomé e de Pedro. Como observa o Professor Steve Mason, da Universidade York [9], se por um lado não se deve esperar do historiador "tratamento especial" para as narrativas evangélicas, o ceticismo radical que agressivamente recusa, a priori, qualquer informação histórica é equivocado. Segundo Mason, devem ser utilizados os mesmos critérios de análise crítica adotados para reconstruir o passado a partir de narrativas de historiadores antigos como Livio, Josefo e Tacito.

b) Critérios de autenticidade e fontes cristãs primitivas: estabelecendo um esboço da figura de Jesus

De fato, durante quase 200 anos de pesquisa, os acadêmicos criaram critérios para analisar os evangelhos como fontes historicas, e os ditos e feitos atribuídos a Jesus. Para exemplificar, podemos utilizar um desses critérios, como o do embaraçamento, se refere a ditos e feitos atribuidos a Jesus que criariam dificuldade para igreja primitiva, e enfraqueceriam sua posição diante de oponentes, e que dificilmente teriam sido inventados. Um exemplo de fato autenticado por este critério é a crucificação de Jesus sob a acusação de ser o Rei dos Judeus.

O próprio Paulo diz aos Corintíos que a cruz era escândalo para os judeus e loucura para os gregos (I Cor. 1:23). De fato, os evangelhos usam intensamente as escrituras para provar que Jesus era o Cristo, mas esta diz "Se um homem tiver cometido um pecado digno de morte, e for morto, e o tiveres pendurado num madeiro, o seu cadáver não permanecerá toda a noite no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; porquanto aquele que é pendurado é maldito de Deus. Assim não contaminarás a tua terra, que o Senhor teu Deus te dá em herança.(Dt 21:22-23)". Os oponentes e adversários dos cristãos usavam a crucificação como a maior prova de que Jesus não foi o Messias, como o judeu Trifo, rebatendo o uso de Dan. 7 por Justino Martir "Estas mesmas escrituras, meu caro, nos ordenam esperar aquele que, como Filho do Homem, receberá do Ancião de Dias o Reino Eterno. Mas este que vocês chamam de Cristo não teve honra ou glória, tanto assim que a maldição contida na Lei de Deus caiu sobre ele, porque foi crucificado" (Dialogo com Trifo, Capítulo 32). Também os rabinos, no Talmude, mostram como a crucificação poderia acabar com a "carreira" de pretendente messiânico "Rabi Meir costumava ensinar 'Qual o significado (do verso), "Aquele que for pendurado no madeiro é maldito de Deus" (Dt 21:23)? Havia dois irmaos gêmeos que eram parecidos. Um reinava sobre o mundo todo e outro se tornou um ladrão. Após um tempo, o que era bandido foi pego e então crucificado em um madeiro. Todos que passavam e viam, diziam "parece que o Rei foi crucificado" (bTalmude, Sinédrio 9:7). A cruz era escândalo, porque um Messias digno de seu "cargo" não poderia ser crucificado.

Tanto é que Celso, o fílosofo pagão de sec. II que escreveu contra Cristo e os Cristãos, os acusa de serem culpados de um sofisma ao afirmarem que o "Filho de Deus é o próprio Logos", porque ao dizerem "que o Logos é o Filho de Deus, não apresentam um Logos puro e imaculado, mas um homem dos mais degenerados, pois foi açoitado e crucificado" (Contra Celso, II.31), ridicularinzando-os por transformarem um criminosos em Deus "Se, após inventar defesas que são absurdas, e pelas quais vocês são ridiculamente enganados, ainda que imaginando que vocês realmente fizeram uma boa defesa, porque vocês não consideram aqueles outros individuos que também foram condenados, e sofreram uma morte miserável, como maiores e mais divinos mensageiros dos céus (que Jesus) ? (Contra Celso, II.44)

"O fato de que a cruz era escândalo e loucura, é evidenciado ainda na forma como alguns grupos cristãos chegaram a afirmar que Jesus não foi realmente crucificado. O Professor AKM Adam, da Universidade de Glasgow, observa que Irineu, em seu Tratado "Contra Todas as Heresias" critica os seguidores de seguidores de Cerinto, que acreditavam que Cristo desceu ao mundo e entrou no corpo do homem Jesus em seu batismo, mas o deixou em sua crucificação, de forma que embora Jesus tenha nascido, sofrido e morrido, Cristo permaneceu espiritual e intocado pelo sofrimento. Relata que os discípulos de Simão, o Mago, afirmavam que embora parecesse que Jesus havia padecido na cruz, ele não havia sofrido de fato. Basilides, pregava que Jesus não poderia realmente sofrer ou morrer, mas trocou de lugar com Simão de Cirene, que foi transfigurado para parecer com Jesus e crucificado, enquanto o verdadeiro Jesus via de longe e ria. Marcião e outros ensinavam que Logos/Cristo desceu sobre Jesus em forma de pomba e ascendeu aos céus antes de sofrer na cruz. Cristo apenas parecia ter um corpo físico, e ter sofrido e sido crucificado, mas ele era na verdade incorpóreo, um espírito puro, e assim não poderia sofrer [10]. Os próprios cristãos, percebiam quanto a crucificação era degradante e embaraçosa, tanto que que alguns deles chegaram a afirmar que Cristo, o Messias, não poderia ser realmente submetido a ela, e seu suplício só poderia ter sido aparente, ou ele teria sido substituído por alguém que foi transfigurado para parecer com ele. Isso reforça a percepção que a crucificação de Jesus não foi inventada pelos cristãos, mas um fato traumático que eles buscaram lidar de diferentes formas.

Por fim, a crucificação de Jesus e sob a acusação de ser o Rei dos Judeus era muito perigosa para os primeiros cristãos dado seu status legal precário no Império Romano. Os evangelhos foram escritos, provavelmente, entre a 1ª Guerra Judaica (66-73 DC) e 2ª Guerra Judaica (132-135 DC). No primeiro século DC e início do secundo, houveram inúmeras revoltas, provocadas por auto-proclamados "Reis dos Judeus" e "Messias", que causaram a morte de (dezenas de) milhares de pessoas, dentre os quais milhares de bons soldados e cidadãos de Roma. No mesmo período, a igreja era perseguida e o cristianismo era uma seita ilegal, sendo que alguns oficiais e magistrados suspeitavam que o grupo era formado por agitadores, desleias a Cesar e a Roma. De fato, Aristides, Quadrato, Justino Martir, Melito, Apolinario, e outros, escreveram ao Imperador da época buscando incessantemente provar que os cristãos eram leais, pacíficos e produtivos e perfeitos súditos do Império. Porque, nessas circunstâncias, os cristãos inventariam que seu líder tinha sido um Messias Crucificado, executado como um criminoso político, por magistrados romanos, sob a acusação de Alta Traição? Certamente porque Jesus foi realmente crucificado, por ter sido acusado (justa ou injustamente) de se auto-proclamar "Rei dos Judeus", e essas coisas eram fatos bem conhecidos (e problemáticos) que os cristãos tinham que explicar.

Os critérios como embaraçamento, dissimilaridade, múltipla atestação e outros apresentam limitações, mas permitem, no caso de Jesus, estabelecer, no mínimo, um esboço de sua figura. E o que observa o Prof. Alan Segal, da Universidade de Colúmbia:
"Desde o Iluminismo, as histórias do Evangelho sobre a vida de Jesus tem sido postas em dúvida. Intelectuais, naquele tempo e agora, perguntam: "O que torna as histórias do Novo Testamento historicamente mais prováveis do que fábulas de Esopo ou contos de Grimm?" Os críticos podem ser respondidos de forma satisfatória, mas os argumentos que eles apresentam são corrosivos à fé ingênua"[11]

Segal observa que muitos estudiosos são céticos quando as narrativas de infância de Jesus, considerando como lendários os relatos dos anjos aparecendo aos pastores, a matança dos inocentes, a estrela de Belém e os magos do oriente. Pondera a falta de registros históricos escritos durante a vida de Jesus. No entanto, ele afirma, isso não invibiabiliza a pesquisa histórica sobre a vida de Jesus, pois entre os critérios estabelecidos pelos historiadores, o do embaraçamento estabelece um padrão muito rigoroso que, se por um lado, é tão severo que vai lançar fora até mesmo ditos e feitos de Jesus autênticos, por outro, justamente por seu rigor, dá aos estudiosos fatos indisputáveis que permite verificar que as narrativas são, pelo menos em parte, históricas. Segal então continua:
"Pelo grande rigor com que foi definido, o critério [do embaraçamento] demonstra que Jesus existiu. Aqui estão alguns fatos nos evangelhos que a igreja foram embaraçosos para a Igreja Primitiva: Jesus foi batizado por João (um grande problema teológico). Ele pregou o fim do mundo (que não veio). Ele se opôs ao Templo de alguma forma (e esta oposição o levou diretamente para a morte). Ele foi crucificado (uma maneira desonrosa de morrer). A inscrição na cruz "Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus" (a Igreja nunca pregou este título para Jesus e logo perdeu o interesse em converter judeus). Ninguém, de fato, viu quando ele ressuscitou (embora, evidentemente, seus discípulos, quase que imediatamente perceberam que ele estava vivo). Ironicamente, é a natureza embaraçosa desses fatos que nos garante que são autenticos (...).O critério de dissimilaridade nos coloca em uma posição melhor no que diz respeito à vida de Jesus no que estamos no que se refere aos grandes acontecimentos da história israelita [11].

O Prof. James McGrath, da Butler University, disponibilizou em seu site, uma compilação de listas dos Prof. Norman Perrin, E.P Sanders, e N.T Wright, que apresentam ditos e feitos de Jesus que são considerados como (quase) indisputavelmente autênticos.

c) Avaliação dos evangelhos como relatos históricos, data de autoria e genero literário.

Segundo a posição amplamente dominante entre os historiadores do cristianismo primitivo os quatro evangelhos foram compostos pelas 2ª e 3ª geração de cristãos, entre 70 e 110 DC, havendo possibilidade de variação de 15 ou 20, para mais ou para menos, para um ou outro evangelho individual [12]. É uma distância comparavel, em nossa perspectiva, a acontecimentos como a ida do homem a lua (1968) e Copa do Mundo de 1970, de um lado, e a crise de 1929 ou a subida de GetúlioVargas ao poder (1930) de outro. Ou seja, é bem provável que pelo menos Marcos (65-80 DC) ou Mateus (80-100 DC), tenham sido finalizados em uma época que testemunhas oculares de Jesus ainda estivessem vivas. Lembrando sempre que essa é a data de composição final, uma vez que os estudiosos identificam fontes escritas mais antigas, como Q (fonte de ditos), como servindo como base a composição evangélica.

Ainda, do ponto de vista do gênero literário, muitos, se não a maioria dos estudiosos atualmente aceitam a tese proposta pelo Prof. Charles Talbert, (Baylor University) e desenvolvida pelo Prof. Richard Burridge (Kings College), - de que cada um dos quatro evangelhos podem ser classificados na categoria das biografias greco-romanas (bioi ou vitae, que apresentam características bem distintas das atuais biografias), como Vidas Paralelas de Plutarco e Agrícola de Tácito -, a partir da analise das caracteristicas mais importantes desse tipo de trabalho (apresentação, assunto, características internas e externas, além de próposito e recepção pelos leitores), no periodo entre 500 AC a 300 DC [13]. Conforme Burridge, existiria, por convenção um contrato informal entre as partes, que "define uma série de expectativas no leitor a respeito das intenções do autor, ajudando na construção do significado do texto, bem como na reconstrução do significado original do autor, assim como na interpretação e avalaição da comunicação contida na obra literária".

A definição de genero é importante, pois, certamente, usando um exemplo atual, nossas expectativas e nossa forma de compreender uma narrativa são diferenciadas, digamos, diante de uma descrição de um assassinato numa página policial de um jornal ou o notíciário na TV, em comparação a de um livro de Agatha Christie ou numa série de ficção como CSI Miami. Ao situarmos os evangelhos na mesma categoria de escritos como as biografias de Alexandre, O Grande e Julio César, a implicação é que Marcos, Mateus, Lucas e João buscaram relatar os ditos, feitos e a significância de Jesus, e, como era extremamente comum entre as bioi, tinham a intenção de que suas obras tivessem finalidade didática em relação as crenças dos cristãos e seu fundador. Obviamente, o reconhecimento em um certo gênero literário diz mais sobre a intenção presumida do autor do que o resultado final de sua obra. O fato de serem bioi ou vitae não "prova" que a "Bíblia tinha Razão" ou estabelece o nível de confiabilidade historica dos evangelhos - ponto diverso que deve ser analisado separadamente - pois também para Cesar, Alexandre e Augusto existiram bons e maus biografos - apenas indica ao estudioso a intenção pela qual foram escritos e forma como foram originalmente lidos.

Outros, como Geza Vermes [14], acreditam que os evangelistas, embora não fossem historiadores profissionais atuaram como narradores populares da história de Jesus de Nazaré. Em ambos os casos, seja como for, os evangelistas teria buscado narrar a vida, idéias, atividades, magistério e morte de Jesus, e usaram estes acontecimentos para compartilhar sua Fé na sua ressureição e de que ele era o Cristo, conforme as escrituras. Observe-se que, mesmo aqueles estudiosos que não concordam com a classificação dos evangelhos como escritos históricos ou bioi, stricto-sensu, como John Dominic Crossan, acreditam que é possivel utiliza-los como fontes históricas, obtendo informações sobre Jesus e os primeiros cristãos [15].

d) Resultados. Como os estudiosos avaliam os evangelhos

Os resultados variam muito, havendo aqueles como F.F Bruce e Craig Bloomberg que defendem a aceitação da tradição evangélica como confíavel até aqueles como Burton Mack que defende uma visão muito mais cética, considerando que cerca de 10 % do que é atribuido a Jesus nos evangelhos teria sido provavelmente dito ou realizado por ele [16]. Seja como for - uma vez que, segundo John D. Crossan, são atribuidos pouco mais de 500 ditos e feitos de Jesus nos evangelhos e outras fontes cristãs escritas até cerca de 100 anos após a morte de Jesus [17] - mesmo nessa visão bem minimalista teriamos por volta de 50 feitos e ditos de Jesus considerados como provavelmente autênticos, mesmo utilizando os critérios históricos de forma extremamente rigorosa. Considerando que, temos apenas quatro ditos associados a uma figura da importância de Hanina Ben-Dosa [18], por exemplo, mesmo antes de qualquer análise crítica, não é díficil entender porque o Professor Flusser nos diz que sabemos mais sobre Jesus do que quase todos seus outros contemporâneos. Alías se considerarmos que existem dezenas de evangelhos e outros textos cristãos, além do NT, tais como os de Nag Hammadi, ai que percebemos que o problema não é a falta de fontes, mas justamente seu excesso.

É que nos diz, em outras palavras, Michael Grant (1914-2004), Professor de História Antiga da Universidade de Edinburgo, ateu, e uma das mais respeitadas figuras em história romana:
"Se nos aplicarmos ao Novo Testamento, como nós devemos, a mesma sorte de critérios que nós devemos utilizar para outros escritos da antiguidade contendo material histórico, nós não podemos mais rejeitar a existência de Jesus sem o fazer o mesmo com um grande número de personagens pagãos cuja realidade de sua figuras históricas nunca é questionada. Certamente, existem todas aquelas discrepancias entre um evangelho e outro. Mas nós não negamos que um evento aconteceu apenas porque alguns historiadores pagãos como, por exemplo, Livio e Polibio, o descreveram de maneiras diferentes. Que houve um rápido crescimento de lendas em volta de Jesus não pode ser negado, e isso aconteceu muito rápido. No entanto, também houve um rápido desenvolvimento de lendas em torno de figuras pagãs como Alexandre o Grande, ainda que ninguém o considere completamente mítico ou fictício. No fim das contas, os métodos críticos modernos não dão suporte a teoria do Cristo Mítico. E, de novo, mais uma vez, ela foi "refutada e rejeitada pelos estudiosos de primeira linha". Nos anos recentes "nenhum estudioso sério ousou levantar a tese da não historicidade de Jesus", ou muito pouco o fizeram, e mesmo assim não conseguiram ser bem-sucedidos frente a forte e abundante evidência contrária" [19]

Por fim, observamos que tanto Vermes quanto Grant observam que existe um "punhado" ou uns "poucos" estudiosos que questionaram a historicidade de Jesus. Na atualidade, podemos citar, por exemplo, o Prof. Robert Price e o Dr. Richard Carrier, entre outros. Estes estudiosos acreditam que existem evidências que sugerem que Jesus possivelmente não teria existido, e uma das suas principais reclamações é justamente que o consenso histórico é tão forte, que suas teses não são consideradas com a seriedade devida, não sendo possível a eles sequer começar o debate acadêmico. Seja como for, não há problema em se questionar a existência de Jesus, ou seu significado, que é uma questão histórica como outra qualquer. O problema, como em casos como o do filme citado, é não informar aos leitor, principalmente os leigos no assunto, a situação atual do campo, dando a entender que justamente a situação contrária é a que ocorre.

CONTINUA
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Referências Bibliograficas:
[1] Peter Joseph, "Zeitgeist, O Filme", transcrição parte 1, acessado em 30.12.2009[2] Jona Lendering: "Pontius Pilate"http://www.livius.org/pi-pm/pilate/pilate01.htm., acessado em 28.12.2009[3] ver John J. Butt, Greenwood Dictionary of World History (2006), "Pliny the Younger", fl. 266; Ronald Mellor (1999), Roman Historians, fl. 89. Este exemplo foi utilizado anteriormente por Gakusei Don, na analise do documentário "God who Wasn't there"[4] Statius, Silvae 4.4; Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 20:7.2; Suetônio, A Vida dos Doze Césares, Tito 8:3-4.[5] Herbert W. Benario (2000), Trajan In: De Imperatoribus Romanis:An Online Encyclopedia of Roman Rulers and their Families (http://www.roman-emperors.org/) , acessado 28.12.2009[6] Geza Vermes (2005), Quem e Quem na Época de Jesus, fl. 23, Ed. Record, 1ª Edição[7] David Flusser (1998), Jesus, fl .01, Ed. Perspectiva[8] John D. Crossan (2000), Seminar on Materials & Methods in Historical Jesus Research, Seminário On-line realizado de 11 de fevereiro a 4 de março de 2000, ver mensagens 146 e 159, e também 167, de 28/02, 01/03 e 02/03/2000, respectivamente (acessado em 04.01.2010)[9] Steve Mason, Where Jesus Was Born? O Little Town of…Nazareth?, Bible Review, Fevereiro de 2000.[10] A.K.M. Adam, Docetism, The Ecole Initiative, http://ecole.evansville.edu/articles/docetism.html, as passagens citadas de Contra as Heresias, de Irineu de Lyon, são os Livros I capítulos 23, verso 2, e 26, verso 4; II; e Livro II 24.4, acessado 04.01.2010.
[11] Alan F. Seagal (2005), Jesus and the Gospels-What Really Happened - [1]: Believe only the Embarrassing, Slate, 21.12.2005 http://www.slate.com/id/2132974/entry/2132989/, acessado em 04.01.2010.
[12] ver Geza Vermes (2005), A Paixão, fl. 15, Editora Record, 1ª edição; John D. Crossan, Jesus, Uma Biografia Revolucionária, fl. 14, Ed. Imago, 1ª Edição; Gerd Thiessen, O Novo Testamento, fls. 71-92 e fls. 111-122; 1ª Edição.[13] Burridge, Richard (2004): What Are the Gospels, A Comparison with Graeco-Roman Biography, 2ª edição;ver também o review por James Morrison (Bryan Mawr Classical Review 2005.05.31) e Mitchell G. Reddish (Mitchell Reddish, review of Richard A. Burridge, What Are the Gospels?: A Comparison with Greco-Roman Biography, Review of Biblical Literature). Quanto a avaliação da tese, o Professor Bart Erhmann afirma que, recentemente "tem sido aceita por muitos estudiosos" (Bart Ehrman, The New Testament: A Historical Introduction to the Early Christian Writings. 3ª edição, fl. 64-65, 2004). O próprio Burridge afirma ter ficado surpreso com a aceitação de sua tese, parecendo-lhe que a maioria dos estudiosos já classificava os evangelhos entre as bioi ou vitae no final da década de 1990 (What Are the Gospels.... fl. 253). Andrew T. Lincoln fala em consenso na comunidade acadêmica em torno da tese de Burridge (A.T. Lincoln, 'Reading John, The Forth Gospel under Modern and Post-Modern Interrogation In Stanley Porter (ed.) : Reading the Gospels Today), percepção compartilhada pelo Prof. Mitchell Reddish no review já citado.[14] Geza Vermes (2001), As Várias Faces de Jesus, fl.177[15] John Dominic Crossan (2004); Texto e Contexto na Metodologia dos Estudos do Jesus Histórico In Chevitarese, Corneli & Selvatici; Jesus de Nazaré, Uma outra História, fls. 169-170.[16] Burton L Mack (1993), The Lost Gospel: The Book of Q and Christians Origins, especialmente fls. 71-105 e fls. 260-263; ver também o sumário extremamente útil de Cris Zeichmann, "Q and The Historical Jesus, Pt. 2" http://neonostalgia.com/weblog/?p=551[17] John Dominic Crossan (1999) Birth Of the Christianity, fls. 587-596. Disponível online em http://www.jesusdatabase.org/index.php?title=Crossan_Inventory, acessado em 30.12.2009[18] Geza Vermes (2001), As Várias Faces de Jesus, fl.[19] Michael Grant (1979), Jesus: An Historian's Review of the Gospels, pagina 200.



segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O réu: Jesus de Nazaré

O julgamento de Jesus

As 12 horas que separam a prisão da morte de Jesus guardam uma série de mistérios. Por que ele foi detido? Do que foi acusado? Como o condenaram? Quem o matou?

O prisioneiro caminha lentamente para a execução. Seu sangue escorre pelas feridas em carne viva. O fim está próximo. Em poucas horas o homem que irá mudar a história da humanidade morrerá pendurado em uma cruz. Está para começar uma das maiores polêmicas de todos os tempos. Quase 2 mil anos após a morte de Jesus de Nazaré, os detalhes sobre o julgamento que o levou à crucificação ainda são capazes de provocar debates explosivos.

Primeiro, porque os únicos relatos daqueles momentos são os textos religiosos contidos na Bíblia. “Não bastasse isso, os quatro evangelhos (os livros que contam a vida de Jesus atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João) divergem entre si em diversos pontos da narrativa. Não se conhece a seqüência dos fatos e de como ocorreram, o que contribui para que sejam suscitadas tantas polêmicas”, diz o historiador André Chevitarese, professor de história antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Segundo, porque os evangelhos impingem grande parte da responsabilidade pela prisão e condenação de Jesus aos sacerdotes judeus que o julgaram em primeira instância, livrando o romano Pôncio Pilatos, a autoridade máxima na Palestina na época, de qualquer vestígio de culpa. O cristianismo moderno rebate essa versão e nega que os judeus da época de Jesus tenham sido os únicos culpados. Já os historiadores discutem se os fatos narrados na Bíblia têm base nas leis judaicas e romanas antigas, à procura de esclarecer a verdade. “Mas os cristãos fundamentalistas ainda interpretam os evangelhos de forma anti-semita”, diz o padre e teólogo Antônio Manzatto, da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. “É o que faz Mel Gibson em seu filme A Paixão de Cristo.”

As polêmicas provocadas pelo filme, que está batendo recordes de bilheteria nos Estados Unidos e estreou no Brasil sob ameaças de proibição, têm o mérito de levar ao público questões normalmente restritas aos meios acadêmicos. Afinal, quem matou Jesus? Como se deu o processo que levou à sua condenação? Qual foi a responsabilidade do povo judeu, das pessoas comuns? Para responder a essas perguntas, primeiro é preciso entender o contexto histórico em que esses fatos extraordinários teriam ocorrido.

O réu: Jesus de Nazaré

Atualmente, estuda-se cada vez mais sobre Jesus. Contudo o que a história sabe sobre ele não avançou muito nos últimos 2 mil anos. Além da Bíblia, são raríssimas as referências a Jesus. Há os chamados Evangelhos de Nag Hammadi, encontrados no Egito em 1945. São mais de 60 textos escritos em copta (idioma falado no Egito bizantino) e que faziam parte de uma coleção de textos cristãos do século 4. Esses livros revelam um Jesus místico, milagreiro, mas muito pouco somaram ao personagem histórico.

Já os chamados Manuscritos do Mar Morto, escritos em aramaico (a língua falada na Palestina na época de Jesus), entre 152 a.C. e 68, pelos essênios (uma seita judaica contemporânea de Jesus), tinham um ótimo potencial para renovar o conhecimento histórico sobre Jesus. Encontrados em 1947, em Qumram, Israel, só foram completamente decifrados em 2002 e não citam Jesus nenhuma vez.

A historiografia grega e judaica tão pródiga em personagens da Antiguidade também ignora Jesus. Restam-nos os textos romanos, escritos todos depois da morte de Jesus. Entre eles, os de Flávio Josefo, autor de Antiguidades Judaicas. Porém uma dúvida paira sobre o trecho em que cita Jesus. Josefo afirma que Jesus “fazia milagres e que “apareceu três dias depois da sua morte, de novo vivo”. Para Angelo Chaniotis, do Centro de Estudos de Documentos Antigos da Universidade de Oxford, é discutível que esse trecho seja realmente de Josefo. “Um judeu que se tornou cidadão romano não acreditaria que Jesus era o Messias.” Para ele, o trecho deve ter sido adicionado pelos monges cristãos que tiveram acesso ao texto a fim de copiá-lo, entre os séculos 6 e 11.

Se são raras as vozes da história sobre a vida de Jesus, o silêncio é ainda maior quando se procuram vestígios arqueológicos. Em 2002, anunciou-se o que seria a redenção dos que acreditam nos evangelhos: uma urna funerária com o nome de Jesus escrito. Meses depois provou-se que era uma falsificação. Até hoje não se descobriu nenhum traço arqueológico diretamente associado a Jesus.

No entanto, a arqueologia tem tido sucesso em fornecer subsídios para reconstruirmos o momento histórico no qual teria vivido Jesus. Um exemplo é o trabalho nas imediações de Nazaré. Escavações encontraram grande número de construções romanas do século 1. O fato jogou nova luz sobre a profissão Jesus. A palavra usada na Bíblia para designar o que Jesus fazia é tekton, que tanto pode significar carpinteiro como biscateiro. “As novas descobertas mostram que a Galiléia, e em particular a região de Nazaré, era um verdadeiro canteiro de obras na época de Jesus. Praticamente todos os homens adultos estavam envolvidos com alguma atividade ligada à construção civil”, diz Gabriele Cornelli, professor de teologia e filosofia da Universidade Metodista de São Paulo. Mas como esse camponês que ajudava a erguer paredes para os romanos acabou condenado e morto alguns anos depois?

A Acusação: Blasfêmia

A Galiléia da época de Jesus vivia um período de extrema pobreza. “A região, ao norte da Judéia, sempre havia sido pobre. Mas não miserável, como durante a dominação romana”, escreveu John Dominic Crossan, professor da DePaul University, de Chicago, Estados Unidos e autor de O Jesus Histórico, a Vida de um Camponês no Mediterrâneo. Segundo ele, os camponeses tinham de pagar impostos ao Império Romano, que havia tomado Jerusalém em 63 a.C., aos sacerdotes do Templo em Jerusalém, e ao rei Herodes Antipas. Isso deveria consumir pelo menos dois terços de toda a produção, segundo os cálculos de Crossan. Como resultado de tripla tributação, a população empobrecia e perdia a esperança em tempos melhores.

Também havia uma crescente desconfiança em relação aos sacerdotes do templo. “Em várias passagens dos evangelhos, Jesus critica duramente os sacerdotes por desprezarem os pobres e darem importância excessiva ao ouro”, diz o teólogo Fernando Altemeyer, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Esse descontentamento geral explodiria na guerra dos judeus contra Roma, que durou do ano 66 ao 70. Uma das primeiras ações dos rebeldes foi invadir o templo e rasgar todas as listas de devedores, os maus pagadores de impostos, que ficavam guardadas no local. Roma acabaria vencendo, e o templo foi destruído. “Mas o fato mostra que a revolta contra a cobrança de impostos e a política da elite sacerdotal era imensa”, diz André Chevitarese.

Era o cenário propício para que líderes como Jesus fossem ouvidos. A visão mais aceita hoje em dia é que Jesus, que vinha da parte mais afastada do Império Romano, era mais um entre tantos pregadores. Essa interpretação é sustentada por estudiosos como o padre católico John P. Meier, autor de Um Judeu Marginal, Repensando o Jesus Histórico, e professor da Universidade Católica da América, em Washington, Estados Unidos. “É um fato que na época de Jesus devia haver pelo menos outras cinco ou seis pessoas que se diziam o Messias”, afirma Antônio Manzatto.

O poder local, formado por uma aliança entre a elite judaica e os romanos, via esse movimento de líderes messiânicos com desconfiança. “O discurso era revolucionário, o que poderia abalar as estruturas do poder”, diz André. O de Jesus era seguramente bombástico. Ele pregava a igualdade, o respeito aos pobres, o amor.

Mas se Jesus era apenas um dentre tantos pregadores messiânicos, tudo mudou quando ele chegou a Jerusalém, pouco antes da Páscoa judaica, por volta do ano 30. Naquela época, Jerusalém triplicava de tamanho. Apesar de não ser a capital romana do território ocupado (os romanos preferiam governar de Haifa, de frente para o mar Mediterrãneo), lá ficava o Sinédrio, instituição judaica que funcionava como tribunal e poder legislativo, além do palácio de Pôncio Pilatos, a casa de Herodes Antipas, o rei e, é claro, o Templo Sagrado.

Segundo os evangelhos, Jesus já era conhecido na Galiléia por suas pregações, seus milagres e pela cura de enfermos quando chegou a Jerusalém. De acordo com as leis e tradições judaicas, isso bastava para ser considerado um blasfemo. A cura, na época, era um monopólio divino. No entanto, sua chegada a Jerusalém foi ainda mais recheada de provocações à ordem. Ao entrar na cidade a uma semana da Páscoa, sentado em um jumento, ele comparou-se ao Messias, invocando deliberadamente a profecia do livro de Zacarias sobre a sua chegada (“Aí vem o teu rei, justo e salvador, montado num burrinho”). A ofensa final, no entanto, foi invadir o templo e expulsar fariseus e saduceus. Se isso tiver ocorrido como dizem os evangelhos, ele acabava de comprar uma briga e tanto.

Os juízes: Judeus ou Romanos?

Segundo a Bíblia, Jesus estava reunido com seus seguidores no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, quando foi preso, à noite, depois de ser traído por Judas. Jesus teria sido detido pelos guardas do templo, por ordem do Sinédrio – o conselho formado pela elite judaica que controlava o santuário. Mas há controvérsias. Segundo o próprio evangelho de Mateus, a população da cidade estranhou uma patrulha àquela hora na rua. De fato, isso seria pouco comum. “Para operar além das paredes do templo, os guardas devem ter contado com o apoio de soldados romanos”, diz a historiadora Norma Musgo Mendes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Os evangelistas discordam quando relatam os fatos após a prisão de Jesus. Em comum, eles trazem a versão de que os sacerdotes do templo decidem não condená-lo à pena capital. Se fosse sentenciado à morte pelo Sinédrio, provavelmente seria apedrejado. O prisioneiro é então enviado para a autoridade suprema local, o procurador romano na Palestina, Pôncio Pilatos, a quem cabia julgar questões de interesse do Império.

Aqui, começa outra grande polêmica sobre a narração bíblica. Não haveria nenhuma razão para Jesus não ser condenado sumariamente por Pilatos, mas os evangelhos, única fonte escrita do processo, contam que o governador teria hesitado em sentenciar Jesus e tentado libertá-lo pelo menos duas vezes. Numa, após interrogar Jesus e, tendo-o considerado inocente, resolveu soltá-lo, mas voltou atrás quando foi vaiado pelo povo que acompanhava o julgamento. Em outra, teria pedido que o povo escolhesse entre Jesus e Barrabás, um criminoso conhecido, para que ele soltasse um deles, em um perdão especial devido à Páscoa. O povo teria escolhido Barrabás para ser salvo. No fim, Pilatos teria lavado as mãos, para simbolizar sua inocência em relação ao veredicto. Segundo um dos evangelhos, o de Lucas, o governador ainda teria mandado Jesus para o rei Herodes, mas esse não aceitou julgá-lo e o enviou de volta.

Para alguns historiadores, todo o julgamento é inverossímil, distante das práticas das autoridades romanas na Palestina. “Jesus não era uma pessoa importante na época, era mais um pregador que vinha da distante Galiléia. O mais provável é que ele nem sequer tenha sido julgado, mas, em vez disso, condenado sumariamente à morte”, afirma Gabriele Cornelli. Segundo ele, a passagem do julgamento no Novo Testamento foi escrita com o propósito de orientar os primeiros cristãos a como se portar diante dos sacerdotes e dos romanos.

André Chevitarese concorda. “Os evangelhos devem ser lidos não como uma reportagem, mas como um programa teológico com fundo histórico”, diz. Ele defende que os autores dos evangelhos, que foram escritos entre 40 e 80 anos após a morte de Jesus (e, portanto, depois que os romanos destruíram Jerusalém), utilizaram a narração do julgamento de Jesus para reforçar a cisão entre cristãos e judeus. “Isso era fundamental para afirmar os preceitos da nova religião, e, ao mesmo tempo, não cutucar o Império Romano, com o qual o cristianismo teria de conviver”, afirma André.

Essa análise dos relatos explicaria porque Pilatos é retratado de modo tão brando nos quatro evangelhos. “Até a mulher dele, Cláudia, tenta influenciar o julgamento, a favor de Jesus. Tudo para construir a imagem de um Pilatos bonzinho e não o típico governante romano que estava lá para fazer valer a lei e a ordem”, diz André. No entanto, Filão, o Judeu, historiador que viveu entre 20 a.C e o ano 50 menciona a crueldade de Pilatos e seu autoritarismo em centenas de casos de julgamentos de rebeldes e escravos (aliás, Filão também não se refere a Jesus).

O teólogo Paul Winter, autor de Sobre o Processo de Jesus, aponta outras passagens conflitantes. Para ele, a cena em que o povo escolhe Jesus para morrer no lugar de Barrabás não faz sentido do ponto de vista histórico. Primeiro, havia quatro prisioneiros para serem julgados, incluindo os dois ladrões que morreram na cruz ao lado de Jesus. Nesse caso, de acordo com Winter, não faria sentido o povo escolher um entre dois prisioneiros, e não entre quatro. Em segundo lugar, o hábito de se libertar um preso na Páscoa era raro, e não um fato comum como fazem crer os textos bíblicos.

O veredicto: Cupaldo de Sedição

Outro dedo a apontar para Pilatos e os romanos, quando se procura um culpado pela morte de Jesus, é o debate sobre por qual crime, afinal, ele foi condenado. Vimos que, segundo os evangelhos, os judeus do templo de Jerusalém o acusaram de blasfêmia, mas o historiador Geza Vermes, da Universidade de Oxford, Inglaterra, duvida disso. “Casos de pessoas que se autoproclamavam messias eram comuns naquela época e não espantavam mais ninguém”, afirma. “Jesus foi levado à morte por crime de sedição, de rebeldia política contra os interesses romanos. Só isso justificaria o fato de ter sido julgado por Pilatos e condenado à crucificação.”
Para a historiadora Norma Mendes, é possível que tenha havido uma aliança entre os sacerdotes judeus e os romanos para que Jesus fosse condenado à morte. Aí faria sentido que o Sinédrio o acusasse de blasfêmia e o apresentasse a Pilatos como agitador político, para que fosse morto sem a participação direta da elite judaica.

A pena: Crucificação

“Uma vez que Jesus foi condenado por Pilatos, como aparece na Bíblia, a pena podia ser uma só: crucificação, precedida de açoitamento”, diz o historiador e arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Universidade Estadual de Campinas, no interior de São Paulo. Essa era uma pena bastante comum nos territórios ocupados pelos romanos. No ano que Jesus nasceu, por exemplo, mais de 2 mil condenados foram mortos dessa forma. A crucificação era considerada a mais degradante e brutal pena capital. Primeiro, o condenado era violentamente espancado, chicoteado e flagelado. Depois disso, uma pesada tora de madeira era colocada sobre suas costas e seus braços presos às extremidades. Assim ele carregava sua cruz até o local onde seria erguida. O condenado podia ter o calcanhar preso com pregos à madeira, ou as mãos, se não fossem amarradas com cordas.
O teólogo Antônio Manzatto acredita que o sofrimento de Jesus descrito na Bíblia seja fiel ao que realmente ocorria em casos de crucificação. Para ele, não haveria interesse dos evengelistas de exagerar na narrativa dos sofrimentos de Jesus. “O mais importante naquele momento era ressaltar a mensagem do fundador da nova religião. Jesus deve ter sofrido como todos que eram crucificados. Nem mais, nem menos”, afirma.

Segundo Pedro Paulo Funari, a morte na cruz advinha da sede e da asfixia causada pela posição em que o corpo ficava pendurado. O suplício poderia levar dias. No caso de Jesus que, segundo os evangelhos, morreu em poucas horas, isso poderia ser explicado pela perda excessiva de sangue, já que ele teve as mãos pregadas à cruz. Guardas romanos tomavam conta o tempo todo do lugar, não permitindo que dessem água ao condenado ou o tirassem da cruz. A agonia era assistida por familiares e a população em geral.

A falta de sepulturas para os milhares de crucificados daquela época levou os historiadores e arqueólogos a uma conclusão surpreendente: os corpos crucificados não eram retirados da cruz, mas deixados expostos aos elementos até serem devorados pelos abutres e cães. “É a única explicação plausível. O que teria sido feito dos restos mortais dos condenados crucificados que jamais foram encontrados?”, diz o historiador Gabriele Cornelli. Segundo ele, fazia parte da pena a humilhação pública, mesmo depois da morte.

No caso dos familiares de Jesus, é possível que tenham obtido autorização para levar seu corpo. “Os romanos concediam essas autorizações às vezes”, afirma Norma Mendes. Três dias depois que Maria recolheu os restos mortais de seu filho, tem início o maior relato de fé até então conhecido, a ressureição. Está para nascer não só o Cristo (o ungido, em grego), mas uma religião que abraçaria todo o mundo ocidental a ponto de hoje, dois milênios após os fatos analisados nesta reportagem, o cristianismo ser o credo de mais de 2 bilhões de pessoas e influenciar o modo de pensar e agir de grande parte da humanidade. “Direitos humanos, amor ao próximo, perdão, são todos preceitos morais que regem a vida da maioria das pessoas, sejam elas cristãs ou não”, diz o teólogo Antônio Manzatto. “Faz todo o sentido que sua vida seja objeto de tantos estudos e polêmicas.”
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Saiba mais
Livros
Bíblia de Jerusalém, Editora Paulus, 2002, Reúne os quatro evangelhos que relatam a Paixão de Cristo
O Jesus Histórico, a Vida de um Camponês no Mediterrâneo, John Dominic Crossan, Imago, 1994, Um dos maiores estudiosos do tema, Crossan elabora um retrato de Jesus por meio de análises históricas, antropológicas e literárias
Um Judeu Marginal, Repensando o Jesus Histórico, John P. Meier, Imago, 1992, Outra grande obra de referência, que analisa Jesus no contexto de seu tempo
Sobre o Processo de Jesus, Paul Winter, Imago, 1998, O autor discute o passo-a-passo do julgamento de Jesus à luz da história.

O Polêmico Bart D. Ehrman

Para a maioria dos estudantes do Novo Testamento, um livro sobre crítica textual é uma real chatice. Os detalhes tediosos não são matéria para um bestseller.

Mas desde a publicação em 1 de Novembro de 2005, Misquoting Jesus2 tem circulado mais e mais alto até o pico de vendas da Amazon. E já que Bart Ehrman, um dos líderes da América do Norte em crítica textual, apareceu em dois programas da NPR (o Diane Rehm Show e Fresh Air com Terry Gross) – ambos em um espaço de uma semana – ele tem estado entre os primeiro cinquenta mais vendidos na Amazon. Em menos de três meses, mais de 100000 cópias foram vendidas. Quando a entrevista de Neely Tucker a Ehrman no The Washington Post apareceu em 5 de Março deste ano as vendas do livro de Ehrman subiram ainda mais. O sr. Tucker falou de Ehrman como um “estudioso fundamentalista que vasculhou tanto as orígens do Cristianismo que ele perdeu sua fé.”3 Nove dias depois, Ehrman era a celebridade convidada no The Daily Show de Jon Stewart. Stewart disse que vendo a Bíblia como algo que foi deliberadamente corrompida por escribas ortodoxos fez da Bíblia “mais interessante… quase mais divina em alguns aspectos.” Stewart concluiu a entrevista declarando, “Eu realmente te parabenizo. É um baita de um livro!” Em menos de 48 horas, Misquoting Jesus chegou ao topo da Amazon, ainda que somente por um curto período. Dois meses depois e ainda está voando alto, ficando entre os 25. Ele “se tornou um de meus bestsellers mais improváveis do ano.”4 Nada mal para um tomo acadêmico em uma matéria “chata”!

Porque todo o alvoroço? Bem, por uma coisa, Jesus vende. Mas não o Jesus da Bíblia. O Jesus que vende é aquele que é saboroso ao homem pós-moderno. E com um livro entitulado Misquoting Jesus: The Story Behind Who Changed the Bible and Why, uma audiência disponível foi criada através da esperança que haveria novas evidências que o Jesus bíblico é uma imaginação. Ironicamente, quase nenhuma das variantes que Ehrman discute envolve palavras de Jesus. O livro simplesmente não entrega o que o título promete. Ehrman preferiu Lost in Transmission, mas a publicadora achou que tal livro seria percebido pelo pessoal de Barnes e Noble como relacionado a corridas de stock car! Mesmo que Ehrman não tenha escolhido o título resultante, ele foi uma jogada de marketing.

Mais importante, este livro vende porque ele apela ao cético que quer razões para não acreditar, que considera a Bíblia um livro de mitos. É uma coisa dizer que as histórias na Bíblia são lenda; outra bem diferente é dizer que muitas delas foram adicionadas séculos depois. Apesar de Ehrman não dizer bem isto, ele deixa a impressão que a forma original do Novo Testamento era bem diferente dos manuscritos que nós lemos agora.

De acordo com Ehrman, este é o primeiro livro escrito sobre a crítica textual do Novo Testamento – uma disciplina que tem circulado por quase 300 anos – para uma audiência leiga.5 Aparentemente ele não conta os vários livros escritos por advogados da KJV Only, ou os livros que interagem com eles. Parece que Ehrman quer dizer que o seu é o primeiro livro sobre a disciplina geral do criticismo textual do Novo Testamento escrito por um crítico textual de boa fé para leitores leigos. Isto é muito provavelmente verdade.

Crítica Textual 101

Misquoting Jesus em grande parte é simplesmente crítica textual 101 do Novo Testamento. Há sete capítulos com uma introdução e conclusão. A maior parte do livro (capítulos 1–4) é basicamente uma introdução popular ao campo, e uma muito boa nisto. Ele introduz os leitores ao fascinante mundo da atividade dos escribas, o processo de canonização, e textos impressos do Novo Testamento Grego. Ele discute o método básico de ecleticismo racional. Tudo através destes quatro capítulos, vários fragmentos – leituras variantes, citações dos Pais, debates entre Protestantes e Católicos – são discutidos, familiarizando o leitor com alguns dos desafios do secreto campo da crítica textual.

Capítulo 1 (“Os princípios das Escrituras Cristãs”) endereça os motivos pelos quais os livros do Novo Testamento foram escritos, como eles foram recebidos e quando eles foram aceitos como Escritura.

Capítulo 2 (“Os copistas e os Primeiros Escritos Cristãos”) lida com as mudanças do texto feitas pelos escribas, tanto intencionais como não intencionais. Aqui Ehrman mistura informações da crítica textual padrão com suas própria interpretação, uma interpretação que de nenhuma forma é compartilhada por todos os críticos textuais, nem mesmo a maioria deles. Em essência, ele pinta uma figura sem vida da atividade dos escribas6, deixando o descuidado leitor assumir que nós não temos nenhuma chance de recuperar as palavras originais do Novo Testamento.


Capítulo 3 (“Textos do Novo Testamento”) e capítulo 4 (“A Questão das Origens”) nos leva de Erasmo e do primeiro Novo Testamento Grego ao texto de Westcott e Hort. Discutidos são os maiores estudiosos dos séculos dezesseis até dezenove. Este é o material mais objetivo do livro e fornece uma leitura fascinante. Mas mesmo aqui, Ehrman injeta seu próprio ponto de vista por sua seleção de material. Por exemplo, ao discutir o papel que Bengel teve na história da crítica textual (109-112), Ehrman dá a este piedoso conservador alemão alto valor como estudioso: ele era um “extremamente cuidadoso intérprete do texto bíblico” (109); “Bengel estudou tudo intensamente” (111). Ehrman fala sobre as importantes descobertas de Bengel na crítica textual (111-12), mas não menciona que ele foi o primeiro importante estudioso a articular a doutrina da ortodoxia das variantes. Esta é uma omissão curiosa porque, de um lado, Ehrman está bem ciente deste fato, pois na quarta edição de The Text of the New Testament, agora por Bruce Metzger e Bart Ehrman,7 que apareceu alguns meses antes de Misquoting Jesus, a nota dos autores, “Com energia e perseverança característica, [Bengel] procurou todas as edições, manuscritos e antigas traduções disponíveis a ele. Depois de extenso estudo, ele chegou à conclusão que as leituras variantes eram menores em número que poderia ter sido esperado e que elas não ameaçam nenhum artigo da doutrina evangélica.”8 De outro lado, Ehrman menciona J. J. Wettstein, um contemporâneo de Bengel, que, na tenra idade de vinte anos assumiu que estas variantes “podem não ter nenhum efeito na confiabilidade ou integridade das Escrituras,”9 mas que anos depois, após cuidadoso estudo do texto, Wettstein mudou suas visões depois que ele “começou a pensar seriamente sobre suas próprias convicções teológicas.”10 Alguém é tentado a pensar que Ehrman possa ver um paralelo entre ele mesmo e Wettstein: como Wettstein, Ehrman começou como um evangélico quando no colégio, mas mudou suas visões sobre o texto e teologia em seus anos mais maduros.11 Mas o modelo que Wettstein fornece – um sóbrio estudioso que chega a conclusões diferentes – está calmamente ultrapassado.

O que também é curiosamente deixado de fora são as motivações de Tischendorf para seu incansável trabalho de descobrir manuscritos e de publicar uma edição crítica do texto grego com um aparato completo. Tischendorf é reconhecido amplamente como o mais ativo crítico textual de todos os tempos. E o que o motivou foi o desejo de recuperar a forma mais antiga do texto – um texto que ele acreditaria vindicar a ortodoxia cristã contra o ceticismo hegeliano de F. C. Baur e seus seguidores. Nada disto é mencionado em Misquoting Jesus.

Além da seletividade a respeito de estudiosos e suas opiniões, estes quatro capítulos envolvem duas curiosas omissões. Primeiro, há quase nenhuma discussão sobre os vários manuscritos. É quase como se a evidência externa fosse um não-inicializador para Ehrman. Mais, assim como ele ilumina seus leitores leigos sobre a disciplina, o fato de que ele não dá a eles os detalhes sobre quais manuscritos são mais confiáveis, velhos, etc., o permite controlar o fluxo de informações. Repetidamente eu fui frustado em minha leitura do livro porque ele falou de várias leituras sem dar muitas, se alguma, das informações que dão suporte a elas. Mesmo em seu terceiro capítulo – “Textos do Novo Testamento: Edições, Manuscritos, e Diferenças” – há discussão mínima dos manuscritos, e nenhum dos códices individuais. Nas duas páginas que lidam especificamente com os manuscritos, Ehrman fala somente sobre seus números, natureza e variantes.12

Segundo, Ehrman representa exageradamente a qualidade das variantes enquanto sublinha sua quantidade. Ele diz, “Há mais variações entre nossos manuscritos que número de palavras no Novo Testamento.”13 Em outro lugar ele declara que o número de variações é tão alto quanto 400,000.14 Isto é bem verdade, mas por si só é enganoso. Qualquer um que ensine crítica textual do Novo Testamento sabe que este fato é somente parte da figura e que, se deixado balançando diante do leitor sem explicação, é uma visão distorcida. Uma vez que é revelado que a grande maioria destas variantes são inconsequentes – envolvendo diferenças de escrita que sequer podem ser traduzidas, artigos com nomes próprios, mudança na ordem das palavras e coisas parecidas – e que somente uma pequena minoria das variantes alteram o significado do texto, toda a figura começa a ser focada. De fato, somente cerca de 1% das variantes textuais são tanto significativas e viáveis.15 A impressão que Ehrman algumas vezes dá através do livro – e repete em entrevistas16 – é a total incerteza sobre o palavreado original,17 uma visão que é de longe mais radical do que a que ele realmente abraça.18

Nós podemos ilustrar as coisas desta forma. Há aproximadamente 138,000 palavras no Novo Testamento grego. As variantes nos manuscritos, versões e Pais constituem quase três vezes este número. A primeira vista, esta é uma quantidade devastadora. Mas à luz das possibilidades, é na verdade bem trivial. Por exemplo, considere as formas que o grego pode dizer “Jesus ama Paulo”:
1. ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ Παῦλον
2. ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ τὸν Παῦλον
3. ὁ ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ Παῦλον
4. ὁ ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ τὸν Παῦλον
5. Παῦλον ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ
6. τὸν Παῦλον ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ
7. Παῦλον ὁ ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ
8. τὸν Παῦλον ὁ ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ
9. ἀγαπᾷ ᾿Ιησοῦς Παῦλον
10. ἀγαπᾷ ᾿Ιησοῦς τὸν Παῦλον
11. ἀγαπᾷ ὁ ᾿Ιησοῦς Παῦλον
12. ἀγαπᾷ ὁ ᾿Ιησοῦς τὸν Παῦλον
13. ἀγαπᾷ Παῦλον ᾿Ιησοῦς
14. ἀγαπᾷ τὸν Παῦλον ᾿Ιησοῦς
15. ἀγαπᾷ Παῦλον ὁ ᾿Ιησοῦς
16. ἀγαπᾷ τὸν Παῦλον ὁ ᾿Ιησοῦς

Estas variações representam apenas uma pequena fração das possibilidades. Se a sentença usar φιλεῖ ao invés de ἀγαπᾷ, por exemplo, ou se ela começar com uma conjunção tal qual δεv, καιv, ou μέν, as potenciais variações crescerão exponencialmente. Fatore em sinônimos (tais quais κύριος por ᾿Ιησοῦς), diferenças de escrita, e palavras adicionais (tais quais Χριστός, ou ἅγιος com Παῦλος) e a lista de potenciais variantes que não afetam a essência da declaração cresce às centenas. Se uma simples sentença como “Jesus ama Paulo” pode ter tantas variações insignificantes, meros 400000 variantes entre os manuscritos do Novo Testamento parece quase uma quantidade insignificante.19

Mas estas críticas são ninharias mínimas. Não há nada realmente catastrófico nos primeiros quatro capítulos do livro. Pelo contrário, é na introdução que vemos os motivos de Ehrman, e os últimos três capítulos revelam sua agenda. Nestes lugares ele é especialmente provocativo e dado a declarações exageradas e non sequitur. O resto de nossa revisão vai focar neste material.

Bases Evangélicas de Ehrman

Na introdução, Ehrman fala de suas bases evangélicas (três anos na Moody Bible Institute, dois anos na Wheaton College onde ele aprendeu grego pela primeira vez), seguido por um M.Div. e Ph.D. no Seminário de Princeton. Foi em Princeton que Ehrman começou a rejeitar parte de sua formação evangélica, especialmente quando ele lutava com os detalhes do texto do Novo Testamento. Ele nota que o estudo dos manuscritos do Novo Testamento crescentemente criou dúvidas em sua mente: “Eu me mantive voltando para minha pergunta básica: como nos ajudaria dizer que a Bíblia é a inerrante palavra de Deus se de fato não temos as palavras que Deus inerrantemente inspirou, mas somente as palavras copiadas por escribas – algumas vezes corretamente e algumas vezes (muitas vezes!) incorretamente?”20 Esta é uma pergunta excelente. E foi proeminentemente tratado com destaque em Misquoting Jesus, sendo repetido por todo o livro. Infelizmente, Ehrman não gasta muito tempo lutando com ela diretamente.

Enquanto ele estava no programa de mestrado, ele pegou um curso sobre o Evangelho de Marcos do professor Cullen Story. Para seu trabalho de conclusão, ele escreveu sobre o problema de Jesus falando da entrada de Davi no templo “quando Abiatar era o sumo-sacerdote” (Marcos 2:26). A bem conhecida crux é problemática para a inerrância porque, de acordo com 1 Samuel 21, o tempo que Davi entrou no tempo era de fato quando o pai de Abiatar, Ahimeleque, foi sacerdote. Mas Ehrman estava determinado a trabalhar no que parecia ser o significado claro do texto, para salvar a inerrância. Ehrman diz a seus leitores que o comentário do professor Story sobre o tema “o atingiu em cheio. Ele escreveu, ‘Talvez Marcos apenas tenha cometido um erro.’”21 Este foi um momento decisivo na jornada espiritual de Ehrman. Quando ele concluiu que Marcos pode ter errado, “as comportas abriram.”22 Ele começou a questionar a confiabilidade histórica de muitos textos bíblicos, resultando em uma “mudança sísmica” em seu entendimento da Bíblia. “A Bíblia,” nota Ehrman, “começou a parecer para mim como um livro bem humano… Este era um livro humano do início ao fim.”23

O que me chama mais a atenção em tudo isto é como Ehrman amarrou a inerrância com a geral confiabilidade histórica da Bíblia. Foi uma proposição de “ou tudo ou nada” para ele. Ele ainda parece ver as coisas em termos de preto e branco, pois ele conclui seu testemunho com estas palavras: “É uma mudança radical de ler a Bíblia como um esquema inerrante para nossa fé, vida e futuro para vê-la como um livro bem humano… Esta é a mudança no meu próprio pensamento que terminei fazendo, e ao qual agora estou entregue completamente.”24 Parece então não haver meio termo em sua visão do texto. Em resumo, Ehrman parece ter mantido o que eu chamaria de ‘uma visão dominó da doutrina’. Quando uma cai, elas todas caem. Retornaremos a esta matéria em nossa conclusão.

A Corrupção Ortodoxa das Escrituras

O coração do livro são os capítulos 5, 6, e 7. Aqui Ehrman especificamente discute o resultado das descobertas em seu maior trabalho, The Orthodox Corruption of Scripture.25 Seu capítulo de conclusão se aproxima do ponto que ele está direcionando nesta seção: “Seria errado… dizer – como pessoas geralmente fazem – que as mudanças em nosso texto não possuem impacto real no que os textos significam ou nas conclusões teológicas que alguém obtém deles. Temos visto, de fato, que o oposto é o caso.”26

Nós pausamos para observar dois pontos teológicos fundamentais sendo enfatizadas em Misquoting Jesus: primeiro, como mencionamos antes, é irrelevante falar sobre inerrância Bíblica porque não temos mais os documentos originais; segundo, as variantes nos manuscritos mudam a teologia básica do Novo Testamento.

A falácia lógica em negar um Autógrafo inerrante

Apesar de Ehrman não desenvolver realmente este primeiro argumento, ele merece uma resposta. Precisamos começar fazendo uma distinção cuidadosa entre inspiração e inerrância verbal. Inspiração está relacionada ao palavreado da Bíblia, enquanto inerrância está relacionada à verdade da declaração. Evangélicos americanos geralmente acreditam que somente os textos originais são inspirados. Isto não quer dizer, contudo, que cópias não podem ser inerrantes. De fato, declarações que não mantém nenhuma relação com as Escrituras podem ser inerrantes. Se eu disser, “Estou casado e tenho quatro filhos, dois cães e um gato”, é uma declaração inerrante. Não é inspirada, nem tanto relacionada com as Escrituras, mas é verdade. Similarmente, se Paulo diz “nós temos paz” ou “que tenhamos paz” em Romanos 5:1, ambas declarações são verdadeiras (apesar de que cada uma em um sentido diferente), apesar de somente uma é inspirada. Manter esta distinção em mente enquanto considerar as variantes textuais do Novo Testamento deve deixar claro o assunto.

Não importando o que alguém pensa sobre a doutrina da inerrância, o argumento contra ela com base em desconhecidos autógrafos é logicamente falacioso. Isto é assim por duas razões. Primeiro, nós temos o texto do Novo Testamento em algum lugar nos manuscritos. Não há necessidade de conjecturas, exceto talvez em um ou dois lugares.27 Segundo, o texto que temos em qualquer variante viável não é mais problema para a inerrância do que outros problemas onde o texto é seguro. Agora, para ter certeza, há alguns desafios nas variantes textuais para a inerrância. Isto não é negado. Mas há simplesmente maiores peixes a fritar quando se está tratando de pontos controversos que a inerrância tem que encarar. Assim, se emenda conjectural é desnecessária, e se nenhuma variante viável registra mais que um ponto no radar chamado ‘problemas para inerrância’, então não ter os originais é um ponto bem humorado para esta doutrina. Não é um ponto bem humorado para a inspiração verbal, é claro, mas é para a inerrância.28

Doutrinas cardeais afetadas por variantes textuais?

O segundo ponto teológico de Ehrman ocupa o centro do palco em seu livro. Da mesma forma ocupará o resto desta revisão.
Nos capítulos cinco e seis, Ehrman discute várias passagens que envolvem variantes que alegadamente afetam o centro das crenças teológicas. Ele resume suas descobertas no capítulo de conclusão como se segue:

Em alguns exemplos, o próprio significado do texto está em questão, dependendo de como alguém resolve um problema textual: Era Jesus um homem nervoso [Marcos 1:41]? Era ele completamente ignorado na face da morte [Hebreus 2:8-9]? Ele disse a seus discípulos que eles poderiam tomar veneno sem se ferir [Marcos 16:9-20]? Ele livrou uma adúltera da morte com nada mais que um brando aviso [João 7:53-8:11]? É a doutrina da Trindade explicitamente ensinada no Novo Testamento [1 João 5:7-8]? É Jesus realmente chamado de “o único Deus” ali [João 1:18]? O Novo Testamento indica que mesmo o próprio Filho de Deus não pode saber quando o final virá [Mateus 24:36]? As questões continuam, e todas elas estão relacionadas a como alguém resolve as dificuldades na tradição do manuscrito da forma que ele veio a nós.29

É aparente que tal sumário intenciona focar nas maiores passagens problemáticas que Ehrman descobriu. Assim, seguindo o bem-usado princípio rabínico de a maiore ad minus30, ou argumentando do maior para o menor, nós vamos endereçar apenas estes sete textos.

O problema com passagens problemáticas

Três destas passagens tem sido consideradas inautênticas pela maioria dos estudiosos do Novo Testamento – incluindo muitos estudiosos do Novo Testamento evangélicos – por bem mais que um século (Marcos 16:9-20; João 7:53-8:11; e 1 João 5:7-8).31 Ainda assim Ehrman escreve como se a amputação de tais textos mexeria com nossas convicções teológicas. Isto dificilmente é o caso. (Nós vamos suspender a discussão de uma destas passagens, 1 João 5:7-8, até o final.)

Os últimos doze versos de Marcos e o Pericope Adulterae

Ao mesmo tempo, Ehrman implícitamente levanta uma questão válida. Uma olhada em virtualmente cada Bíblia Inglesa hoje revela que o final longo de Marcos e o pericope adulterae são encontrados em seus lugares normais. Assim, não somente a KJV e NKJV possuem estas passagens (como seria de se esperar), mas também a ASV, RSV, NRSV, NIV, TNIV, NASB, ESV, TEV, NAB, NJB, e NET. Ainda que os estudiosos que produzem estas traduções, de longe, não assinam a autenticidade de tais textos. As razões são bastante simples: eles não aparecem nos mais antigos e melhores manuscritos e sua evidência interna é decididamente contra sua autenticidade. Porque eles ainda estão nestas Bíblias?

A resposta a esta questão varia. Para alguns, eles parecem estar na Bíblia por causa de uma tradição de timidez. Há aparentemente boas razões para isto. A análise racional é tipicamente que ninguém comprará uma versão particular se ela não trouxer estas famosas passagens. E se eles não compram a versão, ela não pode influenciar cristãos. Algumas traduções incluiram o pericope adulterae por causa do mandato das autoridades papais declarando a passagem ser Escritura. A NEB/REB a inclui no final dos Evangelhos, ao invés de seu lugar tradicional. A TNIV e NET possuem ambas passagens em fontes pequenas entre chaves. Caixa baixa é claro dificulta a leitura do púlpito. A NET adiciona uma longa discussão sobre a inautenticidade dos versos. A maioria das traduções mencionam que estes pericopae não são encontrados nos manuscritos mais antigos, mas tal comentário é raramente notado por leitores hoje. Como sabemos disto? Das ondas de choque produzidas pelo livro de Ehrman, nas entrevistas na radio, TV, e jornal com Ehrman, a história da mulher pega em adultério é quase sempre o primeiro texto trazido como inautêntico, e a menção é calculada para alarmar a audiência.

Deixar o público saber dos segredos de estudiosos sobre o texto bíblico não é novidade. Edward Gibbon, em seu bestseller de seis volumes, The Decline and Fall of the Roman Empire, notou que o Comma Johanneum, ou fórmula Trinitária de 1 João 5:7-8 não era autêntica.32 Isto escandalizou o público britânico do século dezoito, pois sua única Bíblia era a Versão Autorizada, que continha a fórmula. “Outros fizeram [isto] antes dele, mas somente em círculos acadêmicos e de estudos. Gibbon o fez diante do público geral, em linguagem destinada a ofensa.”33 Ainda no tempo que a Versão Revisada apareceu em 1885, nenhum traço da Comma foi encontrada nela. Hoje o texto não é impresso em traduções modernas, e ela dificilmente levantará uma sobrancelha.

Ehrman seguiu no trem de Gibbon ao expor ao público a inautenticidade de Marcos 16:9-20 e João 7:53-8:11. O problema aqui, no entanto, é um pouco diferente. Forte bagagem emocional é especialmente ligada ao último texto. Por anos, foi minha passagem favorita que não estava na Bíblia. Eu até mesmo pregaria sobre ela como uma verdadeira narrativa histórica, mesmo depois de rejeitar sua literária/canônica autenticidade. E nós todos conhecemos pregadores que não podem simplesmente desistir dela, mesmo apesar deles também terem dúvidas sobre ela. Mas há dois problemas com esta abordagem. Primeiro, em termos de popularidade entre estes dois textos, João 8 é esmagadoramente favorito, ainda que suas credenciais externas são significantemente piores que as de Marcos 16. O mesmo pregador que declara a passagem de Marcos inautêntica exalta as virtudes de João 8. Esta inconsistência é intimidadora. Algo está errado em nossos seminários teológicos quando se permite que os sentimentos de alguém sejam os árbitros dos problemas textuais. Segundo, o pericope adulterae é provavelmente sequer historicamente verdadeiro. Foi provavelmente uma história unida de dois relatos diferentes.34 Assim, a desculpa que alguém pode proclamá-lo porque a história realmente aconteceu não é aparentemente válida.

Em retrospecto, mantendo estas duas pericopae em nossas Bíblia ao invés de relegá-los às notas de rodapé parece ter sido uma bomba só esperando para explodir. Tudo que Ehrman fez foi ascender o pavio. Uma lição que nós devemos aprender de Misquoting Jesus é que aqueles no ministério precisam diminuir a distância entre a igreja e a academia. Nós temos que educar os fiéis. Ao invés de isolar os leigos da crítica erudita, nós precisamos protegê-los. Eles precisam de estar preparados para a barragem, porque ela está vindo.35 O silenciamento intencional da igreja para o bem de preencher mais bancos irá finalmente direcionar para a derrota de Cristo. Ehrman deve ser agradecido por nos dar um alerta para despertar.

Isto não é para dizer que tudo que Ehrman escreveu neste livro é deste tipo. Mas estas três passagens são. Novamente, nós precisamos enfatizar: estes textos não mudam nenhuma doutrina fundamental, nenhuma doutrina central. Estudiosos evangélicos os abandonaram há mais de um século sem incomodar um jota de ortodoxia.

Os restantes quatro problemas textuais, contudo, contam uma história diferente. Ehrman apela ou para uma interpretação ou para evidência que a maioria dos estudiosos consideram, no máximo, duvidosa.

Hebreus 2:8-9

Traduções são grosseiramente unidas em como elas tratam Hebreus 2:9b. O da NET é representativo: “pela graça de Deus ele experimentou a morte da parte de todos.” Ehrman sugere que “pela graça de Deus”—χάριτι θεου' – é uma leitura secundária. Pelo contrário, ele argumenta que “apartado de Deus,” ou χωρὶς θεοῦ, é o que o autor escreveu originalmente. Há no entanto três manuscritos que possuem esta leitura, todos do século dez ou posterior. Codex 1739, contudo, é um deles, e é uma cópia de um manuscrito mais antigo e decente. χωρὶς θεοῦ também é discutido em vários pais, um manuscrito da Vulgata, e algumas cópias da Peshitta.36 Muitos estudiosos dispensariam tal evidência insignificante sem muito alvoroço. Se eles se derem ao trabalho de tratar a evidência interna de alguma forma, é porque mesmo que ele tenha um pobre pedigree, χωρὶς θεοῦ é a leitura mais difícil e assim deve requerir alguma explicação, já que escribas tendem a deixar o palavreado do texto mais simples. Da mesma forma, algo precisa explicar as várias citações patrísticas. Mas se uma leitura é uma mudança não intencional, o canon da leitura mais difícil é inválida. A leitura mais difícil seria uma leitura sem sentido, algo que não pode ser criado de propósito. Apesar de χωρίς ser aparentemente a leitura mais difícil,37 ela pode ser explicada como uma alteração acidental. É mais provável devido tanto a um ‘lapso dos escribas’38 onde um copista inatento confundiu χωρίς por χάριτι, ou ‘uma interpretação marginal’ onde um escriva estava pensando em 1 Coríntios 15:27 onde, como Hebreus 2:8, cita o Salmo 8:6 em referência à sujeição de Deus de todas as coisas a Cristo.39

Sem entrar nos detalhes da defesa de Ehrman de χωρίς, nós simplesmente desejamos notar quatro coisas. Primeiro, ele destaca demais seu caso por assumir que sua visão é certamente correta. Depois de três páginas de discussão deste texto em seu Orthodox Corruption of Scripture, ele pronuncia o veredito: “A evidência externa porém é que Hebreus 2:9 deve originalmente dizer que Jesus morreu ‘apartado de Deus.’”40 Ele ainda está vendo as coisas em termos de preto e branco. Segundo, os pontos de vista crítico-textuais de Ehrman estão ficando perigosamente próximos de um rigoroso ecleticismo.41 A informação externa parece significar menos e menos para ele já que ele parece querer ver uma corrupção teológica no texto. Terceiro, mesmo apesar dele ter certeza em seu veredito, seu mentor, Bruce Metzger, não está. Um ano após Orthodox Corruption ser publicado, a segunda edição da Textual Commentary de Metzger apareceu. O comitê da UBS ainda dá a mão para a leitura χάριτι θεοῦ, mas desta vez elevando sua convicção para uma categoria ‘A’.42 Finalmente, mesmo assumindo que χωρὶς θεοῦ é a leitura correta aqui, Ehrman não revelou um caso que esta variante “afeta a interpretação de um livro inteiro do Novo Testamento.”43 Ele argumenta que “a leitura menos atestada é também mais consistente com a teologia de Hebreus.”44 Ele adiciona que o autor “repetidamente enfatiza que Jesus morreu uma completamente humana e humilhante morte, totalmente removido do reino de onde ele veio, o reino de Deus. Seu sacrifício, como resultado, foi aceito como a perfeita expiação pelo pecado. Além do mais, Deus não interviu em sua paixão e não fez nada para minimizar sua dor. Jesus morreu ‘apartado de Deus.’”45 Se esta é a visão de Jesus através de Hebreus, como a variante que Ehrman adota em 2:9 muda este retrato? Em seu Orthodox Corruption, Ehrman diz que “Hebreus 5:7 fala de Jesus, na face da morte, implorando a Deus com grandes clamores e lágrimas.”46 Mas que este texto esteja falando de Jesus ‘na face da morte’ não é tão claro (nem Ehrman defende esta visão). Depois ele contrói sobre isto em seu capítulo final de Misquoting Jesus – mesmo que ele nunca estabeleceu o ponto – quando ele pergunta, “Foi [Jesus] completamente abandonado na face da morte?”47 Ele vai ainda mais longe em Orthodox Corruption. Eu estou perdido em entender como Ehrman pode clamar que o autor de Hebreus parece conhecer “de tradições de paixão onde Jesus estava aterrorizado na face da morte”48 a menos que se conecte estes três pontos, todos os quais são duvidosos – a saber, lendo χωρὶς θεοῦ in Hebreus 2:9, vendo 5:7 como se referindo principalmente à morte de Cristo e que suas orações eram principalmente para si mesmo,49 e então a respeito dos grandes clamores ali para refletir seus estado de aterrorizado. Ehrman parece estar contruindo seu caso sobre hipóteses ligadas, que é uma pobre fundamentação no máximo.

Marco 1:41

No primeiro capítulo do Evangelho de Marcos, um leproso se aproxima de Jesus e o pede para o curar: “Se você desejar, você pode me fazer limpo” (Marcos 1:40). A resposta de Jesus é gravada no texto de Nestle-Aland como segue: καὶ… σπλαγχνισθει…Vς ἐκτείνας τὴν χεῖρα αὐτοῦ ἥψατο καὶ… λέγει αὐτῳÇ· θέλω, καθαρίσθητι (“e movido por compaixão, ele estendeu [sua] mão e o tocou, dizendo, ‘Eu quero, seja limpo’”). Ao invés de σπλαγχνισθει…vς (‘movido por compaixão’) algumas testemunhas ocidentais50 lêem ὀργισθείς (‘ficando nervoso’). A motivação de Jesus para esta cura aparentemente está na balança. Mesmo que a UBS4 dá a σπλαγχνισθει…vς uma classe B, um crescente número de exegetas estão começando a argumentar pela autenticidade de ὀργισθείς. Em um Festschrift para Gerald Hawthorne em 2003, Ehrman fez um impressionante argumento pela sua autenticidade.51 Quatro anos antes, uma dissertação de doutorado de Mark Proctor foi escrito em defesa de ojrgisqeivV.52 A leitura também fez seu caminho na TNIV, e é seriamente cogitada na NET. Nós não tomamos o tempo para considerar os argumentos aqui. Neste estágio estou inclinado a pensar que é mais provavelmente original. De qualquer forma, para o bem do argumento, assumindo que a leitura ‘nervosa’ é autêntica, o que isto nos diz de Jesus que não sabíamos antes?

Ehrman sugere que se Marcos originalmente escreveu sobre a raiva de Jesus nesta passagem, ela muda nossa figura de Jesus em Marcos significantemente. De fato, este problema textual é o maior exemplo no capítulo 5 (“Originais que Importam”), um capítulo cuja tese central é que algumas variantes “afetam a interpretação de um livro inteiro do Novo Testamento.”53 Esta tese é superestimada em geral, e particularmente no Evangelho de Marcos. Em Marcos 3:5 Jesus é dito estar nervoso – palavras que estão indisputavelmente no texto original de Marcos. E em Marcos 10:14 ele está indignado com seus discípulos.

Ehrman, é claro, sabe disto. De fato, ele argumenta implicitamente no Festschrift de Hawthorne que a raiva de Jesus em Marcos 1:41 se encaixa perfeitamente na figura que Marcos em outro lugar pinta de Jesus. Ele diz, por exemplo, “Marcos descreveu Jesus como nervoso, e pelo menos nesta instância, os escribas ficaram ofendidos. Isto não vem como surpresa; fora de um completo entendimento do retrato de Marcos, a raiva de Jesus é difícil de entender.”54 Ehrman até mesmo lança o princípio fundamental que ele vê através de Marcos: “Jesus fica nervoso quando qualquer um questiona sua autoridade ou habilidade de curar – ou seu desejo de curar.”55 Agora, para o bem do argumento, vamos assumir que não somente a reconstrução textual de Ehrman é correta, mas sua interpretação de ὀργισθείς em Marcos 1:41 está correta – não somente naquela passagem mas na totalidade da apresentação de Jesus por Marcos.56 Se assim, como então um nervoso Jesus em 1:41 “afeta a interpretação de um livro inteiro do Novo Testamento”? De acordo com a própria interpretação de Ehrman, ὀργισθείς somente aumenta a força da imagem que nós vemos de Jesus neste Evangelho por fazê-lo totalmente consistente com outros textos que falam de sua raiva. Se esta leitura é a Exposição A no quinto capítulo de Ehrman, ela seriamente produz efeitos negativos, pois ela faz pouco ou nada para alterar o geral retrato de Jesus que Marcos pinta. Aqui está outro exemplo, então, no qual as conclusões teológicas de Ehrman são mais provocativas do que a evidência sugere.

Mateus 24:36

No Discurso do Monte das Oliveiras, Jesus fala sobre o tempo de seu próprio retorno. De forma destacável, ele confessa que ele não conhece exatamente quando isto será. Em traduções mais modernas de Mateus 24:36, o texto basicamente diz, “Mas quanto ao dia e a hora ninguém o sabe – nem os anjos do céu, nem o Filho – exceto o Pai sozinho.” Contudo, muitos manuscritos, incluíndo alguns antigos e importantes, faltam οὐδὲ ὁ υἱός. Se “nem o Filho” é autêntico ou não é disputado.57 No entanto, Ehrman novamente fala de forma confiante sobre o tema.58 A importância desta variante textual para a tese de Misquoting Jesus é difícil de avaliar, contudo. Ehrman alude a Mateus 24:36 em sua conclusão, aparentemente para sublinhar seu argumento que variantes textuais alteram doutrinas básicas.59 Sua discussão inicial desta passagem certamente deixa esta impressão também.60 Mas se ele não quer dizer isto, então ele está escrevendo mais provocativamente que é necessário, enganando seus leitores. E se ele quer dizer isto, ele superestimou seu caso.

O que não é disputado são as palavras no paralelo em Marcos 13:32 – “Mas quanto àquele dia ou hora ninguém sabe – nem os anjos no céu, nem o Filho – exceto o Pai.”61 Assim, não pode haver dúvidas que Jesus falou de sua própria ignorância profética no Discurso do Monte das Oliveiras. Consequentemente, qual ponto doutrinal está realmente em questão aqui? Alguém não pode simplesmente manter que o palavreado em Mateus 24:36 muda as convicções teológicas básicas de alguém desde que o mesmo sentimento é encontrado em Marcos. Ehrman não menciona Marcos 13:32 nenhuma vez em Misquoting Jesus, apesar de que ele explicitamente discute Mateus 24:36 pelo menos seis vezes, aparentemente para o efeito de que esta leitura impactua nosso entendimento fundamental de Jesus.62 Mas o palavreado muda nosso entendimento básico da visão de Jesus de Mateus? Mesmo isto não é o caso. Mesmo que Mateus 24:36 originalmente faltasse “nem o Filho”, o fato de que o Pai sozinho (εἰ μὴ ὁ πατὴρ μόνος) tem este conhecimento certamente implica na ignorância do Filho (e o “sozinho” é somente encontrado em Mateus 24:36, não em Marcos 13:32). Novamente, este detalhe importante não é mencionado em Misquoting Jesus, nem mesmo em Orthodox Corruption of Scripture.

João 1:18

Em João 1:18b, Ehrman argumenta que “Filho” ao invés de “Deus” é a leitura autêntica. Mas ele vai além da evidência ao declarar que se “Deus” fosse o original o verso estaria chamando Jeus de “o único Deus”. O problema com tal tradução, nas palavras de Ehrman, é que “o termo único Deus deve se referir ao próprio Deus o Pai – de outra forma ele não é único. Mas se o termo refere ao Pai, como ele pode ser usado com o Filho?”63 O argumento gramatical sofisticado de Ehrman para isto não é encontrado em Misquoting Jesus, mas está detalhado em seu Orthodox Corruption of Scripture:
O mais comum recurso para aqueles que optam por [ὁ] μονογενὴς θεός, mas que reconhecem que sua tradução de “o único Deus” é virtualmente impossível em um contexto Joanino, é entender o adjetivo substantivamente, e construir a segunda parte de João 1:18 inteira como uma série de aposições, assim que ao invés de ler “o único Deus que está no seio do Pai”, o texto seria traduzido por “o único, que também é Deus, que está no seio do Pai”. Há algo atrativo sobre a proposta. Ela explica o que o texto poderia ter significado a um leitor Joanino e desse modo permite o texto de testemunhas textuais geralmente superiores. Apesar disto, a solução é inteiramente implausível.
…. É verdade que μονογενής pode em outro lugar ser usado como substantivo (= o único, como no versículo 14); todos os adjetivos podem. Mas os proponentes desta visão falharam em considerar que ele nunca é usado desta forma quando é imediatamente seguido por um nome que concorda com ele em gênero, número e caso. De fato alguém aqui deve pesar o ponto sintático:
quando um adjetivo alguma vez é usado substantivamente quando ele imediatamente precede um nome de mesma inflexão? Nenhum leitor grego construiria tal construção como uma linha de substantivos, e nenhum escritor grego criaria tal inconsistência. No meu melhor conhecimento, ninguém citou nada análogo fora desta passagem.
O resultado é que tomando o termo μονογενὴς θεός como dois substantivos estando em aposição faz uma sintaxe quase impossível, enquanto que construindo-os como uma relação adjetivo-substantivo cria um sentido impossível.
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O argumento de Ehrman assume que μονογενής não pode normalmente ser substantivo, mesmo que ele seja usado no versículo 14 – como ele admite. Há muitas críticas que poderiam ser feitas deste argumento, mas o maior entre eles é este: sua consideração absoluta da situação gramatical é incorreta. Seu desafio (“ninguém citou nada análogo fora desta passagem”) é adotada aqui. Há, de fato, exemplos onde um adjetivo que é justaposto a um nome com as mesmas concordâncias gramaticais não está funcionando adjetivamente mas substantivamente.65

João 6:70: καὶ ἐξ ὑμῶν εἷς διάβολός ἐστιν. Aqui διάβολος está funcionando como um nome, mesmo que ele seja um adjetivo. E εἷς, o adjetivo pronominal, é o sujeito relacionado a διάβολος, o predicado nominativo.
Romanos 1:30: καταλάλους θεοστυγεῖς ὑβριστὰς ὑπερηφάνους ἀλαζόνας, ἐφευρετὰς κακῶν, γονεῦσιν ἀπειθεῖς (“caluniadores, odiadores de Deus, insolentes, arrogantes, orgulhosos, inventores de mal, desobedientes aos pais”—verdadeiros adjetivos em itálicos)
Gálatas 3:9: τῷ πιστῷ ᾿Αβραάμ (“com Abraão, o fiel” como a NASB o tem; NRSV tem “Abraão que creu”; NIV tem “Abraão, o homem da fé”). Indepentende do jeito que é traduzido, aqui um adjetivo é cunhado entre um artigo e um nome que está funcionando substantivamente, em aposição ao nome.
Efésios 2:20: ὄντος ἀκρογωνιαίου αὐτοῦ Χριστοῦ ᾿Ιησοῦ (“Cristo Jesus mesmo sendo a principal pedra angular”): apesar de ἀκρογωνιαῖος ser um adjetivo, ele parece estar funcionando substantivamente aqui (apesar de ele possivelmente ser um adjetivo predicado, eu suponho, com um predicado genitivo). A LSJ lista este como um adjetivo; LN lista como um nome. Ele pode assim ser similar a μονογενής em seu desenvolvimento.
1 Timóteo 1:9: δικαίῳ νόμος οὐ κεῖται, ἀνόμοις δὲ καὶ ἀνυποτάκτοις, ἀσεβέσι καὶ ἁμαρτωλοῖς, ἀνοσίοις καὶ βεβήλοις, πατρολῴαις καὶ μητρολῴαις, ἀνδροφόνοις (lei não é feita para um homem justo, mas para aqueles que não possuem lei e rebeldes, para os sem Deus e pecadores, para os impuros e profanos, para aqueles que matam seus pais ou mães, para assassinos [adjetivos e itálico]): este texto claramente mostra que Ehrman superestimou seu caso, pois βεβήλοις não modifica πατρολῴαις mas ao contrário é substantivado, como os cinco termos descritivos anteriores.
1 Pedro 1:1: ἐκλεκτοῖς παρεπιδήμοις (“os eleitos, estrangeiros”): Este texto é interpretado, mas nosso ponto é simplesmente que ele poderia encaixar igualmente no esquema de
John 1:18. Ele então se qualifica para textos dos quais Ehrman diz “ninguém citou nada análogo fora desta passagem.”
2 Pedro 2:5: ἐφείσατο ἀλλὰ ὄγδοον Νῶε δικαιοσύνης κήρυκα (“não poupou [o mundo], mas [preservou] um oitavo, Noé, um pregador de justiça”). O adjetivo ‘oitavo’ fica em aposição a Noé; de outra forma, se ele modificasse Noé, a força seria ‘um oitavo Noé’ como se houvessem outros sete Noés!
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Na luz destes exemplos (que são no entanto poucos daqueles encontrados no Novo Testamento), nós podemos assim responder diretamente a questão que Ehrman levanta: “quando um adjetivo alguma vez é usado substantivamente quando ele imediatamente precede um nome de mesma inflexão?” Seu destaque que “Nenhum leitor grego iria construir tal construção como uma linha de substantivos, e nenhum escritor grego iria criar tal inconsistência” não é simplesmente gerada a partir de evidência. E nós temos somente olhado para uma amostra do Novo Testamento. Se os autores do Novo Testamento podem criar tais expressões, em seu argumento interno contra a leitura μονογενὴς θεός perde considerável peso.

Agora se torna uma questão de perguntar se há suficientes evidências contextuais que μονογενής está de fato funcionando substantivamente. Ehrman já proveu de ambos: (1) em João, é bem impensável que a Palavra se tornasse o único Deus em 1:18 (no qual ele sozinho, e não o Pai, é clamado ter status divino) somente para ter aquele status removido repetidamente através de todo o Evangelho. Assim, assumindo que μονογενὴς θεός é autêntico, estamos de fato quase direcionados para o mesmo sentido que Ehrman considera como gramaticalmente implausível mas contextualmente necessário: “o único, ele mesmo sendo Deus …” (2) que μονογενής já é usado no versículo 14 como um substantivo67 se torna o mais forte argumento contextual para ver sua função substantivada repetida quatro versos depois. Imediatamente depois que Ehrman admite que este adjetivo pode ser usado substantivamente e assim é usado no versículo 14, ele faz seu argumento gramatical com a intenção de abandonar as luvas ou para fechar a tampa do caixão (escolha seu cliché) na força da conexão com o versículo 14. Mas se o argumento gramatical não o corta, então o uso substantivado de μονογενής no versículo 14 deveria ficar como uma importante dica contextual. De fato, à luz do já gasto uso no grego bíblico, nós deveríamos quase esperar que μονογενής fosse usado substantivamente com a implicação de filiação em 1:18.

Agora, nossa única preocupação aqui é disputar com o que μονογενὴς θεός significaria se ele fosse o original, ao invés de argumentar por sua autenticidade, parece haver suficiente evidência para demonstrar uma força tal qual “o único, ele mesmo Deus” como uma interpretação cabível para esta leitura. Tanto a interna quanto a externa evidência estão do seu lado; a única coisa segurando tal variante é a interpretação que ela é uma leitura modalística.68 Mas as bases para isto são uma suposição gramatical que temos demonstrado não ter peso. Em conclusão, tanto μονογενὴς υἱός e μονογενὴς θεός encaixam confortavelmente na ortodoxia; nenhuma mudança teológica sísmica ocorre se alguém pegar uma leitura ao invés da outra. Apesar de algumas traduções modernas serem persuadidas pelo argumento de Ehrman aqui (tal qual a HCSB), o argumento dificilmente não possui pontos fracos. Quando cada variante é examinada com cuidado, ambas são vistas dentro do reino do ensino ortodoxo.

Suficientemente é dito que se “Deus” é autêntico aqui, é dificilmente necessário traduzir a frase como “o único Deus”, apesar de que isto poderia implicar que Jesus sozinho é Deus. Pelo contrário, como a NET o traduz (veja também a NIV e NRSV), João 1:18 diz, “Ninguém jamais viu a Deus. O Único, Ele mesmo Deus, que está em mais próxima comunhão com o Pai, fez Deus conhecido.”

Em outras palavras, a idéia de que as variantes nos manuscritos do Novo Testamento alteram a teologia do Novo Testamento é superestimado ao máximo.69 Infelizmente, um estudioso tão cuidadoso como Ehrman é, seu tratamento de maiores mudanças teológicas no texto do Novo Testamento tendem a cair em uma de duas críticas: Ou suas decisões textuais são erradas, ou sua interpretação é errada. Estas críticas foram feitas de seu trabalho anterior, Orthodox Corruption of Scripture, que Misquoting Jesus foi extensamente baseado. Por exemplo, Gordon Fee disse deste trabalho que “infelizmente, Ehrman muito frequentemente transforma meras possibilidades em probabilidades, e probabilidade em certeza, onde outras razões igualmente viáveis para corrupção existem.”70 Ainda, as conclusões que Ehrman revela em Orthodox Corruption of Scripture ainda são oferecidas em Misquoting Jesus sem o reconhecimento de alguns das severas críticas de seu trabalho a primeira evasiva.71 Para um livro que tem como alvo uma audiência leiga, alguém poderia pensar que ele iria querer ter sua discussão um pouco mais detalhada, especialmente com todo o peso teológico que ele diz estar em jogo. Alguém quase tem a impressão que ele está encorajando os fracos na fé na comunidade cristã a ter pânico por informações as quais eles simplesmente não estão preparados para encarar. Tempo e tempo novamente no livro, declarações altamente carregadas são reveladas para que as pessoas não treinadas simplesmente não possam filtrar. E aquela abordagem parece mais uma mentalidade alarmista que uma maduro, meste e professor é capaz de oferecer. A respeito da evidência, é suficiente dizer que variantes textuais significantes que alteram as doutrinas centrais do Novo Testamento não foram ainda produzidas.

Aparentemente Ehrman ainda pensa que elas foram. Quando discute as visões de Wettstein do texto do Novo Testamento, Ehrman nota que “Wettstein começou a pensar seriamente sobre suas próprias convicções teológicas, e se sincronizou ao problema que o Novo Testamento raramente, se alguma vez, chama Jesus de Deus de fato.”72 Destacadamente, Ehrman parece representar esta conclusão não somente como a de Wettstein, mas sua própria, também. Ao ponto que Wettstein estava se movendo para o moderno texto crítico e se afastando do TR, seus argumentos contra a deidade de Cristo eram infundados porque a deidade de Cristo é de fato mais claramente vista no texto crítico grego que na TR.73 Apesar de Ehrman não discutir a maioria das passagens que ele acha espúrias, ele o faz em Orthodox Corruption of Scripture (especialmente 264-73). Mas a discussão não é realmente substanciada e envolve contradições internas. Em resumo, ele não elabora seu caso. A deidade de Cristo é indiscutível por qualquer variante viável.

1 João 5:7-8

Finalmente, a respeito de 1 João 5:7-8, virtualmente nenhuma tradução moderna da Bíblia inclui a “Fórmula Trinitária”, já que estudiosos por séculos o reconheceram como adicionado posteriormente. Somente poucos manuscritos muito tardios possuem os versos. Alguém perguntaria porque esta passagem é discutida no livro de Ehrman. A única razão parece ser motivar dúvidas. A passagem criou seus caminhos em nossas Bíblias através de pressões políticas, aparecendo pela primeira vez em 1522, mesmo apesar de que estudiosos ali e agora sabiam que ela não era autêntica. A igreja primitiva não conhece este texto, e ainda o Concílio de Constantinopla em 381 D.C. explicitamente afirmou a Trindade! Como eles poderiam fazer isto sem o benefício de um texto que não chegaria ao Novo Testamento Grego por outro milênio? A declaração de Constantinopla não foi escrita em um vácuo: a igreja primitiva colocou em uma fórmula teológica o que eles receberam do Novo Testamento.

Uma distinção deve ser feita aqui: só porque um verso particular não afirma uma doutrina amada não significa que aquela doutrina não pode ser encontrada no Novo Testamento. Neste caso, qualquer um com um entendimento dos saudáveis debates patríticos sobre a Divindade sabe que a igreja primitiva chegou ao seu entendimento por um exame da informação no Novo Testamento. A fórmula Trinitária encontrada em manuscritos tardios de 1 João 5:7 somente resumem o que eles descobriram; ele não informou suas declarações.

Conclusão

Em resumo, o último livro de Ehrman não desaponta na escala provocativa. Mas ele vem destituído de genuína substância sobre sua contenda primária. Eu peço por sua indulgência por eu refletir em dois pontos pastorais aqui.

Primeiro é meu apelo para todos os estudiosos bíblicos para tomar seriamente sua responsabilidade em cuidar do povo de Deus. Estudiosos carregam um dever sagrado de não alarmar leitores leigos em pontos que eles possuem pouco entendimento. De fato, mesmo professores agnósticos carregam esta responsabilidade. Infelizmente, o leigo médio irá terminar Misquoting Jesus com mais dúvidas sobre o palavreado e ensino do Novo Testamento do que qualquer crítico textual jamais ofereceria. Um bom professor não se contém em dizer a seus estudantes o que é o quê, mas ele também sabe como empacotar o material de forma que eles não deixem a emoção ficar no caminho da razão. A ironia é que Misquoting Jesus é supostamente para ser sobre razão e evidência, mas ele tem criado tanto pânico e alarme quanto O Código Da Vinci. É este realmente o efeito pedagógico que Ehrman estava buscando? Eu tenho que assumir que ele sabia que tipo de reação ele iria receber deste livro, pois ele não muda tanto a impressão em suas entrevistas. Sendo provocativo, mesmo correndo o risco de não ser compreendido, parece ser mais importante para ele que ser honesto mesmo correndo o risco de ser chato. Mas um bom professor não cria fracos na fé.74

Segundo, o que eu digo para meus estudantes todo ano é que é imperativo que eles persigam a verdade ao invés de proteger suas pressuposições. E eles precisam ter uma sistemática doutrinária que distingue crenças centrais de periféricas. Quando eles colocam mais doutrinas periféricas tais quais inerrância e inspiração verbal no centro, então quando a crença nestas doutrinas começam a se desgastar, ela cria um efeito dominó: Uma cai, todas caem. Parece-me que algo assim pode ter acontecido com Bart Ehrman. Seu testemunho em Misquoting Jesus discutiu inerrância como o primeiro motor em seus estudos. Mas quando um comentário superficial de um de seus professores conservadores em Princeton foi rabiscado em um trabalho de conclusão, ao efeito de que talvez a Bíblia não fosse inerrante, a fé de Ehrman começou a desmoronar. Um dominó se chocou com outro até que finalmente ele se tornou ‘um agnóstico bem feliz’. Eu posso estar errado sobre a própria jornada espiritual de Ehrman, mas eu tenho conhecido também muitos estudantes que foram para aquela direção. A ironia é que aqueles que concentram suas investigações críticas do texto da Bíblia com pressuposições bibliológicas sempre falam de uma ‘corda escorregadia’ na qual todas as convicções teológicas estão amarradas à inerrância. Sua visão é que se a inerrância vai, tudo mais começa a se desgastar. Eu diria ao contrário que se inerrância é elevada ao status de doutrina primária, é quando alguém se encontra em uma corda escorregadia. Mas se um estudante vê doutrinas como círculos concêntricos, com as doutrinas cardeais ocupando o centro, então se as doutrinas mais periféricas são desafiadas, isto não tem um impacto significante no centro. Em outras palavras, a comunidade evangélica continuará a produzir estudiosos liberais até nós aprendermos a definir nossos compromissos de fé um pouco mais, até aprendermos a ver Cristo como o centro de nossas vidas e as Escrituras como aquilo que aponta para ele. Se nosso ponto de partida é abraçar verdades proposicionais sobre a natureza da escritura ao invés de pessoalmente abraçar Jesus Cristo como nosso Senhor e Rei, nós estaremos naquela corda escorregadia, e levaremos várias pessoas para baixo conosco.

Eu me aflijo pelo o que aconteceu a um conhecido meu, um homem que conheci e admirei – e continuo a admirar – por mais de um quarto de século. Não me dá alegria de elaborar esta revisão. Mas de onde estou sentado, parece que a mentalidade preto e branco de Bart como um fundamentalista foi dificilmente afetada já que ele trabalhou arduamente através dos anos e provas da vida e estudo, mesmo quando ele surgiu no outro lado do espectro teológico. Ele ainda vê as coisas sem suficiente detalhamento, ele superestima seu caso, e eles está entrincheirado na segurança que sua própria visão está correta. Bart Ehrman é um dos mais brilhantes e criativos críticos textuais que eu jamais conheci, e ainda suas bases são tão fortes que, algumas vezes, ele nem mesmo pode confirmá-las.75 Justamente meses antes de Misquoting Jesus aparecer, a quarta edição do Text of the New Testament de Metzger foi publicado. As primeiras três edições foram escritas somente por Metzger e tinham o título de O Texto do Novo Testamento: Sua Transmissão, Corrupção e Restauração. A quarta edição, agora em co-autoria com Ehrman, faz tal título parecer quase falso. O leitor de Misquoting Jesus pode ser tentado a pensar que o subtítulo da quarta edição de Metzger deveria ter sido chamada simplesmente Sua Transmissão e Corrupção.76
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1 Agradecimentos são dados a Darrell L. Bock, Buist M. Fanning, Michael W. Holmes, W. Hall Harris, e William F. Warren por verificar um esboço preliminar deste artigo e oferecer sua opinião.
2 San Francisco: HarperSanFrancisco, 2005.
3 Neely Tucker, “The Book of Bart: In the Bestseller ‘Misquoting Jesus,’ Agnostic Author Bart Ehrman Picks Apart the Gospels That Made a Disbeliever Out of Him,” Washington Post, March 5, 2006. Acessado em http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2006/03/04/AR2006030401369.html.
4 Tucker, “The Book of Bart.”
5 Misquoting, 15.
6 Veja especialmente 59-60.
7 Bruce M. Metzger e Bart D. Ehrman, The Text of the New Testament: Its Transmission, Corruption, and Restoration (Oxford: OUP, 2005).
8 Metzger-Ehrman, Text, 158 (italics added). Isto aparece em direta contradição com a declaração de Ehrman em sua conclusão (207), citado acima.
9 Citação de Ehrman, Misquoting, 112.
10 Ibid., 114.
11 Veja Misquoting, 1-15, onde Ehrman relata sua própria jornada espiritual.
12 No capítulo 5, “Originais que Importam”, Ehrman discute o método da crítica textual. Aqui ele devota cerca de três páginas à evidência externa (128-31), mas não menciona nenhum manuscrito individual.
13 Misquoting, 90. Esta é uma de suas declarações favoritas, pois ela aparece em suas entrevistas, tanto impressa e na rádio.
14 Misquoting, 89.
15 Para uma discussão da natureza das variantes textuais, veja J. Ed Komoszewski, M. James Sawyer, Daniel B. Wallace, Reinventing Jesus: What The Da Vinci Code and Other Novel Speculations Don’t Tell You (Grand Rapids: Kregel, May 2006). O livro é lançado em Junho de 2006. A seção que enderaça a crítica textual, compreendida de cinco capítulos, é chamada “Politically Corrupt? The Tainting of Ancient New Testament Texts.”
16 “Quando eu falo de centena e milhares de diferenças, é verdade que um monte são insignificantes. Mas também é verdade que um monte são altamente significantes para interpretar a Bíblia” (Ehrman em uma entrevista com Jeri Krentz, Charlotte Observer, 17 de Dezembro de 2005 [acessado em http://www.charlotte.com/mld/observer/living/religion/13428511.htm]). Na mesma entrevista, quando perguntado, “Se nós não temos os textos originais do Novo Testamento – ou mesmo cópias das cópias do original – o que temos?” Ehrman respondeu, “Nós temos cópias que foram feitas centenas de anos depois – em muitos casos, muitas centenas de anos depois. E estas cópias são todas diferentes umas das outras.” No The Diane Rehm Show (National Public Radio), 8 de Dezembro de 2005, Ehrman disse, “Há mais diferenças em nossos manuscritos que há de palavras no Novo Testamento.”
17 Note o seguinte: “nossos manuscritos são…cheios de erros” (57); “Não somente não temos os originais, não temos as primeiras cópias dos originais. Não temos nem mesmo as cópias das cópias dos originais, ou cópias das cópias das cópias dos originais. O que nós temos são cópias feitas depois – muito depois… E estas cópias todas diferem uma da outra, em muitos milhares de lugares… estas cópias diferem umas das outras em tantos lugares que nós sequer sabemos quantas diferenças existem” (10); “Erros se multiplicam e se repetem; algumas vezes eles são corrigidos e algumas vezes eles são combinados. E assim vai. Por séculos” (57); “Nós poderíamos continuar praticamente para sempre falando sobre específicos lugares onde os textos do Novo Testamento vieram a ser mudados, tanto acidentalmente quanto intencionalmente. Como eu tenho indicado, os exemplos não são somente em centenas mas em milhares” (98); ao discutir o aparato textual de John Mill de 1707, Ehrman declara, “Para o choque e desânimo de muitos de seus leitores, o aparato de Mill isolou alguns trinta mil lugares de variação entre as testemunhas sobreviventes… Mill não foi exaustivo em sua apresentação da informação que ele coletou. Ele encontrou, de fato, muito mais que trinta mil lugares de variação” (84); “Estudiosos variam significantemente em suas estimativas – alguns dizem que há 200,000 variantes conhecidas, alguns dizem 300,000, alguns dizem 400,000 ou mais! Nós não sabemos com certeza porque, apesar do impressionante desenvolvimento na tecnologia de computadores, ninguém foi capaz de contar todos eles” (89); ele conclui sua discussão de Marcos 16:9-20 e João 7:53-8:11, os dois problemas textuais mais longos do Novo Textamento, dizendo que estes dois textos “representam apenas dois de milhares de lugares nos quais os manuscritos do Novo Testamento chegaram a ser mudados pelos escribas” (68). Para dizer que estes dois problemas textuais são representantes de outros problemas textuais é uma sobrevalorização grosseira: o próximo mais largo e viável problema de omissão/adição envolvem apenas dois versos. Ehrman adiciona que “Apesar da maioria das mudanças não serem desta magnitude, há várias mudanças significantes (e muito mais de insignificantes)…” (69). Mesmo isto é um pouco enganoso. Por “maioria das mudanças” Ehrman quer dizer todas as outras mudanças.
18 Por exemplo, ele abre o capítulo 7 com estas palavras: “É provavelmente seguro dizer que a cópia de primeiros textos cristãos era grande processo ‘conservativo’. Os escribas… tinham a intenção de ‘conservar’ a tradição textual que eles estavam passando adiante. Sua preocupação final não era modificar a tradição, mas preservá-la para si mesmos e para aqueles que os seguiam. Muitos escribas, sem dúvida, tentaram fazer um trabalho fiel ao ter certeza que o texto que eles reproduziam era o mesmo que eles receberam” (177). “Seria um erro… assumir que as únicas mudanças sendo feitas eram por copistas com um risco pessoal no palavreamento do texto. De fato, a maioria das mudanças encontradas em nossos primeiros manuscritos cristãos não estão relacionados com nada de teologia ou ideologia. De longe as [sic] maiores mudanças são resultado de erros, pura e simplesmente – deslizes da pena, omissões acidentais, adições inadvertidas, palavras mal escritas, enganos de um tipo ou outro” (55). “Para ter certeza, de todos as centenas de milhares de mudanças encontradas entre os manuscritos, a maioria deles são insignificantes…” (207). Tais concessões parecem ter sido espremidos dele, pois estes fatos são contrários a sua agenda. Nesta instância, ele imediatamente adiciona que “Seria errado, contudo, dizer – como as pessoas normalmente fazem – que as mudanças em nosso texto não possuem real relação com o que o texto significa ou com as conclusões teológicas que alguém retira deles” (207-8). E ele prefaceia sua concessão com a declaração negritada que “Quando mais eu estudei a tradição de manuscritos do Novo Testamento, mais eu me dei conta em exatamente quão radicalmente o texto tem sido alterado através dos anos pelas mãos dos escribas…” (207). Mas este é outro clamor sem definição suficiente. Sim, escribas tem alterado os textos, mas a vasta maioria das mudanças são insignificantes. E a vasta maioria do resto são facilmente detectadas. Alguém quase tem o sentimento que é o estudioso honesto em Ehrman que está adicionando estas concessões, e o teólogo liberal em Ehrman que mantém estas concessões minimizadas.
19 Esta ilustração é tomada de Daniel B. Wallace, “Laying a Foundation: New Testament Textual Criticism,” in Interpreting the New Testament Text: Introduction to the Art and Science of Exegesis (a Festschrift for Harold W. Hoehner), ed. Darrell L. Bock e Buist M. Fanning (Wheaton, IL: Crossway, [forthcoming: 2006]).
Um item a mais poderia ser mencionado sobre as lacunas de Ehrman dos manuscritos. Ehrman parece estar gradualmente movendo para uma visão de prioridade interna. Ele argumenta por várias leituras que estão penduradas em evidências externas por uma linha desprotegida. Isto parece estranho porque meses antes de Misquoting Jesus aparecer, a quarta edição do Text of the New Testament de Bruce Metzger foi publicado, desta vez em co-autoria com Bart Ehrman. Ainda naquele livro, ambos autores falam mais grandemente da evidência externa do que Ehrman faz em Misquoting Jesus.
20 Misquoting, 7.
21 Ibid., 9. Para um tratamento do problema em Marcos 2.26, veja Daniel B. Wallace, “Mark 2.26 and the Problem of Abiathar,” ETS SW regional meeting, 13 de Março de 2004, disponível em http://www.bible.org/page.asp?page_id=3839.
22 Ibid.
23 Ibid., 11.
24 Ibid., 13 (italics added).
25 The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament (Oxford: OUP, 1993).
26 Ibid., 208.
27 281, n. 5 (to ch. 8), “O que temos agora é o que eles escreveram então?” em Reinventing Jesus é aqui duplicado: “Há dois lugares no Novo Testamento onde conjecturas são talvez necessárias. Em Atos 16:12 o texto crítico grego padrão dá uma leitura que não é encontrada em qualquer manuscrito grego. Mas mesmo aqui, alguns membros do comitê da UBS rejeitam a conjectura, argumentando que certos manuscritos possuem a leitura original. A diferença entre os dois entre as duas leituras é somente uma letra. (Veja discussão em Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2d ed. [Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1994], 393–95; Nota da NET Bible “tc” sobre Atos 16:12.) Também em Apocalipse 21:17 o texto grego padrão segue uma conjectura que Westcott e Hort originalmente estabeleceram, apesar do problema textual não ser listado nem no texto da UBS ou no texto Nestle-Aland. Esta conjectura é uma mera variante de pronúncia que não muda nenhum significado no texto.”
28 Para uma discussão deste ponto, veja Daniel B. Wallace, “Inerrancy and the Text of the New Testament: Assessing the Logic of the Agnostic View,” postado em Janeiro de 2006 em http://www.4truth.net/site/apps/nl/content3.asp?c=hiKXLbPNLrF&b=784441&ct=1799301.
29 Misquoting, 208.
30 Veja Hermann L. Strack, Introduction to the Talmud and Midrash (Atheneum, NY: Temple, 1978) 94, 96 para este princípio hermenêutico conhecido por Kal Wa-homer.
31 Uma discussão acessível do problema textual nestas três passagens pode ser encontrado nas notas de rodapé na Bíblia NET nestes textos.
32 Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, Edition DeLuxe, seis volumes (Philadelphia: John D. Morris, [1900]) 3.703–5.
33 James Bentley, Secrets of Mount Sinai: The Story of the Codex Sinaiticus (London: Orbis, 1985) 29.
34 Veja Bart D. Ehrman, “Jesus and the Adulteress,” NTS 34 (1988) 24-44.
35 Por causa desta necessidade, Reinventing Jesus foi escrito. Apesar de escrito em um nível popular, é baseado em estudos sérios.
36 Ehrman diz que a leitura “ocorre em somente dois documentos do décimo século” (Misquoting Jesus, 145), pelo que ele se refere a somente dois documentos gregos, 0243 (0121b) e 1739txt. Estes manuscritos são próximos e provavelmente representam um arquétipo comum. Também é encontrado em 424cvid (assim, aparentemente uma correção tardia em um minúsculo do décimo primeiro século) assim como o vgms syrpmss Orígenesgr (vr), lat MSSaccording to Origen Teodoro Nestoriano according to Ps-Oecumenius Teodoreto 1/2; lem Ambrósio MSSaccording to Jerome Vigílio Fulgêncio. Ehrman nota algumas das evidências patrísticas, sublinhando um importante argumento, a saber, “Orígenes nos diz que esta era a leitura da maioria dos manuscritos em seus próprios dias” (ibid.).
37 Isto, contudo, não é necessariamente o caso. Um argumento poderia ser feito que χάριτι θεοῦ é a leitura mais difícil, desde que o clamor de abandono da cruz, em que Jesus citou Salmos 22:1, pode ser refletido na leitura χωρὶς θεοῦ, enquanto que morrendo “pela graça de Deus” não é tão claro.
38 Assim Metzger, Textual Commentary2, 595. Em escrita uncial: caritiqu vs. cwrisqu.
39 Ibid. Para argumentos similares, veja F. F. Bruce, The Epistle to the Hebrews, rev ed, NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 1990) 70–71, n. 15. O ponto da interpretação marginal é que em Hebreus 2:8 o autor cita Salmos 8:6, adicionando que “ao sujeitar todas as coisas a ele, ele não deixou nada fora de seu controle”. Em 1 Coríntios 15:27, que também cita Salmos 8:6, Paulo adiciona o qualificador que Deus foi excluído de ‘todas as coisas’ que foram sujeitas a Cristo. Metzger argumenta que a interpretação foi mais provavelmente adicionada por um escriba “para explicar que ‘tudo no versículo 8 não inclui Deus; esta interpretação, sendo erroneamente considerada por um transcritor posterior como uma correção de χάριτι θεοῦ, foi introduzido no texto da versículo 9” (Textual Commentary, 595). Para melhores tratamentos deste problema na literatura exegética, veja Hans-Friedrich Weiss, Der Brief an die Hebräer in MeyerK (Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1991) 200–2; Bruce, Hebrews, 70–71.
Ehrman diz que isto é bem improvável por causa da localização da leitura χωρίς no versículo 9 ao invés de uma nota adicional no versículo 8 onde ele pertence. Mas o fato de que tal explicação pressupõe um simples ancestral errante para as poucas testemunhas que o possuem é dificilmente algo forçado. Coisas mais estranhas tem acontecido entre os manuscritos. Ehrman adiciona que χωρίς é o termo menos usual no Novo Testamento, e assim os escribas tenderiam para o mais usual, χάριτι. Mas em Hebreus χωρίς é quase duas vezes mais frequente que χάρις, como Ehrman nota (Orthodox Corruption), 148. Além disto, apesar de que é certamente verdadeiro que os escribas “tipicamente confundem palavras incomuns com as mais comuns” (ibid., 147), não há absolutamente nada incomum com χωρίς. Ela ocorre 41 vezes no Novo Testamento, treze das quais estão em Hebreus. Isto nos traz de volta para o cânon da leitura difícil. Ehrman argumenta que χωρίς é de fato a leitura mais difícil aqui, mas em Metzger-Ehrman, Text, ele (e Metzger) diz, “Obviamente, a categoria ‘leitura mais difícil’ é relativa, e um ponto é algumas vezes alcançado quando uma leitura deve ser julgada tão difícil que ela poderia ter aparecido somente por um acidente em transcrição” (303). Muitos estudiosos, incluindo Metzger, diriam que aquele ponto foi alcançado em Hebreus 2:9.
40 Orthodox Corruption, 149 (italics added).
41 Por isto, não quero apenas dizer sobre sua adoção de χωρὶς θεοῦ aqui. (Apesar de tudo, Günther Zuntz, altamente considerado como um brilhante e sensato eclético, também considerou χωρὶς θεοῦ como autêntico [The Text of the Epistles: A Disquisition upon the Corpus Paulinum [Schweich Lectures, 1946; London: OUP, 1953) 34–35].) Pelo contrário, eu estou me referindo à agenda geral de Ehrman de explorar o aparato para corrupções ortodoxas, a despeito das evidências por leituras alternativas. Com esta agenda, Ehrman parece estar direcionado a argumentar por certas leituras que possuem pouco suporte externo.
42 O prefácio para esta edição foi escrito em 30 de Setembro de 1993. Metzger é reconhecido em Orthodox Corruption como tendo ‘lido parte do manuscrito’ (vii), um livro completado em Fevereiro de 1993 (ibid., viii). Se Metzger leu a seção sobre Hebreus 2:9, ele ainda discordou enormemente de Ehrman. Alternativamente ele não foi apresentado a esta porção do manuscrito. Se o último, alguém deve pensar porque Ehrman não desejaria ter a opinião de Metzger já que ele já sabia, da primeira edição de Textual Commentary, que Metzger não vê a leitura cwrivV como possível (ali é dado uma classificação ‘B’).
43 Misquoting, 132 (itálicos adicionados).
44 Orthodox Corruption, 148.
45 Ibid., 149.
46 Ibid.
47 Misquoting Jesus, 208.
48 Orthodox Corruption, 144 (itálicos adicionados).
49 O contexto de Hebreus 5, contudo, fala de Cristo como sumo-sacerdote; versículo 6 prepara o campo ao ligar o sacerdócio de Cristo com o de Melquisedeque; versículo 7 conecta suas orações com os “dias de sua carne”, não somente com sua paixão. Assim não é irracional ver suas orações como orações para seu povo. Tudo isto sugere que mais que a paixão está em vista em Hebreus 5:7. A única informação que poderia conectar as orações com a paixão é que aquela para quem Cristo orou era “capaz de salvá-lo da morte”. Mas se as orações estavam restritas à provação de Cristo na cruz, então a leitura χωρίς em Hebreus 2:9 parece ser refutada, pois em 5:7 o Senhor “foi ouvido [εἰσακουσθει…vς] por causa de sua devoção”. Como ele poderia ser ouvido se ele morreu apartado de Deus? Os pontos interpretativos em Hebreus 5:7 são de alguma forma complexos, não produzindo respostas fáceis. Veja William L. Lane, Hebrews 1–8, WBC (Dallas: Word, 1991) 119–20.
50 D ita d ff2 r1 Diatessaron.
51 Bart D. Ehrman, “A Leper in the Hands of an Angry Jesus,” em New Testament Greek and Exegesis: Essays in Honor of Gerald F. Hawthorne (Grand Rapids: Eerdmans, 2003) 77–98.
52 Mark A. Proctor, “The ‘Western’ Text of Mark 1:41: A Case for the Angry Jesus” (Ph.D. diss., Baylor University, 1999). Mesmo apesar do artigo de Ehrman’s aparecer quatro anos depois da dissertação de Proctor, Ehrman não menciona o trabalho de Proctor.
53 Misquoting, 132 (italics added).
54 Ehrman, “A Leper in the Hands of an Angry Jesus,” 95.
55 Ibid., 94. See também 87: “Jesus fica nervoso em várias ocasiões no Evangelho de Marcos; o que é mais interessante notar é que cada relato envolte a habilidade de Jesus fazer milagres de cura.”
56 Há algumas ligações fracas neste argumento geral, no entanto. Primeiro, ele não faz o melhor caso que cada instancia onde Jesus está nervoso é um relato de cura. É o periscópio sobre Jesus tocando as criancinhas realmente uma história de cura (10.13-16)? Não é claro qual doença estas crianças estão sendo ‘curadas’. Sua sugestão que o por as mãos indica cura ou pelo menos a transmissão de poder divino aqui é falha (“A Leper in the Hands of an Angry Jesus,” 88). Além disto, ele prova demais, pois 10:16 diz que Jesus “tomou as crianças em seus braços e colocou suas mãos neles e os abençoou.” Não ver um compassivo e gentil Jesus em tal texto é quase incompreensível. Assim, se esta é uma narrativa de cura, ela também implica na compaixão de Jesus no mesmo ato de cura – um motivo que Ehrman diz nunca acontecer em narrativas de cura em Marcos.
Segundo, ele clama que a cura da sogra de Pedro por Jesus em Marcos 1:30-31 não é um ato compassivo: “Mais de um observador de soslaio notou… que depois que ele o faz ela se levanta para os dar de comer” (ibid., 91, n. 16). Mas certamente a declaração de Ehrman – repetido em Misquoting Jesus (138) – é simplesmente um comentário politicamente correto que quer sugerir que por Jesus restaurar a mulher para um papel servil não pode ser por causa de sua compaixão. Não é o ponto ao invés disto que a mulher estava tão completamente curada, sua força completamente restabelecida, até mesmo ao ponto de que ele poderia retornar à seus afazeres habituais e Jesus e seus discípulos? Como tal, parece funcionar igualmente ao levantar da filha do chefe da sinagoga, pois assim que sua vida foi restaurada Marcos nos diz que “a garota se levantou de uma vez e começou a andar por toda parte” (Marcos 5:42).
Terceiro, em mais de uma narrativa de cura nos Evangelhos sinóticos – incluindo a cura da sogra de Pedro – nós vemos fortes indícios de compaixão da parte de Jesus quando ele pega a mão da pessoa. Em Mateus 9:25; Marcos 1:31; 5:41; 9:27; e Lucas 8:54 a expressão a cada hora é κρατήσας/ἐκράτησεν τῆς χειρός. kratevw com um objeto direto genitivo, ao invés de um objeto direto acusativo, é usado nestes textos. Nos evangelhos quando este verbo toma um objeto direto acusativo, tem a força de apanhar, agarrar-se a, segurar firmemente (cf. Mateus 14:3; 21:46; 22:6; 26:57; 28:9; Marcos 6:17; 7:3,4,8; mas quando ele toma um objeto direto genitivo, ele implica em um toque gentil mais do que um firme aperto, e é usado somente em contextos de cura (note a tradução na NET de κρατήσας/ἐκράτησεν τῆς χειρός em Mateus 9:25; Marcos 1:31; 5:41; 9:27; e Lucas 8:54). O que deve ser notado nestes textos não é somente que não há diferença entre Marcos de um lado e Mateus e Lucas do outro, mas que Marcos de fato tem mais instâncias desta expressão que Mateus e Lucas combinados. Como este ‘gentil tomar das mãos dele/dela’ não falam de compaixão?
Quarto, não ver a compaixão de Jesus em textos que não usam σπλαγχνίζομαι ou parecido, como Ehrman está acostumado a fazer, beira a falácia da equação léxico-conceitual onde um conceito não pode ser visto em um dado texto a menos que a palavra para tal conceito esteja ali. Para dar um simples exemplo, considere a palavra para ‘comunhão’ no Novo Testamento grego, κοινωνία. A palavra ocorre menos que vinte vezes, mas ninguém clama que o conceito de comunhão ocorre com tão baixa frequência. Ehrman, é claro, sabe disto e tenta argumentar que tanto as palavras para compaixão e o conceito não podem ser vistos nas histórias de cura de Marcos. Mas ele deixa a impressão que desde que ele estabeleceu este ponto lexicamente por rejeitar σπλαγχνισθείς em Marcos 1:41, o conceito seria fácil de dispensar juntamente.
Quinto, a recusa de Ehrman de todas as interpretações alternativas a seu entendimento de porque e com quem Jesus estava nervoso em Marcos 1:41 é muito arrogante. Sua certeza que “mesmo os comentadores que se deram conta que o texto originalmente indicava que Jesus se tornou bravo estão embaraçados pela idéia e tentam explicá-la, de forma que o texto não mais significa o que ele diz” (“A Leper in the Hands of an Angry Jesus,” 86) implica que sua interpretação certamente deve ser correta. (Apesar de Ehrman fazer um trabalho rápido com várias visões, ele não interage bem com a visão de Proctor, aparentemente porque ele não estava ciente da dissertação de Proctor quando ele escreveu sua parte para a Festschrift de Hawthorne. Proctor essencialmente argumenta que a cura do leproso é uma cura dupla, que também implicitamente envolve um exorcismo [“A Case for the Angry Jesus,” 312-16]. Proctor resume seu argumento como segue: “Dado (1) visões populares do primeiro século a respeito da ligação entre demônios e doenças, (2) a linguagem de exorcismo do versículo 43, (3) o comportamento de demônios e aqueles associados com eles em outros locais no Evangelho, e (4) o tratamento de Lucas de Marcos 1:29-31, isto parece ser uma suposição relativamente segura mesmo que Marcos [sic] não descreve explicitamente o homem como demoníaco” [325-26, n. 6].) Não somente Ehrman acusa os exegetas de não entender ὀργισθείς de Marcos, ele também diz que Mateus e Lucas não entendem: “Qualquer um não intimamente familiar com o Evangelho de Marcos em seus próprios termos… pode não entender porque Jesus ficou nervoso. Mateus certamente não, nem Lucas” (ibid., 98). Não é talvez um pouco frágil clamar que a razão que Mateus e Lucas deixaram ojrgisqeivV era porque eles desconheciam os propósitos de Marcos? Afinal de contas, eles não eram também ‘intimamente familiares com o Evangelho de Marcos’? Não há outras razões plausíveis para sua omissão?
Juntamente com estas linhas, deve ser notado que nem todas as interpretações são criadas iguais, mas a ironia aqui é que Ehrman parece querer ter seu bolo e comê-lo também. No capítulo final de Misquoting Jesus ele diz “significado não é inerente e textos não falam por si mesmos. Se textos pudessem falar por si mesmos, então todo mundo honestamente e abertamente lendo um texto concordaria com o que o texto diz” (216). Ele adiciona, “O único meio para obter um sentido de um texto é lê-lo, e o único meio de lê-lo é por em outras palavras, e o único meio de colocá-lo em outras palavras é tendo outras palavras para colocar, e o único meio de você ter outras palavras para colocar é ter uma vida, e o único meio de ter uma vida é sendo preenchido por desejos, ânsias, necessidades, carências, crenças, perspectivas, cosmovisões, opiniões, gostos, desgostos – e todas as outras coisas que fazem dos seres humanos, humanos. E então para ler um texto, é necessariamente mudar um texto” (217). Eu posso estar compreendendo ele errado aqui, mas isto soa como se Ehrman não pode clamar que sua própria interpretação é superior a outras já que todas as interpretações mudam um texto, e se cada interpretação muda o texto, então como uma interpretação de um texto é mais válida que outras interpretações? Se eu tiver entendido errado seu significado, meu ponto básico ainda se mantém: sua rejeição de outras interpretações é muito arrogante.
57 Veja a discussão na nota da Bíblia NET sobre este versículo.
58 Orthodox Corruption, 92: “não somente é a frase οὐδὲ ὁ υἱός encontrada em nossos mais antigos e melhores manuscritos de Mateus, é também necessário em bases internas.”
59 Misquoting Jesus, 208 (quoted earlier).
60 Ibid., 95: “Escribas acham esta passagem difícil: o Filho de Deus, o próprio Jesus, não sabe quando o fim virá? Como pode isto ser? Ele não é onisciente? Para resolver o problema, alguns escribas simplesmente modificaram o texto por tirar as palavras ‘nem mesmo o Filho’. Agora os anjos podem não saber, mas o Filho de Deus sabe.”
61 Codex X, um manuscrito da Vulgata, e algumas outras testemunhas sem nome (de acordo com o aparato de Nestle-Aland27) renunciam a frase aqui.
62 Misquoting Jesus, 95, 110, 204, 209, 223 n. 19, 224 n. 16.
63 Misquoting, 162.
64 Ehrman, Orthodox Corruption, 81.
65 Outra crítica é que Ehrman declarou muito rapidamente que μονογενής não pode ter a força implícita de “único filho” como em “o único Filho, que é Deus” (ibid., 80-81):
A dificuldade com esta visão e que não há nada sobre a palavra μονογενής de si própria que sugere isto. Fora do Novo Testamento o termo simplesmente significa “um de um tipo” ou “único”, e o faz com referência a qualquer ordem de objetos animados ou inanimados. Por este motivo, recurso deve ser feito para seu uso no Novo Testamento. Aqui os proponentes da visão argumentam que in situ a palavra implica “filiação”, pois ela sempre ocorre (no Novo Testamento) ou em explícita conjunção com υἱός ou em um contexto onde um υἱός é chamado e então descrito como μονογενής (Lucas 9:38, João 1:14, Hebres 11:17). Contudo, tão sugestivo quanto o argumento pode parecer, ela contém a semente de sua própria refutação: se entende-se que a palavra μονογενής significa “um único filho”, alguém poderia pensar porque ela é tipicamente colocada em atribuição a υἱός, uma atribuição que então cria um tipo de redundância incomum (“o único-filho filho”). Dado o fato que nem a etimologia da palavra nem seu uso geral sugere tal significado, esta solução parece envolver um caso de súplica especial.
O problema com esta declaração é tríplice: (1) Se nos três textos listados acima μονογενής, de fato, tem tanto uma força substantiva e envolve a implicação de filiação, então argumentar que isto pode ser o caso em João 1:18 não é uma instância de súplica especial porque já há testemunho claro desta força no Novo Testamento. (2) O argumento de Ehrman reside em sair do grego bíblico para o significado normativo de um termo que parecia ter nuances especiais dentro da Bíblia. Mas desde o Novo Testamento (Hebreus 11:17) – assim como no grego patrístico (veja n. 62) e a LXX (cf. Juízes 11:34 onde o adjetivo é usado antes do nome que fala da filha de Jeftá; Tobias 3:15 é igual; cf. também Tobias 8:17) – μονογενής frequentemente tem o sentido tanto de ‘filho’ (ou criança) e é usado absolutamente (por exemplo, substantivamente), argumentar por uma força secular na Bíblia parece uma súplica especial. (3) Argumentar que uma força léxica implícita se torna “um tipo incomum de redundância” quando a implicação é apresentada explicitamente no texto requer muito mais detalhamento antes que possa ser aplicado como algum tipo de princípio normativo: de cara, e em aplicação ao caso em questão, me vem como quase uma inverdade precipitada. Na gramática e lexema, o Novo Testamento é cheio de exemplos nos quais o fluxo e refluxo do significado implícito e explícito se misturam um com o outro. Para tomar um exemplo do lado gramatical: εἰσέρχομαι εἰς é uma expressão geralmente helenística na qual a grande redundância (ao dobrar a preposição) faz compreender o ponto. É encontrado mais de 80 vezes no Novo Testamento, e ainda não quer dizer “vir-para-dentro dentro”! Ainda, ela significa a mesma coisa que ἔρχομαι εἰς, uma frase que ocorre mais de 70 vezes no Novo Testamento. Exemplos em inglês também vem prontamente à mente: Na linguagem coloquial, sempre escutamos “foot pedal” (existe algum outro tipo de pedal que não seja de pé?).
66 Adicionado aos meus exemplos são aqueles que um estudante de doutorado no Dallas Seminary, Stratton Ladewig, selecionou de vários lugares no Novo Testamento: Lucas 14:13; 18:11; Atos 2:5. Da mesma forma, ele encontrou vários paralelos inexatos. Veja sua tese Th.M., “An Examination of the Orthodoxy of the Variants in Light of Bart Ehrman’s The Orthodox Corruption of Scripture,” Dallas Seminary, 2000.
67 Uma rápida olhada no Patristic Greek Lexicon de Lampe também revela que a função substantiva deste adjetivo era corriqueiro: 881, def. 7, o termo é usado absolutamente em uma hoste de escritores patrísticos.
68 Ehrman não é completamente claro em seu argumento que monogenh;V qeov" era uma leitura anti-adocionista. Se sua construção do significado do texto é correta, ela parece mais modalista que ortodoxa. Ainda, já que seu embasamento é solidamente Alexandrino, ele pareceria voltar para um arquétipo que possui uma data anterior à heresia Sabeliana. Em outras palavras, as motivações para a leitura, assumindo a interpretação de Ehrman, são no mínimo confusas.
69 Para o caso que o Novo Testamento fala claramente da deidade de Cristo, veja Komoszewski, Sawyer, e Wallace, Reinventing Jesus.
70 Gordon D. Fee, revisão de The Orthodox Corruption of Scripture in Critical Review of Books in Religion 8 (1995) 204.
71 Veja J. K. Elliott, revisão de The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament, por Bart D. Ehrman, em NovT 36.4 (1994): 405–06; Michael W. Holmes, revisão de The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament, por Bart D. Ehrman, em RelSRev 20.3 (1994): 237; Gordon D. Fee, revisão de The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament, por Bart D. Ehrman, em CRBR 8 (1995): 203–06; Bruce M. Metzger, revisão de The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament, por Bart D. Ehrman, em PSB 15.2 (1994): 210–12; David C. Parker, revisão de The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament, por Bart D. Ehrman, em JTS 45.2 (1994): 704–08; J. N. Birdsall, Revisão de The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament, por Bart D. Ehrman, em Theology 97.780 (1994): 460-62; Ivo Tamm, Theologisch-christologische Varianten in der frühen Überlieferung des Neuen Testaments? (Magisterschrift, Westfälische Wilhelms-Universität Münster, n.d.); Stratton Ladewig, “An Examination of the Orthodoxy of the Variants in Light of Bart Ehrman’s The Orthodox Corruption of Scripture” (tese Th.M., Dallas Seminary, 2000).
72 Misquoting Jesus, 114 (itálicos adicionados).
73 Veja por exemplo, D. A. Carson, King James Version Debate [Grand Rapids: Baker, 1979], 64).
74 Apesar do Misquoting Jesus de Ehrman ser bem a primeira introdução ao público leigo da crítica textual do Novo Testamento, na primavera de 2006 um segundo livro que lida com estes assuntos (e alguns outros) foi lançado. Veja Komoszewski, Sawyer, e Wallace, Reinventing Jesus, para um tratamento mais balanceado da informação.
75 Sou lembrado do insight de Martin Hengel sobre os perigos paralelos de “ um não crítico e estéril fundamentalismo apologético” e “da não menos estéril ‘ignorância crítica’” do liberalismo radical. No fundo, as abordagens são as mesmas; a única diferença são as pressuposições (Martin Hengel, Studies in Early Christology [Edinburgh: T & T Clark, 1995], 57–58). Não estou dizendo que Ehrman está ali, mas ele não mais parece ser o verdadeiro liberal que uma vez ele aspirou ser.
76 Deve ser notado que Misquoting Jesus é dedicado a Bruce Metzger, a quem Ehrman descreve como “o maior expert no campo [da crítica textual do Novo Testamento]” (Misquoting, 7). Mesmo assim Metzger não concordaria fundamentalmente com a tese de Ehrman neste livro.