segunda-feira, 24 de maio de 2010

Hillel, Shammai, Gamaliel

Nos primórdios da era cristã havia duas escolas principais de interpretação legal, fundadas respectivamente por Shammai e Hillel. À escola de Shammai tradicionalmente é atribuída uma interpretação mais rígida do que à escola de Hillel – não apenas na aplicação das leis individuais, mas também na postura, em relação à lei como um todo. Os discípulos de Shammai consideravam a quebra da lei (por ação ou omissão) uma quebra da lei como tal, enquanto os discípulos de Hillel ensinavam que o julgamento divino estava relacionado à preponderância do bem ou do mal, na vida inteira da pessoa.

Uma das afirmações mais bem conhecidas de Hillel é sua resposta a um homem que lhe pediu para resumir toda a lei no menor número possível de palavras. Hillel disse: “Aquilo que para você é detestável, não o faça aos outros, isso é toda a lei, todo o resto é comentário”. Essa citação da regra de ouro negativa como resumo da lei podia ser interpretada de maneiras que muitos fariseus teriam considerado perigosas. Mesmo se não foi essa a intenção de Hillel, pode ter encorajado alguém a argumentar, ao defrontar-se com um mandamento específico da lei, que este era obrigatório apenas até o ponto de evitar o sofrimento do próximo ou promovia o seu bem. Isso, segundo a opinião prevalente entre os rabinos, introduzia um critério subjetivo ilícito; era muito melhor que as pessoas, ao serem confrontadas com um mandamento da lei, obedecessem a ela simplesmente porque era um mandamento do Santo: não há porque perguntar por quê.

Que tipo de fariseu era Paulo? A pergunta não é fácil de responder. De acordo com Atos 22.3, ele foi instruído na escola de Gamaliel, e a tradição posterior faz de Gamaliel o sucessor de Hillel e líder da sua escola, e às vezes até seu filho ou neto. Mas as tradições mais antigas que refletem algumas recordações diretas do homem e seu ensino não estabelecem nenhum vínculo entre ele e a escola de Hillel. Em vez disso, falam de pessoas que pertenciam à escola de Gamaliel, como se ele tivesse fundado a sua própria.

Há certa dificuldade em distinguir as tradições sobre esse Gamaliel daquelas sobre um professor posterior com o mesmo nome (Gamaliel II, c. 100 d.C.), mas as tradições que pressupõe que o templo ainda estava de pé, certamente se referem ao Gamaliel anterior. Dizia-se que, “quando Rabban Gamaliel mais velho morreu, a glória da Tora cessou, e pureza e separação morreram” – o que quase equivale a dizer que ele foi o último dos verdadeiros fariseus, já que “separação” (heb. p’rîsût) vem da mesma raiz de “fariseus” e pode até ser traduzido por “farisaísmo”. Ente as regulamentações que lhe são atribuídas, está uma que liberaliza a lei do novo casamento após o divórcio.

Tanto nas tradições rabínicas como no Novo Testamento Gamaliel aparece como membro do Sinédrio. Lucas relata que, no estágio inicial da igreja em Jerusalém, os apóstolos foram acusados perante esse tribunal de desobedecer a sua orientação anterior de não ensinar publicamente no nome de Jesus. Quando alguns membros do tribunal queriam tomar medidas extremas contra eles, “um fariseu, chamado Gamaliel, mestre da lei, acatado por todo o povo” (At 5.34), lembrou seus colegas de outros movimentos no passado recente que pareciam ser perigosos por um tempo curto, mas logo entraram em colapso. E ele acrescentou (v. 38s):
"Agora, vos digo: dai de mão a estes homens, deixai-os; porque, se este conselho ou esta obra vem de homens, perecerá; mas, se é de Deus, não podereis destruí-los, para que não sejais, porventura, achados lutando contra Deus".

Isso certamente é doutrina típica dos fariseus. As pessoas podem desobedecer a Deus, mas sua vontade triunfará mesmo assim. A vontade do ser humano não é cerceada, mas o que ele quer é superado por Deus, quando realiza os seus propósitos. Nas palavras de um rabino posterior, o fabricante de sandálias Yohanan, “todo ajuntamento em prol do céu será confirmado, mas o que não é em prol do céu no fim não será confirmado”. Que Gamaliel seguiu a linha atribuída a ele por Lucas é o que devíamos esperar.

No entanto, se essa era a linha de Gamaliel, certamente não era a de Paulo. Na maioria das questões, por exemplo, na esperança da ressurreição e nos métodos de exegese bíblica, Paulo provavelmente foi um aluno apto e um seguidor fiel do seu professor. Até se chegou a pensar que um aluno de Gamaliel do qual não se diz o nome, mas que apresentou “descaramento em questões de estudo” e tentou refutar seu professor, era ninguém menos que Paulo. Se esse é o caso (o que é bastante incerto), então a tradição reflete a desaprovação com o posterior abandono do caminho rabínico por Paulo; não preserva uma recordação da conduta de Paulo, enquanto esteve aos pés de Gamaliel. Em um aspecto, porém, Paulo desviou-se do exemplo do seu mestre: ele repudiou o a idéia de que uma política de contemporização era a mais adequada em relação aos discípulos de Jesus. Em sua cabeça, esse novo movimento constituía uma ameaça mais mortal a tudo o que ele aprendera a valorizar do que Gamaliel parecia capaz de entender. Além disso, o temperamento de Paulo parece ter sido bem diferente do de Gamaliel: em contraste com a paciência e tolerância de estadista de Gamaliel, Paulo era caracterizado, em suas próprias palavras, por uma superabundância de zelo – que, realmente, ele nunca perdeu de todo.

Como o objeto do seu zelo eram as tradições dos ancestrais – a antiga lei de Israel e sua interpretação como era ensinada na escola de Gamaliel – não devemos ficar surpresos de saber que ele estava insatisfeito com a idéia dos seguidores de Hillel de que um mera preponderância do bem sobre o mal, na vida de alguém, era suficiente para lhe conseguir um veredito favorável, no dia do julgamento. Nesse ponto, pelo menos, ele parece ter se inclinado mais para a posição dos seguidores de Shammai de que a lei tinha de ser obedecida em sua totalidade. Que essa era a postura de Paulo está implícito mais tarde, quando ele diz aos seus convertidos na Galácia, que estavam sendo pressionados a adotar certas exigências legais do judaísmo, que eles não podiam pensar que, se escolhessem essa maneira de ser aceitos por Deus, podiam escolher os que quisessem entre os mandamentos divinos: “Testifico a todo homem que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei” (Gl 5.3). Essa atitude em relação à lei determinou a atitude hostil de Paulo em relação aos seguidores de Jesus e seu ensino.

O Talmud

O Talmud define e dá forma ao judaísmo, alicerçando todas as leis e rituais judaicos. Enquanto o Chumash (o Pentateuco, ou os cinco livros de Moisés) apenas alude aos Mandamentos, o Talmud os explica, discute e esclarece. Não fosse este, não entenderíamos e muito menos cumpriríamos a maioria das leis e tradições da Torá e o judaísmo não existiria. Historicamente, os judeus que, individualmente ou em grupo, negaram sua validade, acabaram por se assimilar ou desaparecer. E, como outras religiões adotaram o texto da Torá Escrita - Torá she-bichtav, mesmo a tendo traduzido de forma errada, adicionando ou removendo partes da mesma e a interpretando de forma proibida pelo judaísmo, é o Talmud o verdadeiro divisor de águas, o texto sagrado que diferencia os judeus das outras nações do mundo.

Nós, judeus, sempre tivemos consciência de que nossa sobrevivência como grupo dependia do estudo deste trabalho. Os inimigos históricos de nosso povo, que devido a interesses teológicos ou nacionais quiseram converter ou destruir o judaísmo, também estavam cientes dessa realidade. No passado, quem se aventurava a declarar guerra à religião judaica, começava por proibir o estudo do Talmud, sob risco de pena de morte. Através do curso da história, em diferentes países e períodos, esta magna obra foi queimada, em praça pública. Muitos de seus trechos foram removidos por aqueles que se sentiam ameaçados por sua genuína interpretação da Torá, pela elucidação clara e inequívoca que dava aos Mandamentos Divinos e por seu repúdio absoluto a qualquer forma de idolatria ou imoralidade.

Mas, o que vem a ser esta obra monumental? Pode-se dizer, com segurança, que a maioria dos judeus de nossos dias já ouviu menção ao mesmo, mas apenas uma pequena minoria o estudou. Sua definição formal é a de ser a compilação da Lei Oral, que foi transmitida por D’us a Moisés, no Monte Sinai, tendo sido estudada e dissecada, através dos séculos, pelos sábios que viviam em Israel e na Babilônia, até o início da Idade Média. O Talmud tem dois componentes principais: a Mishná, um livro sobre a lei judaica, escrito em hebraico, e a Guemará, comentário e elucidação do primeiro, escrita no jargão hebraico-aramaico.

Um olhar superficial sobre a Guemará pode induzir alguém a pensar que se trate apenas de explicações e elaborações sobre as leis e ensinamentos da Mishná. Mas, na realidade, trata-se de algo muito mais abrangente um conglomerado de milhares de anos de sabedoria, história, legislação, lendas e filosofia judaica. Sua santidade e autoridade, como veículos para a Revelação Divina, em nada são inferiores à da Torá Escrita. Ademais, mistura - entre outras áreas do conhecimento - as ciências à lógica, aconselhamento prático, lições e relatos extraordinários, palavras de perspicácia e inspiração e, até mesmo, ocasionais toques de humor. O Talmud é uma mescla de arte e ciências: é o livro da legislação judaica - técnico e preciso - mas é também uma enciclopédia e uma obra magistral de sabedoria, jamais igualada na história da humanidade.

Para um iniciante no estudo do Talmud, a Guemará pode parecer que foi escrita com total liberdade de pensamento. Geralmente envereda por apartes tangenciais ao assunto em pauta, daí partindo para a discussão de um mandamento, o relato de uma história ou simplesmente oferecendo pérolas de sabedoria que, de uma maneira ou de outra, têm alguma relação com o assunto tratado. No entanto, a bem da verdade, todo o seu arcabouço é extraordinariamente bem ordenado e lógico. Cada uma de suas palavras foi submetida à meticulosa revisão antes de ser transcrita.

É irônico que esta fonte básica e fundamental da lei judaica sirva muito raramente como autoridade final e definitiva para as discussões sobre o que a Torá nos ordena. Seguimos este Pentateuco de acordo com os ditames do Shulchan Aruch (o Código da Lei Judaica) e dos sábios contemporâneos que interpretam as aplicações de suas leis. Mas o Talmud permanece sendo o alicerce imutável para praticamente todas as leis que emanam da Torá.

A Torá Oral

O Talmud cobre uma ampla variedade de assuntos, seguindo, no entanto, um plano coerente e muito bem estruturado a dizer, a Mishná, pilar central da Lei Oral. Comparada à Guemará, é concisa e objetiva. Compõe-se de uma série de declarações, organizadas por assunto e tópico, que ensinam as leis, a tradição e a história judaica. Apesar de seu conteúdo se originar do Monte Sinai, algumas de suas declarações são atribuídas ao mestre ou à escola de pensamento que as elucidou e difundiu. Os sábios talmúdicos foram mais do que a simples “cadeia de transmissão” que remonta a Moshé Rabeinu. Pois está escrito que cada um deles tinha atingido tão elevado nível espiritual que conseguia até mesmo ressuscitar os mortos. Esses mestres da Torá personificavam a Vontade de D’us e, assim sendo, cada aspecto de sua conduta e cada uma de suas palavras foram marcadas por absoluta precisão e orientação Divina.

É a Mishná que provê a Guemará de sua base organizacional e factual. Cada uma das leis talmúdicas precisa ter uma fonte e esta é encontrada na Mishná. A Guemará pode dissecar e divagar sobre os ditames da Mishná, estabelecer conexões entre seus diferentes assuntos e esclarecer aparentes contradições, mas não pode abertamente discordar da mesma. A Mishná surge como o árbitro final em qualquer litígio talmúdico.

Há outras coletâneas de diretrizes e ensinamentos, que são parte integrante da Torá Oral: Sifra e Sifri, Tosefta e Bareitot, além dos Midrashim, que também foram preservados por escrito, muitos dos quais dentro da própria Guemará. No entanto, a Mishná tem precedência sobre os demais ensinamentos da Torá Oral. Isto significa que sempre que houver uma aparente contradição entre um ditado da Mishná e qualquer outro ensinamento da Lei Oral, caberá à Guemará buscar a verdade na qual se fundamenta o tema, com base na própria Mishná.

É importante mencionar que quando as pessoas falam no Talmud, geralmente estão-se referindo ao Babilônico. No entanto, há outro que foi escrito em Israel. Conhecido como o de Jerusalém o Talmud Yerushalmi foi revisado pelo Rabi Yochanan 300 anos após a destruição do Segundo Templo. É bem mais conciso que o Talmud Bavli, o Babilônico, pois, de fato, trata principalmente das leis referentes à Terra de Israel. Via de regra, os judeus que viviam na diáspora negligenciavam a obra compilada em Jerusalém, mas, nos últimos anos, vimos renascer o interesse por essa obra, devido grandemente ao retorno de milhões de judeus à Terra de Israel.

Desde o Monte Sinai, a Torá Oral - ou Torá she-be’alpê - como seu nome bem o indica, só foi transmitida oralmente. Por razões várias, nossos sábios nunca permitiram que fosse escrita. Mas, uma vez destruído o Segundo Templo, os líderes judeus começaram a se preocupar que a Torá Oral, sendo tão maciça e complexa, cairia no esquecimento em virtude da opressão romana e a conseqüente dispersão do povo judeu. No ano de 188 a.E.C., o Rabi Yehudá ha-Nassi, sábio cuja inigualável liderança e vastidão de conhecimentos sobre a Torá lhe valeram o título de o “Rabi (do Talmud)”, finalmente terminou de compilar a Mishná. Centenas de anos mais tarde, já no final do séc. IV da E.C., Rav Ashi, importante sábio babilônico, iniciou a compilação de todo o Talmud. Seus discípulos e os alunos destes deram continuidade à gigantesca obra de redigi-lo. No entanto, diferentemente da Mishná, o Talmud foi oficialmente completado por nenhum erudito em particular; daí dizer-se que “ainda está por ser terminado”. Através dos séculos, suas palavras e ensinamentos foram meticulosamente analisados, interpretados e explicados por incontáveis sábios, estudiosos e mestres. É geralmente comparado ao oceano sua vastidão é tremenda, mas sua profundidade é incomensuravelmente maior. De fato, é um fiel testamento da Infinita Torá de D’us.

O estudo do Talmud

Em hebraico, esta palavra significa literalmente “estudo” ou “aprendizado”. É a incorporação do fundamental mandamento judaico de “estudar a Torá” - Talmud Torá. Ao contrário de quase todos os outros campos do saber, o estudo do Pentateuco tem propósitos que vão muito além da simples aquisição de conhecimentos. É um meio e um fim, por si só; seu objetivo é o próprio aprendizado. Portanto, o grau de importância e aplicação prática da matéria em discussão tem importância secundária. Isto não significa que não tenha relevância. Pois como aprendemos com nossos mestres, o estudo da Torá é o maior de todos os mandamentos judaicos, uma vez que faz com que se evitem os pecados e se pratiquem atos positivos e boas ações que beneficiem nossos semelhantes. É óbvio que para aprender as leis do judaísmo - e os princípios e detalhamentos necessários para cumpri-las - é imprescindível estudar a Torá. Segundo esta perspectiva, este estudo tem um propósito prático. No entanto, o simples fato de a estudar - mesmo que não haja nenhuma aplicação prática ou razão para fazê-lo - é extraordinariamente precioso aos olhos dos Céus. Alguns de nossos mestres foram ainda mais longe, ao dizer que o estudo da Torá, apenas, é mais importante do que o cumprimento dos outros mandamentos, apesar de nenhum deles ter o poder de substituir o outro. Pois como está escrito nas preces matinais que recitamos todos os dias,...”Elu devarim…São estes os mandamentos que, se os praticar, o homem colherá os frutos neste mundo, enquanto que a sua recompensa final o esperará na vida futura: honrar pai e mãe, praticar atos de bondade, ...promover a paz entre os homens; mas, acima de tudo, reina soberano o estudo da Torá, cujo valor a todos eles se equipara” (Mishná: Peá 1:1).

A raiz da palavra hebraica Torá é hora’á - ensinamento. O Pentateuco ensina ao homem o caminho que terá que seguir se optar por viver de acordo com os desejos e diretrizes de D’us. Aquele que estuda a Torá precisa viver de uma forma que honre e eleve o judaísmo e o povo judeu. Sua vida e conduta devem refletir a sabedoria, piedade, compaixão e todos os outros ideais incorporados pela Torá. Pois, caso contrário, diziam nossos sábios, “melhor seria nunca ter vindo a este mundo”. Afirmavam, também, categoricamente, que aquele que alega ter adquirido a sabedoria da Torá, mas não cumpre os seus mandamentos nem pratica boas ações, não a incorporou, de fato, dentro de si.

Existe uma concepção errônea generalizada de que a Torá é simplesmente um livro de lei e história judaica-divina, mas, ainda assim, apenas isto. A verdade é que representa a Vontade e a Sabedoria do Criador. O Talmud discute uma grande variedade de assuntos - uns sublimes, outros mundanos - mas todos, de alguma forma, refletem o relacionamento e envolvimento de D’us com este Seu mundo. Diferentemente das obras da Cabalá, preocupa-se, sobretudo, com o terreno e o mundano. Discute o que há de mais intrincado e, às vezes, o que aparenta ser totalmente irrelevante na lei judaica. Porém, oculto em suas lições e ditames, escondem-se profundos segredos e ensinamentos espirituais e místicos.

A Torá abarca todos os assuntos e a estudamos para entender como nos relacionar e agir diante de cada um destes. Nas palavras do Rabino Steinsaltz: “Os mandamentos e as aplicações práticas das leis da Torá estão subordinados à busca pela verdade que se esconde por trás de todas as coisas. O propósito sublime do Talmud não é utilitário, de forma alguma - mas unicamente a busca da verdade”. É por esta razão, como vimos acima, que a aplicação prática de qualquer tema nele discutido é de importância secundária. O que esta obra busca é a verdade e a visão da Torá sobre qualquer assunto ou matéria, quer seja legal, histórico ou filosófico. Portanto, uma prova ou declaração que possa dar a impressão de ser auto-evidenciada poderá ser questionada ou mesmo rejeitada pelo Talmud - pois pode conter alguma falha sutil, quase imperceptível em sua lógica ou argumentação. Este apenas aceita a argumentação mais convincente. Simboliza a busca do judaísmo pela verdade absoluta. Não há dogmas na religião judaica: quase tudo pode e deve ser questionado, apesar de que a pessoa conscienciosa deve entender que a alma humana ainda não está preparada e, portanto, não pode pretender compreender, em toda a sua plenitude, a Vontade e a Sabedoria do Criador.

Como o objetivo primordial do Talmud é essa busca da verdade, esta obra é praticamente toda estruturada em perguntas e respostas. E mesmo quando as perguntas não são explicitamente articuladas, encontram-se por trás de cada afirmação e ensinamento. Talvez seja o único livro sagrado, no mundo, que não apenas permite, mas estimula os que o estudam a questioná-lo. A Sabedoria de D’us está oculta em suas palavras, cabendo a cada um dos que o estudam, seja este sábio ou iniciante, tentar desenterrá-la. No entanto, é preciso lembrar-se que a Torá, em sua plenitude, originou-se de D’us; cada um de seus ensinamentos que já foi ou venha a ser praticado, foi transmitido a Moisés no Monte Sinai. Assim sendo, quando um sábio Talmudista faz uma afirmação, ele não está agregando ou opinando sobre algo, mas sim revelando um assunto da lei ou da sabedoria Divina. Aquele que domina as matérias acerca da lei judaica precisa ser um verdadeiro mestre em Torá. E deve entender que carrega consigo a tremenda responsabilidade de discernir e transmitir a Vontade de D’us ao povo judeu. Seus ensinamentos devem ser firmemente arraigados no Talmud e no Código da Lei Judaica, devendo ser uma extensão viva da Torá, originalmente entregue a Moisés.

É bem verdade que há diferenças de opinião no Talmud e isto, infelizmente, tem sido usado como desculpa para interpretações pessoais e aplicações impróprias ou tentativas de “reformular” as leis da Torá. Estas concepções errôneas geralmente são oriundas da falta de entendimento da dimensão espiritual da lei judaica. Diferentemente dos campos de conhecimento secular, pontos de vista diferentes sobre a Torá não constituem imprecisão ou erro. Pelo contrário, os mandamentos aparentemente contraditórios - que na prática, são raros - refletem as diferentes maneiras pelas quais D’us se relaciona com o mundo: por vezes com flexibilidade e condescendência, por vezes, com maior severidade. Uma das maiores polêmicas históricas no Talmud ocorre entre as escolas de dois grandes sábios: Hillel e Shammai. Suas disputas acabaram sendo resolvidas por uma voz que emanou dos Céus, afirmando: “Ambos transmitem as palavras do D’us Vivo, mas a decisão está alinhada com a escola de Hillel”. O fato de um método ser preferível ao outro não invalida o outro nem significa que seja impreciso, de forma alguma. Os místicos judeus ensinaram que Hillel personificava o atributo Divino da flexibilidade e condescendência, enquanto que Shammai incorporava as qualidades Divinas da precisão e do rigor. Explicam que como vivemos em um mundo imperfeito, necessitando constantemente de misericórdia, seguimos, quase que sem exceção, os mandamentos da Torá de acordo com os ditames da escola de Hillel. Na era messiânica, no entanto, quando o mundo atingir um estado de perfeição, iremos seguir a Torá como a ensinava Shammai. Por isso, devemos sempre lembrar que não há ensinamento alheio, não pertinente, no Talmud. Ainda que não sejam seguidos os ensinamentos de um determinado sábio - qualquer que seja a razão para tal - não podem, de forma alguma, ser depreciados, pois também esses preceitos são oriundos do Monte Sinai. Há uma história sobre um sábio que afirmou que um certo ensinamento não era de seu agrado, sendo repreendido por seus colegas que lhe disseram ser errado afirmar que “isto é bom e isto não é”, em se tratando da Torá.

O Pentateuco, em sua totalidade, é perfeito e aquele que o estuda com o espírito preparado - e com todo o respeito que merece - conecta-se de imediato com D’us. Pois o Senhor de Tudo, cujo Saber é Infinito, “condensou” Sua Sabedoria em Sua Torá, para que o homem possa entender o pouco sobre Ele que pode ser compreendido pela mente humana. O mérito no estudo da Lei de Moisés, por si só - não com o intuito de conquistar honras e louvores - tem inestimável valor para os Céus. Sobre o estudo do Talmud, especificamente, declarou o Rabi Yehudá ha-Nassi: “Não há medida maior de recompensa do que esta”.

Através dos séculos, o povo judeu fez muitos sacrifício, para poder estudar e ensinar e, desta forma, preservar o Talmud. Entenderam - da mesma forma, como, infelizmente, o fizeram seus inimigos - que, de fato, era o que os preservava. Não há antídoto maior contra a assimilação judaica do que o estudo da Torá. E esta é uma das razões pelas quais, juntamente com a prática da caridade, constitui o maior dos mandamentos Divinos. Mas este estudo serve como uma confirmação disso, ainda maior do que a sobrevivência coletiva do povo judeu. Ensinam os nossos sábios que o estudo adequado da Torá “salva e protege” e é fonte de bênçãos para uma vida longa, com fartura e benesses. Pois está escrito: “O alongar-se da vida está na sua mão direita; na sua esquerda, riquezas e honra” (Provérbios, 3:16). Mesmo se apenas um único indivíduo estudar a Torá, são tantos e tão grandes os seus méritos, que têm o poder de acarretar bênçãos para o mundo inteiro. O judaísmo ensina que toda a existência física é sustentada pela força da oração, pelo estudo da Torá e pela prática de atos de bondade e justiça. Aquele que estuda a Lei de Moisés, torna-se, portanto, parceiro d’Aquele que sustenta o Universo por Ele criado.

Os sábios talmúdicos e mestres da Cabalá revelam que o estudo da Torá serve como escudo para a alma humana, protegendo-a após a vida. E, como “não há esquecimento diante do Trono de Glória do Senhor”, mesmo se uma pessoa esquecer parte da sabedoria da Torá que adquiriu, sua alma a recorda e a transporta para a eternidade. Contanto que a pessoa se mantenha fiel a seus preceitos, aprofundando-se nos mesmos e andando por seus caminhos, esta mesma Torá sempre implorará diante da Corte Celestial por essa pessoa e por todo o povo judeu. Por isso, afirmamos na prece que celebra o término de um tratado do Talmud: “A ti voltaremos e tu retornarás a nós; nossos pensamentos estão fixos em ti, assim como os teus estão fixos em nós; não te esqueceremos assim como tu não nos esquecerás - nem neste mundo, nem no Mundo Vindouro!”


sábado, 22 de maio de 2010

Uma análise léxico-sintática "cristológica" de Isaias 53:11

Primeiramente é interessante considerar várias versões do texto sagrado para que tenhamos uma idéia geral de seu sentido básico.“Depois de tanta aflição verá a luz, e ficará satisfeito. Com seu conhecimento meu servo justo justificará a muitos, e levará as iniqüidades deles” (Versão de N.R.V.).

“Pelas fadigas de sua alma verá a luz e se contentará. Por suas desfeitas justificará meu servo a muitos e as culpas deles ele suportará” (Bíblia de Jerusalém – Edição Espanhola).

“Verá o fruto do trabalho de sua alma e ficará satisfeito: com seu conhecimento meu justo servo justificará a muitos, pois ele mesmo carregará com suas iniqüidades”. (Santa bíblia, Versão Moderna, Sociedade Bíblica Americana).

“Depois de tanta aflição ele verá a luz, e ficará satisfeito ao sabê-lo, o justo servo do Senhor libertará a muitos, pois carregará a maldade deles”. (Versão Popular da Bíblia em Espanhol – Dios Habla Hoy).

“Livrada a sua alma dos tormentos verá, e o que verá satisfará a sua alma e seus desejos, o Justo, meu servo, justificará a muitos, e carregará com as iniqüidades deles”. (Sagrada Bíblia, Biblioteca de Autores Cristãos).

“Verá o fruto das preocupações de sua alma e ficará saciado. Este mesmo justo, meu servo, diz o Senhor, justificará a muitos com sua doutrina e pregação, e carregará sobre si os pecados deles”. (Bíblia Sagrada Versão Catelhana de Félix Torres Amat – Revista Católica).“Ele verá o fruto das fadigas de sua alma, ele estará completamente satisfeito. Por seu conhecimento meu servo justo justificará a muitos, e ele levará os pecados deles”. (Minha Versão baseada em: The Interlinear Hebrew/Greek English Bible, Vol. 3).

Minha Versão em Hebraico em transliteração da Bíblia Hebraica (Isaias 53:11):

“ME AMAL NAPESHO YIRE ET YISEBO BEDA ETTO YASEDDYK ABEDDY LORABBYM WA AONOTAM HU YISEBBEL”.

Faremos uma análise das palavras AMAL = trabalho; e EVED = servo.

1. AMAL (trabalho) – É uma palavra que significa trabalho mas com os olhos na sua dificuldade. É trabalhar duramente com demasiado esforço. É o esforço de trabalhar suas mãos para terminar uma tarefa, mas sempre com uma atenção particular nas dificuldades. AMAL tem o significado do ato em si mesmo, mas também é o resultado do ato; que neste caso é o fruto ou produto do trabalho. O servo do Senhor não teria que sofrer por nada ou de graça, mas haveria uma recompensa por seu esforço.

Os cantos do servo são uma seqüência e há uma progressão que leva ao clímax em Isaias 52:13-53:12; no quarto canto do servo. Parece que o trabalho do servo é sem resultado, mas ele espera em Deus sua recompensa; é isso o que indica a palavra AMAL. Como exemplo temos a experiência de Jesus quando estava sofrendo na cruz e não havia ninguém que estivesse crendo nele, mas um dos ladrões foi sem dúvida o primeiro fruto do trabalho do Messias (Cf. Luc. 23:39-42).

Sem dúvidas Jesus Cristo “trabalhou tendo os seus olhos fixos não apenas nas dificuldades, mas também, e muito mais nos resultados”. (Cf. Mat. 26:36-46). Quando no Getsemâni sua humanidade reinou por um momento diante do sofrimento, mas com os olhos cheios de amor ele olhou ao futuro e viu os resultados de seu esforço, ele viu a cada um de nós.

2. EVED (servo) – Em Isaias a palavra, servo, aparece 61 vezes e destas 53 vezes ela está relacionada com YHWH, ou seja, “servo de Yahweh”. A raiz da palavra pode também ser traduzida como escravo. Além disso a palavra servo está determinada em seu sentido como conceito oposto (ADON) Senhor. Como conceito relacional, EVED adquire seu pleno significado, ou seja: servo subalterno, súdito, ministro.

Que um homem se denomine como servo de Deus, ou se chame servidor de Deus no AT é conseqüência natural da concepção de Deus como Senhor. A associação primária da palavra EVED não é a de estar submetido, mas a de pertencer ao Senhor e estar protegido por ele. A única diferença essencial na relação do servo entre os homens e entre o homem e Deus consiste em que o servo de um homem pode significar também uma gravíssima diminuição da existência, enquanto que ser servo de Deus significa sempre ter um bom Senhor. Nunca pode significar escravidão em sentido negativo.Mais especificamente o significado de servo de YHWH nos cantos do servo de Deus (Isaias 42:1-53:12) só é possível esclarecer pelo conjunto dos textos. O sofrimento do servo (52:13-53:12) está estreitamente ligado com a atuação de Deus na história humana. Há comentaristas que sugerem que o servo de Deus descrito na perícopa é Ciro, ou Zorobabel ou mesmo o próprio Israel. Mas, temos de considerar que no texto o profeta fala claramente do servo como uma figura distinta de Ciro, Zorababel e Israel. O servo é retratado como uma figura individual, e além disso devemos considerar que ao ter fracassado o serviço de Israel a Deus, o próprio Deus se encarrega de eliminar o pecado do povo. Através de seu serviço atua YHWH como confirma o texto de Isaias 52:13-53:12.

De acordo com muitos comentaristas, muito se tem escrito sobre a identificação do servo do Senhor apresentado em Isaías 40-55; ainda que a expressão ocorra apenas em Isaías 42:19. Uma ampla relação do sentido da palavra servo tem sido feita, mas temos que considerar que o sentido e o uso da palavra servo no AT segue em textos do NT. Na LXX EVED é mais traduzido como DOULOS = escravo. De maneira muito significativa, Jesus é chamado de servo do Senhor (Cf. Atos 3:13, 26; 4:27,30), provavelmente identificado aqui como o servo de Isaías 53:11. O próprio Cristo se colocou em posição de servo, se humilhou até a morte e morte de cruz (Cf. Filip. 2:6-8), mas obteve a vitória eterna (V. 9-11). Baseado em atos 8:26-40 o servo de Isaías 53 é nada menos que o próprio Jesus (V. 35).

As origens do messianismo de Jesus

O Messianismo Catastrófico e as Origens do Cristianismo

O presente estudo tem como objetivo apontar a precedência do chamado “messianismo catastrófico” em relação às tradições cristãs, enfatizando que a crença no messias filho de José/Efraim possui antiguidade pré-cristã e que não se trata de uma concepção messiânica derivada do cristianismo.

Acreditava-se, até recentemente, que os judeus da Palestina judaica da época de Jesus concebiam a vinda de um só messias, o messias “filho de Davi”, que restauraria a realeza. No entanto, novas descobertas - e com elas novas interpretações sobre o imaginário judaico-cristão primitivo - têm mudado essa visão. Mediante essas descobertas, os pesquisadores se tornaram cada vez mais dispostos a conceberem o messianismo judaico da época de Jesus como pluriforme e variado, existindo não só uma ou duas, mas inúmeras concepções sobre o messias. O presente trabalho traz alguns apontamentos sobre o chamado “messianismo catastrófico”, sua antiguidade e sua relação com as tradições cristãs. Esperamos contribuir também para apagar os mitos de que os judeus do primeiro século não foram capazes de conceber um messias que morre e que a concepção messiânica na época de Jesus era homogênea.

1. Repensando o Messianismo

Não foram poucos os estudiosos que alegaram que a ideia de um messias sofredor, cujo destino era ser humilhado e assassinado, era uma ideia estranha às tradições messiânicas existentes na Palestina judaica do século I d.C. Rudolf Bultmann (apud, KNOHL, 2001: 16) talvez tenha sido o estudioso que mais contribuiu para a disseminação dessa visão: “a ideia de um Messias, ou filho do Homem, sofredor, morrendo e ressuscitando era desconhecida no judaísmo”. Geza Vermes (2006: 215), por sua vez, não deixa dúvidas de que o modelo de messias que morre é posterior à escrita dos Evangelhos bíblicos:

A representação do Messias assassinado da tribo de Efraim, ocasionalmente mencionado na literatura rabínica [...] é de pouca valia para o estudo dos Sinóticos. [...] Como nenhum texto fale do Messias assassinado anterior à segunda revolta judaica contra Roma durante o reino de Adriano (132-5 d.C.), é provável que a figura tenha sido moldada a partir do líder derrotado daquela rebelião, Simon bar Kosiba, que foi morto na batalha de Betar em 135 d.C. Assim, ele não se qualifica cronologicamente como modelo potencial para o Messias dos Evangelhos.

Com freqüência a literatura rabínica faz menção a um messias chamado “Messias ben Efraim”, também chamada de “Filho de José” ou “Filho de Efraim”, que deveria morrer para salvar Israel. O Talmude Babilônico, Sukka 52a, que geralmente é concebido como a primeira referência ao messias filho de José na literatura rabínica, traz o seguinte texto:

“E a terra pranteará, família por família à parte. A família da casa de Davi à parte e suas mulheres à parte” (Zc 12:12). [...] Qual é a causa do luto? Rabi Dosa e os rabinos diferem. Um diz: “É por causa do Messias ben José que foi assassinado”; [...] por isso é que está escrito: “e eles olharão para mim. Quanto àquele que eles transpassaram, eles o lamentarão como se fosse a lamentação de um filho único; eles o chorarão como se chora um primogênito (Zc 12,10) [...] Nossos rabis nos ensinaram: O Santo, Bendito seja Ele, dirá ao Messias filho de Davi (que ele possa se revelar o mais breve possível em nossos dias!): “Peça-me qualquer coisa e eu lhe darei” (Salmos 2) [...] Mas quando ele perceber conta de que o Messias Filho de José está morto, ele dirá: “Senhor do universo, peço de você somente o dom da vida” (cf. MITCHELL, 2006: 77, 83).

No entanto, a escritura do Talmude só começou nos séculos posteriores ao cristianismo e, portanto, conforme o exposto por Geza Vermes, o Messias Filho de José pode ser uma invenção judaica criada a partir de Jesus para competir com o cristianismo. Em todo caso, tal modelo de messias era concebido pelos estudiosos como bastante tardio para ser capaz de trazer alguma contribuição aos estudos sobre o cristianismo primitivo, e foram muitos os especialistas que viram na figura messiânica de Efraim, ou Messias filho de José, uma “cópia” deliberada da figura messiânica de Jesus apresentada nos Evangelhos, e por isso não lhe deram crédito e muito menos antiguidade.

No entanto, como ressalta Scardelai (1998: 120): “O caráter da doutrina messiânica no tempo de Jesus é marcado pela fluidez e espontaneidade, além da quase total ausência de princípios doutrinários cristalizados”. Em outras palavras, não se deve esperar que o messianismo palestino-judaico do primeiro século apareça com uma só forma. Um desses modelos seria o do “servo sofredor”, tal como apresentada no texto do profeta Isaías (53.3-5) que o retrata como justo, manso e humilde:

Era desprezado e abandonado pelos os homens, homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento, como pessoa de quem todos escondem o rosto; desprezado, não fazíamos caso nenhum dele. E, no entanto, eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si, nossas dores que ele carre-gava. [...] Mas ele foi trespassado por causa das nossas transgressões, esmagado por causa das nossas iniqüidades. O castigo que havia de trazer-nos a paz, caiu sobre ele, sim, por suas feridas fomos curados.

Flusser (apud, SCARDELAI, 1998: 299), erroneamente, afirma que a ideia do messias como o “servo sofredor” de Isaías foi exclusiva do cristianismo:

A exegese cristã privilegiou o significado vicário do sofrimento de Jesus, à luz da figura do “servo”, retratado por Isaías, uma abordagem rejeitada pelo judaísmo normativo. A exegese judaica não aplica a imagem do “servo de Isaías” às qualificações pessoais messiânicas, exceto se aí estiver presente a figura do próprio Israel coletivo, o “servo de Deus” por excelência.

No entanto, essa visão é equivocada. Knohl (2001: 38) afirma que: “[...] a interpretação messiânica de Isaias 53 [sobre o “servo sofredor”] não foi descoberta na igreja cristã. Ela já havia sido desenvolvida pelo Messias de Qumrã”. O movimento de Qumrã, de acordo com Knohl (2001: 28, 31), já trazia a ideia de que o messias iria padecer, mas que também seria glorificado, que consta nos “Hinos Messiânicos dos Manuscritos do Mar Morto”:

“[Quem] foi desprezado como [eu? E quem] foi rejeitado [pelos homens] como eu? Quem, como eu, suport[ou todas as] aflições? Quem se compara a mim [na resistência do mal? [...] [Q]uem foi considerado desprezível como eu e, no entanto, quem é igual a mim em minha glória?”

Tendo essa ideia sido explorada, juntamente com a do messias levítico, antes mesmo do cristianismo vir a existir, é lógico conceber que vários movimentos messiânicos e apocalípticos dos primeiros séculos compartilhavam dessas mesmas crenças.

De acordo com Mitchell (MITCHELL, 2008 [online]), esse modelo de “servo sofredor” foi o principal inspirador de um tipo de messianismo diferente do messianismo real e sacerdotal, e que podemos encontrar indícios da existência da crença nesse messias nos Manuscritos de Qumrã. Esse modelo foi chamado de “messianismo efraimita-josefita”, ou “Messias filho de Efraim/José”.

Para provar a existência desse messias, Mitchell (2008: 03 [online]), compara as afirmações do Talmude Sukka 52b, que faz menção a quatro personagens escatológicos, chamados de “Os Quatro Artesãos”, com o manuscrito de Qumrã de 4Q175 (4QTestimonia), uma antologia messiânica e coleção de textos bíblicos fundamentais ou “testemunhos”, relacionadas com a crença messiânica. O Talmude Sukka 52b (In: MITCHELL, 2008: 03 [online]) traz a seguinte passagem:

E o Senhor me mostrou quatro chifres (Zac 2.3 [1.18]). O que são esses quatro chifres? R. Hana B. Bizna cita o R. Simeon Hasida que responde: O Messias filho de David, o Messias filho de José, Eliahu (Elias) e o Sacerdote Justo. R. Shesheth objetou…, estes quatro personagens estão relacionados com o exílio diaspórico.

Desse modo, esses “quatro artesãos” se referem a: 1) o “Messias filho de Davi”; 2) o “Sacerdote Justo”, ou “Melchizedek” (Melquisedeque); 3) Elias; 4) o “Messias da Guerra”, que se refere ao “Messias filho de José”.

Segundo Mitchell (2008: 06 [online]), de modo surpreendentemente idêntico, o manuscrito de Qumrã de 4Q175 (4QTestimonia), traz uma menção dos “Quatro Artesãos” apresentados na mesma ordem: o profeta, o rei, o sacerdote e o guerreiro, como libertadores escatológicos, começando suas correspondentes referências bíblicas: (1) Deut. 18.18-19, que discorre sobre o profeta como Moisés (profeta), (2) Num 24.15-17, que alude à estrela que sai de Jacó (rei); (3) Deut. 33.8-11, que menciona a bênção dos Levitas (sacerdote); (4) Josué 6.26, que menciona a maldição de Josué a Jericó, seguido de uma passagem do “Apócrifo Josué”, também chamado de “Salmos de Josué” (4Q379) outro documento encontrado em Qumrã.

Comparação entre Os Quatro Artesãos da literatura rabínica e 4Q175
4Q175 (Qumrã)
Profeta
Rei Messias
Sacerdote
Josué, Messias da Guerra (filho de José)

Os Quatro Artesãos da tradição rabínica
Profeta
Rei Messias
Sacerdote
Messias da Guerra filho de José

De acordo com Mitchell (2008: 02, 03 [online]), as implicações messiânicas que surgem no quarto depoimento a respeito de Josué não devem ser desprezadas:

Não é clara a razão pela qual a figura de Josué tem sido tão esquecida. Todos os quatro testemunhos são idênticas em sua estrutura: a figura do herói, o versículo bíblico e maldição. Se os três primeiros representam libertadores escatológicos, então o caso do quarto deveria ser tomado a priori da mesma forma. Isto não apenas explicaria a figura de Josué em si, mas faria sentido em todo o documento em vez de apenas os seus primeiros três-quartos. Mas, por algum motivo isso não tem sido sugerido. No entanto, proponho que a interpretar o quarto depoimento de uma forma coerente com os três primeiros é perfeitamente razoável e produz um resultado bastante aceitável, isto é, um Josué escatológico. Esta figura, como o Josué bíblico, seria um conquistador bélico e da ascendência de José e Efraim. Poderíamos com razão chamá-lo de Messias da Guerra ben Efraim ben Joseph (filho de Efraim filho de José).

De fato, Josué foi homem de guerra e sucessor de Moisés, da tribo de Efraim, filho de José. Ele é, sem dúvida, o heroi do quarto depoimento, assim como Moisés, a Estrela de Jacó, e os Sacerdotes Levitas são os herois dos três primeiros (MITCHELL, (2008: 01 [online]). Desse modo, Mitchell prova não apenas que a tradição rabínica do Messias filho de Efraim/José é pré-rabínica, como também pode ter influenciado a formação da imagem de culto cristã.

2. O Apocalipse de Gabriel: repensando Jesus

Knohl (2001: 41) propôs a hipótese de que a crença no messias que morre e ressuscita ao terceiro dia era uma representação imaginária bastante comum na Palestina do primeiro século – até mesmo muito tempo antes de Jesus ter nascido. Essa hipótese foi confirmada em julho de 2008, pela descoberta do texto recém publicado chamado “Apocalipse de Gabriel”, em que, de acordo com as restaurações textuais de Israel Knohl e de Ada Yardeni, também traz a ideia do messias ressurrecto. Esse texto data do final do século I a.C., o que significa que se trata de um documento pré-cristão (YARDENI, 2008 [online]).

Nas linhas 16-17 há a frase “Meu servo Davi, peça a Efraim [que ele coloque o sinal...” (YARDENI, 2008 [online], p. 01). Infelizmente, a natureza do sinal não é especificada, mas, segundo Knohl (2009 [online]), parece ser o sinal de salvação. No entanto, o fato de Davi ser enviado por Deus para fazer um pedido a Efraim para colocar o sinal pode atestar que Efraim está em uma posição superior. Ele, e não Davi, é a pessoa-chave que é convidada a colocar o sinal; Davi é apenas o mensageiro.

Na linha 80 desse escrito, Gabriel determina ao “príncipe dos príncipes” (o messias) que: “Depois de três dias, viva (ressuscite)!” (YARDENI, 2008 [online],. linha 80, p. 02). Essa passagem - tal como a tradição que serviu de base para Apocalipse de João, cap. 11, como o Apocalipse de Zerubabel, e como o Oráculo de Histaspes – mostra que, em uma época anterior ao cristianismo, existiam expectativas messiânicas ligadas a crença de que o messias morreria e ressuscitaria no terceiro dia.

2.1 “Jesus” antes de Jesus

Tais considerações levaram os especialistas a repensarem o que já sabiam sobre Jesus e procurarem sinais em sua tradição literária que constituísse um paralelo entre essas duas concepções. Por exemplo: ao confrontarmos a imagem evangélica de Jesus com a imagem do messias filho de José, surge uma pergunta: Se o modelo de messias “filho de José” influenciou Jesus, não seria muita coincidência que o nome do pai civil de Jesus seja “José”? De fato. Embora Jesus, como qualquer outro ser humano, tenha realmente tido um pai, é muito provável que a filiação de Jesus a José, o carpinteiro, seja uma “historização” de um título messiânico – o título de messias “filho de José” (o patriarca bíblico).

Desse modo, o título messiânico “filho de José”, originalmente usado para designar o modelo de messias que Jesus representava, transformou-se mais tarde no nome de Jesus e no nome de seu pai terreno.

O mesmo questionamento pode-se fazer em relação ao nome “Jesus”. De acordo com o Livro bíblico de Josué, Josué foi a pessoa que cumpriu a profecia de José e de Jacó, feitas no Livro de Gênesis, de que conquistaria a terra de Canaã para os filhos de Israel. Josué (cuja grafia em hebraico é a mesma de Jesus), que foi considerado o sucessor de Moisés e que encabeçou a Conquista de Canaã, pertencia à tribo de Efraim, filho de José. A proeminência da figura de Josué como um tipo messiânico pode ser deduzida pelo fato de que, na época da dominação romana, boa parte da crença messiânica estava vinculada a ideais de guerra, em que o messias venceria os inimigos de forma belicosa. No imaginário judaico e na tradição bíblica, Josué foi tido como um dos maiores guerreiros da história de Israel, protótipo de qualquer guerreiro que lutasse pela liberdade de Israel. Desse modo, é inevitável que a figura de Josué seja elevada ao status de messias guerreiro e libertador de Israel.

Flávio Josefo (In: WHISTON, 2008 [online]) nos oferece um exemplo da aspiração messiânica em torno de Josué quando relata que, durante o reinado de Nero, um autodenominado profeta aparecera no Monte das Oliveiras e previram que, como Josué, ele iria fazer cair as muralhas da cidade em seu comando. Uma vez que o Monte das Oliveiras era reconhecido, de acordo com Zacarias 14.4, como o lugar onde o Messias apareceria, Josefo vê esse profeta como um aspirante messiânico de Josué. Desse modo, temos Josué, além de Davi, Elias, Aarão e Moisés, entre outros, como modelo bíblico de proclamação messiânica.

Na literatura samaritana, o livro denominado “Segredos de Moisés” ou “ASATIR” (In: KRAFT, 2008 [online]), o qual foi compilado em torno do final do século III a.C., faz algumas observações sobre os Oráculos de Balaão (Num 10,45 a 24,17), e afirma que: “ „Uma estrela procederá de Jacó‟ - esta refere-se a Finéias, e um cetro procederá de Israel‟ - este se refere a Josué” (tradução nossa).
Na literatura tardia dos samaritanos, Fineias e Josué como figuras escatológicas, são substituídos por Tahab, o profeta-messias que irá construir o templo no monte Gerizim (KRAFT, 2008 [online]). Sendo que Jesus é procedente da terra imediatamente próxima à Samaria, ou seja, a Galileia, é possível que sua autoconsciência messiânica girasse em torno das ideias nortistas.

Kraft (2008 [online]) também comenta que uma versão latina de 4 Esdras 7.28f traz a figura do Messias vitorioso denominado “Josué”, o qual morre na transição para o novo mundo e cita uma tradução grega de Habacuque 3.13 que traz: “Tu sais para salvamento do teu povo, por Josué o teu ungido” ao invés de “Tu sais para salvamento do teu povo, para salvar o teu ungido”.

A passagem de Habacuque 3.13 em hebraico traz as seguintes expressões: ישע (yesha`) חישמ (mashiyach). Yesha` significa “salvação”, enquanto mashiyach significa “ungido”. No entanto, a palavra “yesha`” também pode ser traduzida por “Jesus”, ou “Josué” (ישע = yeshua` = Jesus/Josué) (MENDES , 2000; ALAND, 1988).

Os Oráculos Sibilinos 5.256-259 (In: KRAFT, 2008 [online]), que datam do ano de 140 a.C., traz a seguinte passagem messiânica: “[...] uma vez que deve vir do céu, um homem de pré-eminente […] o mais nobre dos Hebreus [...] que em seu tempo fez o sol parar” (tradução nossa). O único personagem bíblico que fez o sol parar foi Josué, na batalha de Aijalon (Js 10.12-14). Desse modo, esse homem “pré-eminente” configura um novo e escatológico Josué.

Desse modo, também podemos questionar se o nome de Jesus de Nazaré não é mais que um título messiânico. Crossan (2004: 558) nos oferece uma luz para essa questão, ao afirmar que a história de Barrabás nos evangelhos bíblicos é simbólica: foi criada porque a multidão de Jerusalém tinha escolhido os salvadores errados, do tipo rebeldes-bandidos (Barrabás), ao invés do salvador correto (Jesus), na guerra contra Roma que começou em 66 d.C. Desse modo, dois “salvadores” se justapunham. Sendo que vários manuscritos gregos de Marcos 15.7 trazem a designação “Jesus” antes de “Barrabás” (literalmente, “Jesus filho do Pai”), é possível que “Jesus” fosse mais que um simples nome, e que originalmente era concebido como uma designação messiânica, já que “Jesus” significa “salvador” = a função do messias.

2.2 O messias efraimita na tradição cristã

O Evangelho de João, que traz materiais tradicionais bastante antigos sobre Jesus, muitas vezes faz alusão a uma ideia diferente de messias, que se coaduna muito mais ao modelo messiânico efraimita que ao modelo davídico. Pietrantonio (2008 [online]) apresenta algumas indicações, no Evangelho de João, da influência do messianismo efraimita:

O EvJn [Evangelho de João] 11,54 relata que Jesus permaneceu três meses, segundo sua cronologia, em uma aldeia chamada Efraim. No NT [Novo Testamento] essa é a única vez e o único lugar em que se recorre a esse nome. [...] A razão histórica dada pelo EvJn é que sacerdotes e fariseus (11,47) decidiram matá-lo (11,53). [...] A retirada a Efraim geográfica, na redação do EvJn, requer uma compreensão teológica, profundamente cristológica, enraizada em uma das expectativas messiânicas daquele tempo, a do Messias ben/bar Efraim/José.

O Evangelho de João 11.50 também faz uma alusão explícita à tradição efraimita, quando afirma que o sumo-sacerdote José Caifás profetizou que Jesus deveria morrer “pela nação e não somente pela nação, mas também para reunir em um só corpo os filhos de Deus, que andam dispersos”.

Os “filhos de Deus”, que andam “dispersos” se referem às Doze Tribos dispersas na época do Exílio Babilônico, que ocorreu no século VII a.C. Reunir as doze tribos e as duas casas de Israel, a saber: a Casa de Judá e a Casa de José, era uma das prerrogativas do messias. Historicamente, os descendentes de Efraim, pertencentes à Casa de José, se separaram da Casa de Judá, fundando um reino independente chamado de “Israel”. Estes viviam ao norte, longe do reino de Judá no sul, mas que logo foi destruído pela Assíria (ano de 722 a.C.) e os que restaram foram chamados de “samaritanos”, por causa da antiga capital desse reino, Samaria. Desse modo, Jesus, ao morrer, estaria não apenas cumprindo esperanças judaicas, mas também samaritanas ao reunir as casas de Judá e de José. A alusão a “morrer pela nação... e para reunir em um só corpo os Filhos de Deus” também é significativa, pois possui um significado claramente redentor, e, portanto, um significado “catastroficamente” messiânico.

Outro indício da presença efraimita na tradição antiga de Jesus está na passagem de João 7.41,42 que, ao narrar indagações messiânicas sobre Jesus realizadas por alguns indivíduos que pareciam conhecê-lo desde a infância, apresenta a seguinte indagação: “Porventura, o Cristo virá da Galiléia? Não diz a Escritura que o Cristo vem da descendência de Davi e da aldeia de Belém, donde era Davi?”. Tais indagações eram, de fato, perguntas retóricas: que razão teria o povo para realizar tais perguntas se Jesus tivesse realmente nascido em Belém e fosse da descendência de Davi? A despeito do que dizem os Evangelhos de Mateus e Lucas sobre a genealogia davídica de Jesus, o evangelho de João deixa implícito que Jesus era natural da Galiléia, e não de Belém, e que se silencia diante da tradição que considera Jesus como da descendência de Davi. Por isso, é provável que os demais evangelhos tentam apenas adequar, post hoc, Jesus ao modelo messiânico davídico, mas que originalmente Jesus fosse concebido como “filho de José”. Outras passagens dos evangelhos também desafiam a ideia vigente de um messias davídico, deixando transparecer que Jesus não se encaixava dentro desse modelo de messias. De acordo com Knohl (2009: 05 [online]), Jesus rejeita a ideia de que o Messias seja filho de Davi, quando afirma que: “Como podem os escribas afirmarem: "o Cristo é o filho de Davi‟, se Davi chama o messias de filho?” (Marcos 12.35).

Dada a natureza “catastrófica” do messianismo de Jesus, é mais correto afirmar que a figura e missão de Jesus se adequa muito melhor ao modelo de messias efraimita que ao modelo davídico.

3.3 A “ressurreição” do messias

A tradição existente por trás do Talmude Babilônico Sukka 52a apresenta paralelo com o Apocalipse de Zerubabel, o Oráculo de Histaspes e o Apocalipse de João, fundamentando biblicamente o destino trágico do messias sofredor “filho de José” na passagem de Zacarias 12.10, que traz o seguinte texto:

Derramarei sobre a casa de Davi e sobre todo habitante de Jerusalém um espírito da graça e de súplica, e eles olharão para mim a respeito daquele que eles transpassaram, eles o lamentarão como se fosse a lamentação por um filho único; eles o chorarão como se chora sobre o primogênito.

A tradição cristã, desde cedo, se utilizou dessa passagem bíblica como fundamento profético para a morte de Jesus, como atesta o Evangelho de João 19.31-36:

Como era a Preparação, os judeus, para que os corpos não ficassem na cruz durante o sábado – porque esse sábado era grande dia! – pediram a Pilatos que lhes quebrassem as pernas e fossem retirados. Vieram, então, os soldados e foram e quebraram as pernas do primeiro e depois do outro, que fora crucificado com ele. Chegando a Jesus e vendo-o já morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados traspassou-lhe o lado com a lança e imediatamente saiu sangue e água. [...], pois isso aconteceu para que se cumprisse a Escritura: Nenhum dos seus ossos será quebrado. E uma outra Escritura diz ainda: Olharão para aquele que traspassaram.

No entanto, é bastante provável que os antigos judeus e cristãos soubessem a identidade desse “primogênito” por meio das Escrituras hebraicas:: “[...] [deu-se o direito de primogenitura aos filhos de José, filho de Israel; [...] Judá suplantou seus irmãos e obteve que um príncipe nascesse dele, mas o direito de primogenitura pertencia a José”. (1Crônicas 5.1-2).

Da mesma forma, o profeta Jeremias (31.9) chama “Efraim” (se referindo a um dos dois reinos separados, mas que a literatura rabínica e possivelmente os judeus messiânicos do século I entenderam como uma referência ao messias filho de José) de “primogênito: “Em lágrimas voltam, em súplicas eu os trago de volta. Conduzi-los-ei às torrentes de água, por caminho reto, em que não tropeçarão. Porque sou pai para Israel e Efraim é o meu primogênito”. Sendo que o “primogênito” de Deus são os filhos de José (Efraim), seria óbvio que o Talmude Babilônico Sukka 52a associasse o messias filho de Efraim à passagem de Zacarias 12.10. Os adeptos do messianismo efraimita poderiam entender essa expressão como uma referência ao messias filho de José. Da mesma forma, o cristianismo entendeu essa expressão como uma referência ao messias Jesus Cristo (Hb 1.6; Lc 2.7; Rm 8.29; Cl 1.19).

O fato é que a ideia de primogenitura poderia ser facilmente confundida como um atributo do messias filho de José, sendo que o messias filho de José “viria primeiro” que o messias filho de Davi e, portanto, ser o primogênito. De acordo com o Talmude Sukka 52a (cf. MITCHELL, In: AVERY-PECK, 2006: 83), quando o messias filho de Davi pede o “dom da vida” para que possa ressuscitar o messias filho de José, que foi morto pelas forças de Gogue e Magogue, o messias filho de José é o “primeiro da ressurreição dos mortos”: não somente o messias filho de José é ressuscitado, mas também se realiza a esperança da ressurreição geral de todos os mortos profetizada em Daniel 12.2. Da mesma forma que Jesus Cristo foi o “primeiro da ressurreição dos mortos” (1Cor 15.20; Atos 26.23), o messias filho de José seria o primeiro a ressuscitar no evento da ressurreição geral de todos os mortos justos.

As duas principais passagens das Escrituras hebraicas que justificariam a ressurreição de Jesus, isto é, Oséias 6.2 e Ezequiel 37.1-10, foram escritas em um contexto efraimita: Enquanto a descrição do vale dos ossos secos Ezequiel é metáfora para a reunião das Casas de Judá e de Efraim, a ressurreição “ao terceiro dia” de Oséias 6.2 reflete a união entre Efraim e Judá e a dispersão de Israel, que será restaurada, ou “revigorada” no segundo dia e “ressuscitada” no terceiro dia. Desse modo, a ressurreição do messias de efraim, e provavelmente a ressurreição de Jesus, era um símbolo da “ressurreição” da nação de Israel através da união da Casa de Judá com a Casa de José/Efraim.

Conclusão

Diante dos fatos e indícios apresentados, somos capazes de compreender que não somente a Revelação de Gabriel, mas também o Evangelho de João e outros indícios esparsos na literatura judaica e cristã antiga nos fornecem subsídios para repensarmos uma nova visão a respeito da figura de Jesus e de sua ligação com o judaísmo e o messianismo de sua época, principalmente o messianismo efraimita. Vimos que a imagem de Jesus foi, de fato, influenciada pela tradição do messias efraimita, apesar de não podermos afirmar com precisão o quanto dessa influência foi deletada e o quanto ainda persiste na tradição sobre Jesus e nem o quanto essa influência foi apagada pela necessidade de se conceber Jesus como o messias davídico – o messias esperado dos judeus. Seja como for, esses dados poderão abrir novas possibilidades de leitura e interpretação dos textos bíblicos, da tradição judaica e das origens cristãs, contribuindo, assim, para uma maior compreensão da influência que a figura histórica de Jesus de Nazaré exerceu sobre a mente de seus ouvintes e seguidores, bem como seu real papel no cenário judaico do século I da Era Cristã.
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Referências Bibliográficas ALAND, Kurt (ed.) . The New Testament Greek. Third Edition. Stuttgart: United Bible Societies, 1988.
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____________. The Messiah Son of Joseph: “Gabriel‟s Revelation” and the birth of a new messianic model. In: Biblical Archaeology Review. Disponível em: < pubid="BSBA&Volume=" issue="5&ArticleID="> Acesso: 05 jan. 2009.
KRAFT, Robert A. Was there a “messiah-joshua” tradition at the turn of the era? Disponível em: <> Acesso: 20 ago. 2008. MENDES, Paulo. Noções do hebraico bíblico. Texto programado. São Paulo: Nova Vida, 2000; MITCHELL, David C. Rabbi dosa and the rabbis differ: Messiah ben Joseph in the Babylonian Talmud. In: AVERY-PECK, Alan J.(Ed.). The Review of Rabbinic Judaism. Ancient, Medieval and Modern. Volume 9. Leiden,The Netherlands: Koninklijke Brill, 2006.
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PIETRANTONIO, Ricardo. El Mesías Asesinado. El Mesías ben Efraim en el Evangelio de Juan. Disponível em: http://www.revistabiblica.org.ar/articulos/rb44_1.pdf Acesso em 14 de agosto de 2008. SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus.... São Paulo: Paulus, 1998. VERMES, Geza. As várias Faces de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006.
WHISTON, William (trad.). The Works of Flavius Josephus. In: Early Christian writings. Disponível em: <> Acesso: 01 set. 2008.
YARDENI, Ada. Hazom Gavriel in English. The Apocalypse of Gabriel. Disponível em: http://www.bib-arch.org/news/dssinstone_english.pdf Acesso em: 20 de agosto de 2008.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O Que é já foi, e o que há de ser também já foi, e Deus pede conta do que passou.

É um dia de sexta-feira e a comunidade se reúne no terreiro com os sacerdotes vestidos de branco, todos estão descalços e iluminados com a luz da lua, os tambores tocam altos e o som com a sua forte percussão vai até as entranhas da alma. As mulheres menstruadas são consideradas impuras e não devem participar dessa reunião sagrada no terreiro.

No terreiro estão às árvores consideradas sagradas, as danças são lindas, uma maravilha de se ver e dá uma vontade imensa de participar. Fora do terreiro estão vasilhames de barro com farinha e azeite. Irrompe um silêncio sagrado no arraial, porque é necessário reparar o mal, feito pela comunidade, e um bode será imolado e ofertado em sacrifício.

Você deve estar pensando: é mais um ritual de Macumba, Candomblé, Vodu, Santeria, ou outro ritual afro-diásporicos nas Américas. Contudo, eu te afirmo: você se enganou totalmente! Era um ritual dos antigos hebreus para louvar YHWH.

Então vamos compreender estes rituais dos antigos hebreu-israelitas realizado há milhares de anos e com continuidade dos seus descendentes nas Américas. É necessário que você tenha coragem de acompanhar esse estudo baseado nos escritos bíblicos.

O TERREIRO

O lugar do culto costumava ser num arraial (terreiro) também chamado de tenda da congregação descritos em diversos livros da Bíblia, e os participantes costumavam ficar descalços, porque o local de adoração era considerado sagrado, e deviam ficar com os pés no chão.

“E Eleazar, o sacerdote, tomará do seu sangue com o seu dedo, e dele espargirá para a frente da tenda da congregação sete vezes”. Números 19:4

“E estabeleceu Ezequias as turmas dos sacerdotes e levitas, segundo as suas turmas, a cada um segundo o seu ministério; aos sacerdotes e levitas para o holocausto e para as ofertas pacíficas, para ministrarem, louvarem, e cantarem, às portas dos arraiais de YHWH”. 2 Crônicas 3:12

“E sucedeu que, vindo a arca da aliança de YHWH ao arraial, todo o Israel gritou com grande júbilo, até que a terra estremeceu”. 1 Samuel 4:5

AS VESTES DOS SACERDOTES

O relato interessante é sobre as vestes dos sacerdotes:
“E o sacerdote vestirá a sua veste de linho, e vestirá as calças de linho, sobre a sua carne, e levantará a cinza, quando o fogo houver consumido o holocausto sobre o altar, e a porá junto ao altar. Depois despirá as suas vestes, e vestirá outras vestes; e levará a cinza fora do arraial para um lugar limpo”. Levitico 6:10-11

“E será que, quando entrarem pelas portas do átrio interior, se vestirão com vestes de linho; e não se porá lã sobre eles, quando servirem nas portas do átrio interior, e dentro.

Gorros de linho estarão sobre as suas cabeças, e calções de linho sobre os seus lombos; não se cingirão de modo que lhes venha suor”. Ezequiel 44: 17-18

O RECOLHIMENTO NO TERREIRO

"Também da porta da tenda da congregação não saireis por sete dias, até ao dia em que se cumprirem os dias da vossa consagração; porquanto por sete dias ele vos consagrará.

Ficareis, pois, à porta da tenda da congregação dia e noite por sete dias, e guardareis as ordenanças de YHWH, para que não morrais; porque assim me foi ordenado." Levítico 8:33-35

AS OFERENDAS E SACRIFÍCIOS

Muitas oferendas e sacrifícios foram praticados pelos hebreus para expiação de pecados, agradecimentos, votos, todas relacionadas ao equilíbrio com YHWH e nas relações sociais na comunidade. Estas oferendas iam da oferta da flor da farinha com azeite ao sacrifício de um boi.

OFERENDAS DE ANIMAIS

“E chamou o YHWH a Moisés, e falou com ele da tenda da congregação, dizendo:
Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Quando algum de vós oferecer oferta YHWH, oferecerá a sua oferta de gado, isto é, de gado e de ovelha.

Se a sua oferta for holocausto de gado, oferecerá macho sem defeito; à porta da tenda da congregação a oferecerá, de sua própria vontade, perante o YHWH.

E porá a sua mão sobre a cabeça do holocausto, para que seja aceito a favor dele, para a sua expiação.

Depois degolará o bezerro perante YHWH; e os filhos de Arão, os sacerdotes, oferecerão o sangue, e espargirão o sangue em redor sobre o altar que está diante da porta da tenda da congregação. Então esfolará o holocausto, e o partirá nos seus pedaços”. Levítico 1:6.

“E se a sua oferta for de gado miúdo, de ovelhas ou de cabras, para holocausto, oferecerá macho sem defeito.

E o degolará ao lado do altar que dá para o norte, perante YHWH; e os filhos de Arão, os sacerdotes, espargirão o seu sangue em redor sobre o altar”. Levítico 10-11.

“E se a sua oferta YHWH for holocausto de aves, oferecerá a sua oferta de rolas ou de pombinhos;
E o sacerdote a oferecerá sobre o altar, e tirar-lhe-á a cabeça, e a queimará sobre o altar; e o seu sangue será espremido na parede do altar;
E o seu papo com as suas penas tirará e o lançará junto ao altar, para o lado do oriente, no lugar da cinza;
E fendê-la-á junto às suas asas, porém não a partirá; e o sacerdote a queimará em cima do altar sobre a lenha que está no fogo; holocausto é, oferta queimada de cheiro suave ao YHWH”. Levítico 1:14-17

SOMENTE O SACERDOTE PODIA FAZER OS SACRIFICIOS

“Então o sacerdote ungido tomará do sangue do novilho, e o trará à tenda da congregação;
E o sacerdote molhará o seu dedo no sangue, e daquele sangue espargirá sete vezes perante o YHWH diante do véu do santuário.

Também o sacerdote porá daquele sangue sobre as pontas do altar do incenso aromático, perante YHWH que está na tenda da congregação; e todo o restante do sangue do novilho derramará à base do altar do holocausto, que está à porta da tenda da congregação”. Levítico 4:5-7

OFERENDAS DE FLOR DE FARINHA COM AZEITE

“E quando alguma pessoa oferecer oferta de alimentos ao SENHOR, a sua oferta será de flor de farinha, e nela deitará azeite, e porá o incenso sobre ela;
E a trará aos filhos de Arão, os sacerdotes, um dos quais tomará dela um punhado da flor de farinha, e do seu azeite com todo o seu incenso; e o sacerdote a queimará como memorial sobre o altar; oferta queimada é, de cheiro suave a YHWH”. Levítico 2-1-2.

O INCENSO

“Tomará também o incensário cheio de brasas de fogo do altar, de diante de YHWH, e os seus punhos cheios de incenso aromático moído, e o levará para dentro do véu.

E porá o incenso sobre o fogo perante YHWH, e a nuvem do incenso cobrirá o propiciatório, que está sobre o testemunho, para que não morra” Levítico 16:12-13.

ASPERSÃO DE SANGUE SOBRE O ALTAR, SACERDOTES E O POVO

“Moisés também fez chegar os filhos de Arão, e pôs daquele sangue sobre a ponta da orelha direita deles, e sobre o polegar da sua mão direita, e sobre o polegar do seu pé direito; e Moisés espargiu o restante do sangue sobre o altar em redor”. Levítico 8:24.

“Então sairá ao altar, que está perante o SENHOR, e fará expiação por ele; e tomará do sangue do novilho, e do sangue do bode, e o porá sobre as pontas do altar ao redor”. Levítico 16:18

“E daquele sangue espargirá sobre o altar, com o seu dedo, sete vezes, e o purificará das imundícias dos filhos de Israel, e o santificará”. Levítico 16:19

A CARNE DO SACRIFICIO ERA DISTRIBUIDA COMO ALIMENTO

Após o sacrifício dos animais a carne era distribuída no terreiro e os sacerdotes comiam primeiro.

“E de toda a oferta oferecerá uma parte por oferta alçada ao SENHOR, que será do sacerdote que espargir o sangue da oferta pacífica.

Mas a carne do sacrifício de ação de graças da sua oferta pacífica se comerá no dia do seu oferecimento; nada se deixará dela até à manhã.

E, se o sacrifício da sua oferta for voto, ou oferta voluntária, no dia em que oferecer o seu sacrifício se comerá; e o que dele ficar também se comerá no dia seguinte”. Levítico 7:14-16

AS ÁRVORES SAGRADAS

O povo de Israel teve árvores consideradas sagradas e algumas usadas para exercer julgamento.

“Assim Abrão desarmou o seu acampamento e foi morar perto das árvores sagradas de Manre, na cidade de Hebrom. E ali Abrão construiu um altar para o Deus Eterno”. Gênesis 3:18

“Não plantarás árvores sagradas, de qualquer espécie, ao lado do altar que levantares ao Senhor, teu Deus”. Deuteronômio 16, 21

“Naquela mesma noite, YHWH disse a Gideão: - Toma um touro gordo e um segundo touro de sete anos; derruba o altar de Baal que é de teu pai, e corta a árvore sagrada que está junto dele. Construirás depois um altar bem preparado em honra do Senhor, teu Deus, no cimo desta rocha firme”. Juízes 6: 25-26

“Tomarás, então, o segundo touro e oferecê-lo-ás em holocausto sobre a madeira da árvore sagrada que cortaste”.

PALMEIRA

“E Débora, mulher profetisa, mulher de Lapidote, julgava a Israel naquele tempo.

Ela assentava-se debaixo das palmeiras de Débora, entre Ramá e Betel, nas montanhas de Efraim; e os filhos de Israel subiam a ela a juízo”. Juízes 4:4-5

“E nelas, isto é, nas portas do templo, foram feitos querubins e palmeiras, como estavam feitos nas paredes, e havia uma trave grossa de madeira na frente do vestíbulo por fora”. Ezequiel 41:25

CARVALHO

“E Josué escreveu estas palavras no livro da lei de Deus; e tomou uma grande pedra, e a erigiu ali debaixo do carvalho que estava junto ao santuário do YHWH." Josué 24:26

“E entrou Gideão e preparou um cabrito e pães ázimos de um efa de farinha; a carne pós num cesto e o caldo pôs numa panela; e trouxe-lho até debaixo do carvalho, e lho ofereceu”. Juízes 6:19

“Então o anjo De YHWH veio, e assentou-se debaixo do carvalho que está em Ofra, que pertencia a Joás, abiezrita; e Gideão, seu filho, estava malhando o trigo no lagar, para o salvar dos midianitas". Juízes 6:11

“Então se ajuntaram todos os cidadãos de Siquém, e toda a casa de Milo; e foram, e constituíram a Abimeleque rei, junto ao carvalho alto que está perto de Siquém”.Juízes 9:6

“Sacrificam sobre os cumes dos montes, e queimam incenso sobre os outeiros, debaixo do carvalho, e do álamo, e do olmeiro, porque é boa a sua sombra; por isso vossas filhas se prostituem, e as vossas noras adulteram”. Oséias 4:13

OLIVEIRA, FIGUEIRA, VIDEIRA E O ESPINHEIRO

“Foram uma vez as árvores a ungir para si um rei, e disseram à oliveira: Reina tu sobre nós.

Porém a oliveira lhes disse: Deixaria eu a minha gordura, que Deus e os homens em mim prezam, e iria pairar sobre as árvores?

Então disseram as árvores à figueira: Vem tu, e reina sobre nós.

Porém a figueira lhes disse: Deixaria eu a minha doçura, o meu bom fruto, e iria pairar sobre as árvores?

Então disseram as árvores à videira: Vem tu, e reina sobre nós.

Porém a videira lhes disse: Deixaria eu o meu mosto, que alegra a Deus e aos homens, e iria pairar sobre as árvores?

Então todas as árvores disseram ao espinheiro: Vem tu, e reina sobre nós.

E disse o espinheiro às árvores: Se, na verdade, me ungis por rei sobre vós, vinde, e confiai-vos debaixo da minha sombra; mas, se não, saia fogo do espinheiro que consuma os cedros do Líbano”.Juízes 9:8-15

A FONTE MILAGROSA

“Então Deus fendeu uma cavidade que estava na queixada; e saiu dela água, e bebeu; e recobrou o seu espírito e reanimou-se; por isso chamou aquele lugar: A fonte do que clama, que está em Leí até ao dia de hoje”.Juízes 15:19

A DANÇA COM INSTRUMENTOS DE PERCUSSÃO

"Assim os cantores como os tocadores de instrumentos estarão lá; todas as minhas fontes estão em ti”. Salmos 87:7

“Então Miriã, a profetiza, a irmã de Arão, tomou o tamboril na sua mão, e todas as mulheres saíram atrás dela com tamboris e com danças”. Êxodo 15:20

“Louvem o seu nome com danças; cantem-lhe o seu louvor com tamborim e harpa”. Salmos 149:3

“Estiveste no Éden, jardim de Deus; de toda a pedra preciosa era a tua cobertura: sardônica, topázio, diamante, turquesa, ônix, jaspe, safira, carbúnculo, esmeralda e ouro; em ti se faziam os teus tambores e os teus pífaros; no dia em que foste criado foram preparados”. Ezequiel 28:13

A ENCRUZILHADA

"Porque o rei de Babilônia parará na encruzilhada, no cimo dos dois caminhos, para fazer adivinhações; aguçará as suas flechas, consultará os terafins, atentará para o fígado." Ezequiel 21:21

O conhecimento dos trabalhos feitos nos caminhos era notório das civilizações antigas.

CULTO A SERPENTE SAGRADA

O povo hebreu no deserto após ter sido atacado por serpentes venenosas obteve a cura ao encarar a serpente de bronze, perdendo o medo, e este fez com o culto à serpente perdurasse por 700 anos na sociedade dos hebreus, sendo veementemente combatida pelo rei Ezequias:

"Removeu os altos, quebrou as colunas e deitou abaixo o poste-ídolo; e fez em pedaços a serpente de bronze que Moisés fizera, porque até àquele dia os filhos de Israel lhe queimavam incenso e lhe chamavam Neustã." 2 Reis 18:4

O CONHECIMENTO DOS EGUNS

“Então serás abatida, falarás de debaixo da terra, e a tua fala desde o pó sairá fraca; e será a tua voz debaixo da terra, como a dum necromante, e a tua fala assobiará desde o pó”. Isaías 29:4

“Consulte as gerações passadas e observe a experiência de nossos antepassados. Nós nascemos ontem e não sabemos nada. Nossos dias são como sombra no chão. Os nossos antepassados, no entanto, vão instruí-lo e falar a você com palavras tiradas da experiência deles”. Jó 8,8-10.

"Pergunta às gerações passadas ou primeiras e medita a experiências dos antepassados. Porque somos de ontem, não sabemos nada. Nossos dias são uma sombra sobre a terra." Jó 8:8-9

“Seis dias depois, Yahoshua tomou consigo Pedro, os irmãos Tiago e João, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E se transfigurou diante deles: o seu rosto brilhou como o sol, e as suas roupas ficaram brancas como a luz. Nisso lhes apareceram Moisés e Elias, conversando com Jesus. Então Pedro tomou a palavra, e disse a Yahosua: "Senhor, é bom ficarmos aqui. Se quiseres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias." Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra, e da nuvem saiu uma voz que dizia: "Este é o meu Filho amado, que muito me agrada. Escutem o que ele diz." Quando ouviram isso, os discípulos ficaram muito assustados, e caíram com o rosto por terra. Jesus se aproximou, tocou neles e disse: "Levantem-se, e não tenham medo." Os discípulos ergueram os olhos, e não viram mais ninguém, a não ser somente Yahoshua. Ao descerem da montanha, Jesus ordenou-lhes: "Não contem a ninguém essa visão, até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos”. Mateus17: 1-9.

Esta foi uma pequena apresentação de textos bíblicos que mostram ligações mais aprofundadas sobre os rituais dos antigos hebreus e os rituais das religiões afro-diásporicos. Os africanos na América são a prova mais consistente da presença dos hebreus que vieram da África Ocidental, do Congo-Angola e das regiões de Moçambique.

A guarda do sábado pelos povos africanos foi e é de vital importância, inclusive em um dos odu de Orunmila na Jamaica diz-se que o seu dia de descanso é sábado. Entre os Akans a guarda ao sábado é fundamental, sendo Deus conhecido como o Deus do Sábado.

Israel em diversos momentos da sua história modificou os rituais e incorporou outros deuses a verdadeira adoração de YHWH, não sendo escondidos estes fatos de sua história, a exemplo da adoração a serpente sagrada Neustã, a adoração as árvores sagradas, a deuses familiares e o culto aos antepassados.

As relações do povo hebreu com as forças da natureza são muito profundas, havendo mudanças com o desenvolvimento civilizatório.

No próximo artigo irei trabalhar as formas de adivinhação muito semelhantes as utilizadas atualmente pelos afro-diásporicos, como o opelê e o jogo de búzios, além dos videntes, dos sonhos e diversas formas de comunicação transcendentais utilizadas pelos antigos hebreus.

Shalom!

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Deus: Uma reflexão!

Em 1963 foi publicado um pequeno livro da autoria de um bispo anglicano, livro que causou um tumulto religioso no Reino Unido e nos Estados Unidos. Em Honest to God, o Bispo John Robinson atreveu-se a sugerir que a ideia de deus que predominou durante séculos na civilização ocidental é irrelevante para as necessidades dos homens e mulheres de hoje em dia. A sobrevivência da religião no Ocidente, argumenta Robinson, exige que se rejeite esta imagem tradicional de deus, a favor de uma concepção profundamente diferente, concepção cuja emergência Robinson afirmou ter visto na obra de pensadores religiosos do século XX, como Paul Tillich e Rudolf Bultmann.

Robinson previu corretamente a reação que a sua tese ia provocar, sublinhando que encontraria inevitavelmente resistência, como traição daquilo que se afirma na Bíblia. Não só as pessoas ligadas à igreja, na sua vasta maioria, se oporiam à perspectiva de Robinson, como a afirmação de que a ideia de deus já morrera ou que pelo menos estava moribunda provocaria ressentimento nos que tinham rejeitado a sua crença em deus. Na correspondência com o diretor do londrino Times, em artigos de revistas acadêmicas e nos púlpitos de dois continentes, Robinson foi atacado como ateu disfarçado de bispo e só raramente defendido como profeta de uma nova revolução que ocorria no interior da tradição religiosa judaico-cristã. Um olhar sobre algumas das ideias de Robinson ajudar-nos-á a distinguir diferentes ideias de deus e a concentrarmo-nos naquela que será o centro das nossas atenções ao longo da maior parte deste livro.

Antes de surgir a crença de que o mundo no seu todo está sob o controlo soberano de um único ser, as pessoas acreditavam amiúde numa pluralidade de seres divinos ou deuses, posição religiosa a que se chama politeísmo. Na antiguidade grega e romana, por exemplo, os diversos deuses controlavam diferentes aspectos da vida, de modo que se venerava, naturalmente, vários deuses — um deus da guerra, uma deusa do amor, e por aí em diante. Às vezes, porém, podia-se acreditar que há diversos deuses mas venerar apenas um, o deus da própria tribo, posição religiosa a que se chama henoteísmo. No Antigo Testamento, por exemplo, há referências frequentes a deuses de outras tribos, embora os hebreus se mantenham fiéis ao seu próprio deus, Jeová. Lentamente, porém, surgiu a crença de que o nosso próprio deus é o criador do Céu e da Terra, o deus que não é apenas o da nossa própria tribo mas de todos, perspectiva religiosa a que se chama monoteísmo.

Segundo Robinson, o monoteísmo, a crença num só ser divino, sofreu uma mudança profunda, mudança que Robinson descreve com a ajuda das expressões “lá em cima” e “lá fora”. O Deus “lá em cima” é um ser localizado no espaço acima de nós, presumivelmente a uma determinada distância da Terra, numa região conhecida como “os Céus”. Esta ideia de Deus está associada a uma certa imagem primitiva em que o universo consta de três regiões, os Céus em cima, a Terra em baixo e a região das trevas sob a Terra. Segundo esta imagem, a Terra é frequentemente invadida por seres dos outros dois domínios — Deus e os seus anjos do Céu, Satanás e os seus demónios da região subterrânea — que combatem entre si pelo controlo das almas e do destino dos que habitam o domínio terreno. Esta ideia de Deus como ser poderoso que está “lá em cima”, numa determinada região do espaço, foi lentamente abandonada, afirma Robinson. Agora explicamos às crianças que os Céus não estão de fato sobre as suas cabeças, que Deus não está literalmente algures lá em cima, no Céu. Em lugar de Deus como “o velhote no Céu”, surgiu uma ideia de Deus muito mais sofisticada, a que Robinson se refere como a ideia de Deus “lá fora”.

Mudar do Deus “lá em cima” para o Deus “lá fora” é mudar de uma concepção de Deus como um ser localizado no espaço a uma certa distância da Terra para uma concepção de Deus como algo distinto e independente do mundo. Segundo esta ideia, Deus não está em qualquer local ou região do espaço físico. É um ser puramente espiritual, um ser pessoal, perfeitamente bom, onipotente, onisciente, que criou o mundo, mas não faz parte dele. É distinto do mundo, não está sujeito às suas leis, julga-o, orienta-o para o seu desígnio final. Esta ideia bastante majestosa de Deus foi lentamente desenvolvida ao longo dos séculos por grandes teólogos ocidentais como Agostinho, Boécio, Boaventura, Avicena, Anselmo, Maimónides e Tomás. Tem sido a ideia dominante de Deus na civilização ocidental. Se rotulamos o Deus “lá em cima” como “o velhote no Céu”, podemos rotular o Deus “lá fora” como “o Deus dos teólogos tradicionais”. E é o Deus dos teólogos tradicionais que Robinson considera ter-se tornado irrelevante para as necessidades das pessoas de hoje em dia. Quer Robinson tenha ou não razão — e é muito duvidoso que tenha — é inegavelmente verdade que quando nós, que herdamos maioritariamente a cultura da civilização ocidental, pensamos em Deus, o ser em que pensamos é em muitos aspectos importantes parecido com o Deus dos teólogos tradicionais. Será útil, portanto, ao clarificar as nossas próprias ideias acerca de Deus, explorar com maior detalhe a concepção de Deus que surgiu no pensamento dos grandes teólogos.

Os atributos de Deus

Vimos que, segundo muitos teólogos importantes, se concebe Deus como um ser perfeitamente bom, distinto e independente do mundo, onipotente, onisciente e criador do universo. Duas outras características que os grandes teólogos atribuíram a Deus são a auto-existência e a eternidade. A ideia de Deus que predomina na civilização ocidental é portanto a ideia de um ser perfeitamente bom, criador do mundo mas distinto e independente dele, todo-poderoso (onipotente), onisciente, eterno e auto-existente. Claro que esta lista dos elementos mais importantes dessa ideia de Deus só é esclarecedora para nós na medida em que compreendamos os próprios elementos. Como é ser onipotente? Como compreender a ideia de auto-existência? Como se concebe a distinção e independência de Deus perante o mundo? O que se quer dizer ao afirmar que Deus, e só Deus, é eterno? Só na medida em que pudermos responder a estas e a outras perguntas semelhantes compreenderemos a ideia central de Deus que surgiu na civilização ocidental. Antes de passarmos ao estudo da questão da existência de Deus, portanto, é importante enriquecer a nossa apreensão desta mesma ideia, procurando responder a algumas daquelas questões fundamentais.

Onipotência e perfeita bondade

Na sua grande obra, Summa Theologica, S. Tomás de Aquino, que viveu no século XIII, procura explicar o que é para Deus ser onipotente. Depois de indicar que, para Deus, ser onipotente é ser capaz de fazer tudo o que é possível, Tomás explica cuidadosamente que há dois tipos de possibilidade, a possibilidade relativa e a possibilidade absoluta, e investiga a que tipo de possibilidade se alude quando se afirma que a onipotência de Deus é a capacidade de fazer tudo o que é possível. Algo é uma possibilidade relativa quando um ser ou mais pode fazê-lo. Voar por meios naturais, por exemplo, é possível relativamente às aves mas não relativamente a meros seres humanos. Algo é uma possibilidade absoluta, porém, se não é uma contradição nos termos. Derrotar um mestre de xadrez num jogo de xadrez é algo muito difícil de fazer, mas não é uma contradição nos termos; na verdade, isso já foi ocasionalmente feito. Mas derrotar um mestre de xadrez num jogo de xadrez depois de este nos ter colocado em xeque-mate não é apenas algo muito difícil de fazer: não se pode fazer sequer, visto que é uma contradição nos termos. Tornar-se um solteiro casado, fazer a mesma coisa ser ao mesmo tempo redonda e quadrada, derrotar alguém no xadrez depois de ele nos ter colocado em xeque-mate são coisas que não são possíveis em sentido absoluto; são atividades que, implícita ou explicitamente, envolvem uma contradição nos termos.

Tendo explicado os dois tipos diferentes de possibilidade, Tomás indica que tem de ser à possibilidade absoluta que se alude quando se explica a onipotência de Deus como a capacidade de fazer tudo o que é possível. Porque se nos referíssemos à possibilidade relativa, a nossa explicação não seria mais do que afirmar que “Deus é onipotente” significa que Deus pode fazer tudo o que está em seu poder. E embora seja seguramente verdade que Deus pode fazer tudo o que está em seu poder, isso nada explica. “Deus é onipotente”, portanto, significa que Deus pode fazer tudo o que não envolve contradição nos termos. Quererá isto dizer que há coisas que Deus não pode fazer? Num certo sentido, significa precisamente isso. Deus não pode fazer a mesma coisa ser ao mesmo tempo redonda e quadrada e não pode derrotar-me num jogo de xadrez depois de eu o ter colocado em xeque-mate. Claro que Deus podia sempre colocar-me em xeque-mate antes de eu conseguir fazer-lhe o mesmo. Mas se Deus — por uma razão qualquer — pudesse fazer-me entrar num jogo de xadrez e deixar que eu o colocasse em xeque-mate, então Deus não poderia ganhar aquele jogo de xadrez. Poderia aniquilar-me e ao tabuleiro de xadrez, mas não poderia ganhar aquele jogo. Portanto, há muitas coisas que Deus, apesar da sua onipotência, não pode fazer. Seria um erro, porém, concluir a partir daqui que o poder de Deus é de algum modo limitado, que há coisas que Deus não pode fazer mas que poderia fazer se o seu poder fosse maior. Pois o poder, como observa Tomás, abrange apenas aquilo que é possível. E nada há que seja possível fazer mas que Deus não possa fazer por falta de poder. Assim, conclui Tomás: “Tudo o que implique contradição não está no âmbito da onipotência divina, porque isso não pode ter o aspecto da possibilidade. Pelo que é mais apropriado afirmar que não se pode fazer tais coisas, do que afirmar que Deus não as pode fazer.”

Mas não haverá coisas que, ao contrário de fazer um quadrado redondo, não são contraditórias e no entanto Deus não as possa fazer? Cometer suicídio ou praticar uma má ação não envolvem contradição. Muitos teólogos, contudo, negaram que Deus possa autodestruir-se ou praticar o mal. Porquanto essas ações são inconsistentes com a natureza de Deus — com a sua eternidade e perfeita bondade. Poder-se-ia objetar que as perfeições de Deus implicam apenas que este não se autodestruirá nem praticará o mal, e não que não o possa fazer — Deus tem o poder de praticar o mal, mas, como é perfeitamente bom, nunca exercerá esse poder. O que escapa a esta objeção, contudo, é que atribuir a Deus o poder de praticar o mal é atribuir-lhe o poder de deixar de ter um atributo (a perfeita bondade) que faz parte da sua própria essência ou natureza. Ser perfeitamente bom faz tanto parte da natureza de Deus como ter três ângulos faz parte da natureza de um triângulo. Deus não poderia deixar de ser perfeitamente bom tal como um triângulo não poderia deixar de ter três ângulos. Perante esta dificuldade, talvez seja necessário corrigir a explicação de Tomás acerca do que significa Deus ser onipotente. Em vez da mera afirmação de que isto significa que Deus tem o poder de fazer tudo o que seja uma possibilidade absoluta, diremos que significa que Deus pode fazer tudo o que é uma possibilidade absoluta e que não seja inconsistente com qualquer um dos seus atributos fundamentais. Como praticar o mal é inconsistente com a perfeita bondade e como a perfeita bondade é um atributo fundamental de Deus, não haverá conflito entre o fato de Deus não poder fazer o mal e o fato de ser onipotente.

A ideia de que a onipotência de Deus não inclui o poder de fazer algo que seja inconsistente com qualquer um dos seus atributos fundamentais pode ajudar-nos a resolver aquilo a que se tem chamado o “paradoxo da pedra”. Segundo este paradoxo, ou Deus tem o poder de criar uma pedra tão pesada que não a possa levantar, ou não tem esse poder. Se tem o poder de criar tal pedra então há algo que Deus não pode fazer: levantar a pedra que criou. Por outro lado, se não pode criar tal pedra, então há também algo que não pode fazer: criar uma pedra tão pesada que não a possa levantar. Em qualquer dos casos há algo que Deus não pode fazer. Logo, Deus não é onipotente.

A solução deste quebra-cabeças é ver que criar uma pedra tão pesada que Deus não a possa levantar é fazer algo inconsistente com um dos atributos essenciais de Deus — o atributo da onipotência. Porquanto se existe uma pedra tão pesada que Deus não tem o poder de a levantar, então Deus não é onipotente. Logo, se Deus tem o poder de criar tal pedra, tem o poder de fazer com que lhe falte um atributo (onipotência) que lhe é essencial. Então, a solução adequada do quebra-cabeças é afirmar que Deus não pode criar tal pedra, do mesmo modo que não pode praticar uma má ação. Isto não significa, evidentemente, que haja uma pedra na série infinita das pedras que pesam mil quilogramas, dois mil quilogramas, três mil quilogramas, quatro mil quilogramas, e por aí em diante, que Deus não pode criar. No caso de uma má ação, Deus não pode praticar essa ação porque a sua perfeita bondade lhe é essencial. No caso de uma pedra tão pesada que não a possa levantar, Deus não pode criar tal pedra porque a sua onipotência lhe é essencial.

Vimos que não se pode compreender a onipotência de Deus como algo que inclui o “poder” de causar estados de coisas logicamente impossíveis ou de realizar acções inconsistentes com seus os atributos essenciais. E quanto a mudar o passado? Evidentemente, Deus podia ter impedido que Barack Obama se tornasse presidente dos Estados Unidos. Mas poderá Deus fazê-lo agora? Um estado de coisas em que Obama nunca tenha sido presidente não é uma impossibilidade lógica; tão-pouco parece haver inconsistência entre causar esse estado de coisas e a bondade de Deus ou qualquer outro dos seus atributos essenciais. Mas parece que não está agora ao alcance de qualquer ser, mesmo um ser onipotente, fazer que Obama nunca tenha sido presidente. Assim, embora tenhamos aperfeiçoado a nossa compreensão da noção de onipotência e visto que a onipotência de Deus não é o poder de causar seja o que for em absoluto, não podemos afirmar ter dado uma explicação completa da ideia de que Deus é onipotente. Pois, como acabamos de ver, há acontecimentos do passado que não se pode mudar agora, mesmo que se seja omnipotente. E pode haver outros estados de coisas que um ser onipotente e divino não possa causar.

A ideia de que Deus tem de ser perfeitamente bom liga-se à perspectiva de que Deus é um ser digno de gratidão, louvor e veneração incondicionais. Pois nenhum ser é digno de louvor e veneração incondicionais a menos que seja perfeitamente bom. Assim, Deus não só é um ser bom como a sua bondade é insuperável. Além disso, Deus não é perfeitamente bom por acaso; esse modo de ser é a sua natureza. Logicamente, Deus não poderia deixar de ser perfeitamente bom. Esta é a razão de termos observado há pouco que Deus não tem o poder de praticar o mal. Porquanto atribuir tal poder a Deus é atribuir-lhe o poder de deixar de ser aquilo que necessariamente é.

Afirmamos que Deus é perfeitamente bom por definição? Sim. Mas vemos também que a definição de Deus como perfeitamente bom está ligada à exigência religiosa de que Deus seja um objeto de louvor e veneração incondicionais, se é que não está mesmo fundada nessa exigência. E esclarecemos também outra coisa. Porquanto afirmamos também que o ser que é Deus não pode deixar de ser perfeitamente bom. Um solteiro por definição não é casado. Mas uma pessoa solteira pode deixar de não ser casada. Claro que quando isto acontece (o nosso solteiro casa-se), a pessoa deixa de ser solteira. Ao contrário do nosso solteiro, porém, o ser que é Deus não pode abdicar de ser Deus. Pelo que não afirmamos simplesmente que Deus é por definição perfeitamente bom. Afirmamos também que um ser que seja Deus nunca pode ser outra coisa senão Deus. O solteiro que vive na porta ao lado pode deixar de ser solteiro. Mas o ser que é Deus não pode deixar de ser Deus. Podemos formular isto do seguinte modo: ser solteiro não faz parte da natureza ou essência de um ser que é solteiro. Pelo que, embora por definição ninguém possa ser solteiro estando casado, essa pessoa pode deixar de não ser casada porque pode deixar de ser solteira. Mas ser Deus faz parte da natureza ou essência do ser que é Deus. Então, uma vez que o ser que é Deus não pode deixar de ser Deus, esse ser não pode deixar de ser perfeitamente bom.

Mas o que é ser perfeitamente bom? Na medida em que Deus é insuperavelmente bom, tem todas as características que a bondade insuperável implica. Nestas se inclui a absoluta bondade moral. A bondade moral é uma parte vital, mas não o todo, da bondade, pois há também o bem amoral. Assim, distinguimos entre duas afirmações que se pode fazer a propósito da morte de alguém: “Empenhou-se em levar uma vida boa” e “Teve uma vida boa”. A primeira afirmação diz respeito ao bem moral, a última diz sobretudo respeito ao bem amoral, como a felicidade, a boa sorte, etc. A perfeita bondade de Deus tanto envolve o bem moral quanto o amoral. De interesse crucial aqui é o bem moral de Deus (perfeita justiça, benevolência, etc.), visto que durante muito tempo se pensou que a bondade moral de Deus é de algum modo a fonte ou o padrão da moralidade para a vida humana. Além disso, em virtude da sua perfeição moral essencial, pode-se fazer alguns juízos acerca do mundo que Deus criou. Podemos estar certos, por exemplo, de que Deus não criaria um mundo moralmente mau. Pode até ser verdade que em virtude da sua perfeição moral Deus seja levado a criar o melhor mundo, em termos morais, de que é capaz. Estes tópicos são importantes. Discutiremos mais tarde o segundo (que género de mundo Deus criaria), quando considerarmos o problema do mal. Será útil ponderar aqui brevemente a conexão entre a perfeição moral de Deus e a moralidade na vida humana.

Tem-se defendido que Deus é a fonte ou o cânone dos nossos deveres morais, tanto dos negativos (por exemplo, o dever de não tirar vidas humanas inocentes) como dos positivos (por exemplo, o dever de ajudar quem precisa). Geralmente, as pessoas religiosas acreditam que estes deveres se baseiam de algum modo em mandamentos divinos. Um crente no judaísmo pode ver os dez mandamentos como regras morais fundamentais que determinam pelo menos grande parte daquilo que estamos moralmente obrigados a fazer (deveres positivos) ou a abstermo-nos de fazer (deveres negativos). É claro que, dada a sua perfeição moral, aquilo que Deus nos ordena tem de ser o que é moralmente correto fazer-se. Mas serão estas coisas moralmente corretas porque Deus as ordena? Isto é, será que o bem moral destas coisas consiste apenas no fato de Deus as ter ordenado? Ou será que Deus ordena que se faça estas coisas porque são corretas? Se formos pela segunda opção, que Deus ordena estas coisas porque vê que são moralmente corretas, parece que estamos a sugerir que a moralidade existe independentemente da vontade ou dos mandamentos de Deus. Mas se formos pela primeira opção, que é o fato de Deus as querer ou ordenar que torna essas coisas corretas, parece que estamos a sugerir que não haveria bem nem mal se não houvesse qualquer ser divino para decretar tais mandamentos. Embora nenhuma das respostas seja improblemática, a que predomina no pensamento religioso acerca de Deus e da moralidade é que aquilo que Deus ordena é moralmente bom independentemente dos seus mandamentos. O fato de Deus nos ordenar certas ações não as torna moralmente retas; estas são moralmente retas independentemente das suas ordens e Deus ordena-as porque vê que são moralmente retas. Assim, em que sentido depende a nossa vida moral de Deus? Ainda que a moralidade em si não dependa necessariamente de Deus, talvez o nosso conhecimento da moralidade dependa dos mandamentos divinos (ou pelo menos seja auxiliado por eles). Talvez os ensinamentos da religião levem os seres humanos a ver que certas acções são moralmente retas e que outras são moralmente erradas. Além disso, pode ser que a crença em Deus ajude a prática da moralidade. Pois embora cumprir o dever por respeito ao próprio dever seja uma parte importante da vida moral, talvez seja exagerado esperar que os seres humanos comuns sigam inflexivelmente a vida do dever, mesmo sem razões para associar a moralidade ao bem-estar e à felicidade. A crença em Deus pode ajudar a vida moral dando uma razão para pensar que a relação entre esforçar-se por levar uma vida boa e ter uma vida boa não é meramente acidental. Ainda assim, o que faremos com a dificuldade de que certas coisas são moralmente rectas independentemente do fato de Deus no-las ordenar? Considere-se o fato de Deus acreditar que 2 + 2 = 4. Será 2 + 2 = 4 verdade porque Deus acredita que é? Ou será que Deus acredita que 2 + 2 = 4 por ser verdade que 2 + 2 = 4? Se vamos pela última, como parece que devemos fazer, estamos a sugerir que certas afirmações matemáticas são verdadeiras independentemente de Deus acreditar nelas. Portanto, parece que estamos já comprometidos com a perspectiva de que o modo como algumas coisas são não tem em última instância a ver com a vontade ou com os mandamentos de Deus. Talvez as verdades fundamentais da moralidade tenham o mesmo tipo de estatuto que as verdades fundamentais da matemática.

Auto-existência

A ideia de que Deus é um ser auto-existente foi desenvolvida e explicada por Santo Anselmo no século XI. Usando diversos argumentos, Anselmo persuadira-se de que entre os seres que existem há um que é perfeitamente grandioso e bom — nada que existe ou alguma vez existiu se lhe compara. De tudo o que existe, porém, Anselmo estava igualmente persuadido de que podemos perguntar o que justifica ou explica o facto de existir. Se nos deparamos com uma mesa, por exemplo, podemos perguntar o que justifica o fato de a mesa existir. E podemos responder à nossa pergunta, pelo menos em parte, verificando que um carpinteiro pegou numa porção de madeira e fez a mesa. Poderemos, de igual modo, quanto a uma árvore, montanha ou lago, perguntar o que explica o fato de existirem. Tentando descobrir mais acerca do ser perfeitamente grandioso e bom, Anselmo faz a mesma pergunta a respeito deste ser. O que justifica o fato de o ser perfeitamente grandioso e bom existir?

Antes de tentar responder a esta questão, Anselmo observa que há apenas três casos a considerar: ou a existência de uma coisa se explica por outra coisa, ou se explica por nada, ou por si mesma. É claro que a existência da mesa se explica por outra coisa (o carpinteiro). O mesmo acontece com a existência de uma árvore, montanha ou lago. Cada uma destas coisas existe por causa de outras coisas. Com efeito, tudo o que é familiar nas nossas vidas parece explicar-se por outras coisas. Mas mesmo quando não sabemos o que explica o fato de certa coisa existir, se é que algo o explica, é óbvio que a resposta tem de ser uma das três que Anselmo propõe. O fato de certa coisa existir explica-se ou por referência a outra coisa, ou por nada, ou pela própria coisa. Simplesmente não há mais hipóteses a considerar. O que dizer então da existência de um ser perfeitamente grandioso e bom? Será que a sua existência se deve a outra coisa, a nada, ou a si própria? Ao contrário da mesa, da árvore, da montanha, ou do lago, a existência do ser perfeitamente grandioso e bom não pode dever-se a outra coisa, argumenta Anselmo, pois nesse caso a sua existência dependeria dessa outra coisa e, consequentemente, não seria o ser supremo. A existência de qualquer coisa superior a todas as outras coisas não pode depender (nem ter dependido) de qualquer delas. A existência do ser supremo, portanto, tem de se explicar ou por nada ou por si própria.

Se a existência de algo se explica por nada então esse algo existe sem que haja qualquer explicação para o facto de existir em vez de não existir. Poderia haver algo assim — algo cuja existência é simplesmente um fato bruto ininteligível, sem qualquer explicação? A resposta de Anselmo, esteja ou não correta, é perfeitamente clara: “É em última análise inconcebível que aquilo que é alguma coisa exista por meio de nada”. Infelizmente, Anselmo não explica por que razão não podemos conceber algo cuja existência seja um fato bruto ininteligível. Presumivelmente, achou que isso era tão óbvio que não precisava de explicação. Em todo o caso, temos de observar com cuidado o princípio que Anselmo exprime aqui, pois figurará mais tarde num dos principais argumentos a favor da existência de Deus. A convicção fundamental de Anselmo é que para tudo o que existe tem de haver uma explicação da sua existência — tem de haver algo que explique o fato de a coisa existir em vez de inexistir, e esse algo tem de ser ou outra coisa ou a própria coisa. Negar isto é ver a existência de algo como irracional, absurda, completamente ininteligível. E Anselmo pensa que o ser supremo não pode ser assim, tal como nem uma árvore ou uma montanha o podem. A existência do ser supremo, portanto, não pode explicar-se por nada. Resta então a terceira via. Anselmo conclui que a existência do ser supremo se deve a si própria.

Claro que uma coisa é concluir que a explicação da existência do ser supremo tem de se encontrar na natureza desse mesmo ser, e outra coisa completamente diferente é compreender o que há na natureza do ser supremo que justifica a sua existência. Anselmo não afirma compreender o que há na natureza divina que justifica a existência de Deus. Nem compreende exactamente como a natureza de um ser poderá explicar a existência desse ser. Tudo aquilo de que afirma estar certo é que a existência do ser supremo se deve ao próprio ser supremo. Não quer com isto dizer, obviamente, que o ser supremo causou a sua própria existência. Pois nesse caso teria de existir antes de ter existido de modo a causar a sua própria existência e isto é claramente impossível. Além disso, como vimos, a eternidade é uma das características de Deus, pelo que é evidente que Deus não começou a existir num determinado momento.

Contudo, Anselmo apresenta uma analogia, procurando ajudar-nos a compreender esta ideia bastante difícil. Usando o nosso próprio exemplo, pode-se exprimir assim a ideia de Anselmo: suponha-se que numa noite fria encontramos uma enorme fogueira. Reparamos que uma pedra perto da fogueira está quente. Se perguntarmos qual a explicação deste fato acerca da pedra (o fato de estar quente), seria absurdo sugerir que a explicação tem de estar na própria pedra, que há algo na natureza da pedra que a faz estar quente. A fogueira e a proximidade entre a pedra e o fogo explicam o calor da pedra. Suponha-se que reparamos então que também a fogueira está quente. O que explica o fato de a fogueira estar quente? Aqui não parece absurdo sugerir que a explicação reside na própria fogueira. Pertence à natureza de uma fogueira o estar quente, tal como pertence à natureza de um triângulo o ter três ângulos. Para evitar a confusão, temos de estar claramente cientes de que procuramos explicar o fato de a fogueira estar quente e não o facto de a fogueira existir. O fato de a fogueira existir não se deve à fogueira mas ao campista que ateou a fogueira. O fato de a fogueira que existe estar quente, contudo, é um fato acerca da fogueira que se explica pela natureza da fogueira, pelo que é ser uma fogueira. Temos então aqui o exemplo de um fato acerca de algo (o calor da fogueira) que se explica não por outra coisa qualquer mas pela natureza da própria coisa (a fogueira). Anselmo espera que se virmos uma vez que um determinado fato acerca de algo se pode explicar não por outra coisa qualquer mas pela natureza dessa coisa, a ideia de auto-existência deixará de nos parecer tão estranha. Quer seja ou não assim, devia ser claro tanto o que se quer dizer com auto-existência como por que razão os teólogos tradicionais sentiram que se tratava de uma característica fundamental do ser divino. Ser um auto-existente é ter na sua própria natureza a explicação da sua existência. Como nada pode existir cuja existência seja ininteligível, sem qualquer explicação (o princípio fundamental de Anselmo), e como o ser supremo não seria supremo se a sua existência se devesse a outra coisa, a conclusão inevitável é que a explicação da existência de Deus (o ser supremo) está na sua própria natureza.

Distinção, independência e eternidade

Temos vindo a explorar as noções de omnipotência, perfeita bondade e auto-existência, procurando aprofundar a nossa apreensão da ideia dominante de Deus que emergiu na civilização ocidental. Explorar-se-á alguns dos outros elementos desta ideia de Deus em capítulos posteriores. Para completar esta exploração inicial, contudo, será instrutivo considerar a noção de que Deus é distinto e independente do mundo e a concepção de Deus como um ser eterno.

Vimos a emergência do monoteísmo a partir do henoteísmo e do politeísmo. O monoteísmo é a tradição dominante no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. Há outra perspectiva de Deus que persistiu desde a antiguidade e continua a florescer, particularmente nas grandes religiões do Oriente, o budismo e o hinduísmo: uma perspectiva chamada panteísmo. Segundo o panteísmo, tudo o que existe tem uma natureza interna que é a mesma em todas as coisas e essa natureza interna é Deus. Mais tarde, quando examinarmos as experiências de alguns dos grandes místicos, consideraremos o panteísmo de um modo mais completo. A ideia fundamental no monoteísmo, de que Deus é distinto do mundo, constitui uma rejeição do panteísmo. Segundo a concepção judaico-cristã e islâmica, Deus e o mundo são inteiramente distintos: podia-se aniquilar por completo tudo o que há no segundo sem que ocorresse a mais ligeira mudança na realidade do ser divino. Claro que há coisas no mundo que se assemelham mais a Deus do que outras. Como os humanos são seres vivos e racionais, assemelham-se mais a Deus do que as pedras e as árvores. Mas ser como Deus e ser Deus são coisas bastante diferentes. O mundo não é o divino e a noção de que Deus é distinto do mundo visa salientar a diferença fundamental entre a realidade de Deus e a realidade do mundo.

O fato de Deus ser independente do mundo significa que não é regido por quaisquer leis físicas, que rejam o funcionamento do universo. Mas significa muito mais do que isto. Significa também que Deus não está sujeito às leis do espaço e do tempo. De acordo com a lei do espaço, nenhum objeto pode existir ao mesmo tempo em dois lugares diferentes. Claro que uma parte de um objeto pode existir numa região do espaço e outra parte do mesmo objeto (se for um objeto grande) pode existir numa região diferente do espaço. A lei não nega isto. Nega que um objeto no seu todo possa existir ao mesmo tempo em duas regiões diferentes do espaço. Se esta lei se aplicasse a Deus, ou Deus ocuparia qualquer região do espaço num determinado momento e não outras regiões do espaço nesse mesmo momento ou ocuparia todo o espaço ao mesmo tempo, mas com apenas uma parte sua em cada região do espaço. Nenhuma destas alternativas era aceitável para os grandes teólogos do passado. Na primeira alternativa, embora Deus pudesse estar presente em São Paulo num determinado momento, não podia nesse momento estar presente em Manaus. E na segunda alternativa, embora Deus pudesse estar presente em São Paulo e Manaus ao mesmo tempo, em São Paulo estaria uma parte de Deus e em Manaus estaria uma parte diferente de Deus. Na ideia tradicional de Deus, não só Deus tem de estar presente em todo o lado ao mesmo tempo como o seu todo tem de estar ao mesmo tempo em todos os lugares. Deus no seu todo está em São Paulo e em Manaus ao mesmo tempo — na verdade, todo o tempo. Mas esta perspectiva entra em conflito com a lei do espaço. Então a ideia de Deus que emergiu na civilização ocidental é a de um ser supremo independente das leis da natureza e que transcende mesmo a lei fundamental do espaço.

A ideia de que Deus não está sujeito à lei do tempo relaciona-se intimamente, como veremos, com um dos significados de eternidade. De acordo com a lei do espaço, nada pode existir inteiramente em duas regiões diferentes do espaço ao mesmo tempo. De acordo com a lei do tempo, nada pode existir inteira e simultaneamente em dois momentos diferentes. Para compreender a lei do tempo, basta considerar o exemplo do homem que existiu ontem, existe hoje e existirá amanhã. O homem no seu todo existe em cada um destes momentos diferentes. Isto é, não se trata de apenas o seu braço, por exemplo, ter existido ontem, a sua cabeça existir hoje e as suas pernas existirem amanhã. Mas ainda que o homem no seu todo exista em cada um destes três momentos, o todo da sua vida temporal não existe em cada um destes momentos. A parte temporal da sua vida que existiu ontem não existe hoje; quando muito o homem pode participar nela recordando-a. E a parte temporal da sua vida que existirá amanhã não existe hoje; quando muito pode participar nela antecipando-a. Embora o homem no seu todo exista em cada um destes três momentos, a sua vida inteira não existe em qualquer um deles. A sua vida, portanto, divide-se em muitas partes temporais e em cada momento particular só uma destas partes temporais lhe é presente. Assim, a vida de uma pessoa exemplifica a lei do tempo. Pois de acordo com essa lei as partes temporais individuais da vida de uma pessoa não podem estar presentes ao mesmo tempo. Por razões que não precisamos de desenvolver aqui, os grandes teólogos medievais hesitavam em dividir a vida de Deus em partes temporais e, portanto, adoptaram a perspectiva de que Deus transcende a lei do tempo tal como transcende a lei do espaço. Ainda que seja quase ininteligível, adoptaram a perspectiva, como Anselmo a exprime, de que “a natureza suprema existe num lugar e num momento de tal maneira que não a impede de existir desse modo simultaneamente, como um todo, em lugares e momentos diferentes”. De acordo com esta ideia, toda a vida ingénita e interminável de Deus lhe é presente em cada momento do tempo e Deus no seu todo está simultaneamente presente em cada região do espaço.

Eterno tem dois significados distintos. Num sentido, ser eterno é ter existência temporal interminável, sem começo nem fim; é ter duração infinita em ambas as direções do tempo. Nada há neste significado de eterno que entre em conflito com a lei do tempo. A lei do tempo implica apenas que qualquer coisa que seja temporalmente infinita terá uma infinidade de partes temporais compondo de tal modo a sua existência que em nenhum momento estará presente mais do que uma destas partes temporais; as outras partes temporais estão ou no seu passado ou no seu futuro. De acordo com o segundo significado de eterno, contudo, a vida de um ser eterno não se divide em partes temporais, pois não está sujeito à lei do tempo. Assim, de acordo com este significado de eterno, um ser que tivesse duração infinita em cada direcção do tempo e estivesse sujeito à lei do tempo não seria eterno. Como observou o estudioso romano Boécio (480-524 d.C.),

Tudo o que está sujeito ao tempo, mesmo aquilo que não tem começo e que não terá fim numa vida coextensiva com a infinidade do tempo — e foi assim que Aristóteles concebeu o mundo —, é tal que não se pode correctamente considerar eterno. Porquanto não abrange nem inclui o todo da vida infinita ao mesmo tempo, dado que não abrange o futuro, que está ainda por vir. Logo, só o que abrange e possui ao mesmo tempo toda a plenitude da vida infinita, da qual nada de posterior nem de anterior está ausente, se pode com justeza chamar eterno.

Boécio, Anselmo, Tomás, e outros teólogos tradicionais interpretaram a eternidade de Deus no segundo dos dois sentidos que acabamos de distinguir. Defenderam que Deus está fora do tempo, que não está sujeito à sua lei fundamental. Outros teólogos, contudo, adoptaram a perspectiva de que Deus é eterno no primeiro sentido — que tem duração infinita em ambas as direções temporais. O teólogo inglês do século XVIII Samuel Clarke, por exemplo, rejeitou como absurda a ideia de que um ser pudesse transcender o tempo e adoptou a perspectiva de que ser eterno é simplesmente ser perpétuo, existindo no tempo mas sem ter começo nem fim. Quando mais tarde estudarmos o problema da presciência divina e da liberdade humana, reconsideraremos estes dois sentidos de eternidade e observaremos as suas implicações para a doutrina da presciência divina. De momento, contudo, basta reconhecer que a eternidade é um elemento central na ideia tradicional de Deus e que foi interpretada de duas maneiras distintas.

Temos vindo a explorar algumas características fundamentais que constituem a ideia de Deus, que até agora têm sido centrais para a tradição religiosa ocidental. Segundo esta ideia, Deus é um ser perfeitamente bom, criador do mundo mas distinto e independente deste, onipotente, onisciente, eterno e auto-existente. Ao explorar esta ideia de Deus, vimos também muitas outras concepções do divino associadas ao politeísmo, henoteísmo, monoteísmo e panteísmo. A ideia de Deus que será de importância central para este livro, porém, foi elaborada pelos teólogos tradicionais ocidentais. É a ideia central de Deus das três grandes religiões da civilização ocidental: judaísmo, cristianismo e islamismo. Até aqui usamos a expressão de Robinson “o Deus lá fora” e a expressão “o Deus dos teólogos tradicionais” para referir esta ideia de Deus. Doravante, contudo, chamaremos a esta perspectiva acerca de Deus “ideia teísta de Deus”. Ser teísta, portanto, é acreditar na existência de um ser perfeitamente bom, criador do mundo mas distinto e independente deste, onipotente, onisciente, eterno (em qualquer dos nossos dois sentidos) e auto-existente. Um ateísta é alguém que acredita que o Deus teísta não existe, ao passo que um agnóstico é alguém que ponderou na ideia teísta de Deus mas que não acredita na existência nem na inexistência do Deus teísta.

Acabamos de usar os termos teísta, ateísta e agnóstico num sentido restrito ou circunscrito. No sentido mais amplo, um teísta é alguém que acredita na existência de um ser ou seres divinos, mesmo que a sua ideia do divino seja bastante diferente da ideia de Deus que temos vindo a descrever. De igual modo, no sentido mais amplo do termo, um ateu é alguém que rejeita a crença em toda a forma de divindade, não apenas no Deus dos teólogos tradicionais. Para evitar a confusão, é importante ter em mente tanto o sentido circunscrito destes termos como o mais amplo. No sentido mais circunscrito, o teólogo protestante Tillich é um ateísta, pois rejeitou a crença naquilo a que chamamos “Deus teísta”. Mas no sentido mais amplo é um teísta, dado que acredita numa realidade divina, embora diferente do Deus teísta. Na maior parte deste livro usarei os termos teísmo, ateísmo, e agnosticismo no sentido mais circunscrito. Assim, quando ponderarmos na questão dos fundamentos do teísmo, a nossa preocupação será saber se a existência do Deus teísta (o Deus dos teólogos tradicionais) tem uma base racional. E quando perguntarmos, por exemplo, se os factos acerca do mal no mundo sustentam a verdade do ateísmo, estaremos a perguntar se a existência do mal nos dá uma base racional para concluir que o Deus teísta não existe.

Tendo clarificado a ideia do Deus teísta, podemos agora considerar algumas destas questões mais amplas. E começaremos com a questão de saber se se pode ou não justificar racionalmente a crença na sua existência.